Abordagens da psicologia defendem o trabalho como “construtor da identidade do indivíduo”, enquanto teorias da sociologia o consideram uma maneira de demonstrar habilidades, superar obstáculos e contribuir para o desenvolvimento. O trabalho seria a base do valor e da existência humana. Como poderia, então, ter se tornado para muitos sinônimo de desgaste dela?
Da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) até os dias atuais, os brasileiros conquistaram direitos como férias, salário mínimo, aposentadoria e licenças. Ao mesmo tempo, a tecnologia evoluiu, assim como a ciência e a saúde pública, o que facilitou - em teoria - algumas tarefas, agilizou processos manuais e assegurou um maior cuidado médico aos funcionários.
No entanto, especialistas indicam que a “modernidade” confunde-se muitas vezes com “precarização”. As leis estabelecidas ganharam possibilidades de flexibilização, com novas formas contratuais e de negociação com os trabalhadores. O individualismo cresceu, o mundo acelerou, a demanda por emprego tornou-se frenética, ao mesmo tempo em que o esperado do trabalhador mudou.
Ainda que tenha defensores, o novo modelo expõe-se na saúde mental dos funcionários: as pressões provocadas por um conjunto de fatores e agentes retornam de forma tão individual como é o meio de produção. Os problemas chegam como uma avalanche e o efeito é solitário, como se acúmulos fossem naturais e esgotamentos sinais de fraqueza.
Normas recentes visam a atenuar este contexto, com maior responsabilização por parte de patrões e empresas quanto à saúde mental dos funcionários. Outras iniciativas incluem ações de prevenção na rotina ambiente corporativo.
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Procure ajuda
Caso você tenha se identificado com os sintomas descritos acima, procure ajuda psicológica. Como qualquer doença, quanto antes tratar, melhor.
O Governo Federal, vale lembrar, fornece atendimento gratuito via Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Segundo o portal da gestão nacional, o tratamento pode ser iniciado por escolha própria (quando o usuário/a procura diretamente) ou por meio de encaminhamento proveniente de outros serviços da rede de saúde ou de setores interligados, como Assistência Social, Educação, Justiça e outros.
Veja como ter acesso aos Centros de Atenção em: tinyurl.com/5n99bw9h
Empresas têm responsabilidade na saúde dos trabalhadores
Mesmo antes da implementação da NR-1 do MTE, algumas empresas já contam com programas de bem-estar e apoio psicológico para colaboradores. A Unimed Fortaleza, por exemplo, oferece o "Plantão Psicológico", surgido por contingência à Covid.
Devido à alta incidência de colaboradores na linha de frente, o serviço se fez necessário no primeiro ano da pandemia e foi reforçado em 2021, com a contratação de psicólogas terceirizadas. O resultado foi positivo e o serviço acabou implementado de forma permanente na empresa.
O "Plantão Psicológico" atende colaboradores e terceiros, além de promover ações preventivas como oficinas, mediação de conflitos e demais atividades. Há ainda o código girassol, voltado no tratamento com o cliente e na violência no ambiente de trabalho. O atendimento varia entre os colaboradores, podendo ser pontual, mensal e até mesmo diário, a depender do caso.
Melissa Pereira, de 19 anos, está no sistema Unimed há aproximadamente 1 ano e trabalha como auxiliar de saúde no Centro de Imagem. Citou a rotina como cansativa, por lidar com pacientes na emergência.
Utiliza do Plantão Psicológico desde que entrou, procurando-os por conta própria. Da primeira vez ela cita ter precisado de ajuda para um caso familiar. Na segunda, o problema se deu com o contato com um paciente, que "excedeu-se" no atendimento.
O serviço psicológico foi descrito por ela como "essencial" no momento. "Ela me deu a assistência que eu precisava. Trabalhei em outros locais, mas não havia essa disponibilidade é um recurso que acho muito importante, até para normalizar a terapia. Eu mesma no início tinha receio", contou.
Segundo Paula Pamplona, psicóloga do Plantão, os dados do projeto mostram uma evolução, ainda que ela considere difícil quantificar. "A procura aumentou muito e o número de afastamentos por INSS diminuiu. Há ainda uma estabilidade, com menos sessões por colaborador, além dos recados que recebemos", disse.
Hoje, as ações de prevenção demandam quase a mesma força de trabalho do atendimento após o ocorrido ou a crise. "Acho que as pessoas estão entendendo o que é saúde mental e como se diferencia da saúde física. Eu acho maravilhoso, pois uma coisa leva à outra", disse Paula.
Esse entendimento quanto à saúde mental seria o principal impacto esperado com a norma, conforme o diretor do MTE, Rogério Araújo. Ele ainda considerou um grande desafio "o entendimento das empresas sobre a necessidade de implementação de mudanças nas questões relacionadas à sua forma de gestão e organização do trabalho".
Para a psicóloga Janaína Melo é preciso que as empresas compreendam uma mudança de mentalidade nos trabalhadores. Uma pessoa de 30 anos hoje, segundo ela, não considera que o trabalho é necessariamente assegurador de coisa alguma e, portanto, prefere muitas vezes priorizar tempo e bem-estar.
Neste sentido, Janaína considera que, "nessa transição, se passa a querer exigir o trabalhador uma coisa que ele não vai dar da mesma forma que antes". "Nossa mente não é mais a mesma. As relações de trabalho não são as mesmas e hoje as pessoas expressam mais o que elas sentem também. Não quer dizer que antes não tinha problema de saúde mental, só que não era valorizado", explicou.
Já a historiadora Cláudia Freitas enxerga o problema de uma forma macro, geracional. Os novos trabalhadores, segundo ela, não se veem desta forma, sendo necessário o resgate de uma consciência de classe, já que, para ela, não há para "onde fugir". "A precarização está em todos os lugares".
"Então eu acho que a formação política é importante. Essa geração pensa que questões de classe estão obsoletas, só que enquanto existir trabalhadores e trabalhadoras, vai existir uma luta de classe sim, porque o patronato vai atuar dentro da sua própria lógica de operação, vai querer a mais valia e vai explorar sim", disse.
Para ela: "Quando cai a ficha, das duas uma. Você pode mudar de setor achando que vai melhorar a sua situação. Mas, o caminho é outro: você tenta de alguma forma lutar de forma coletiva para minimizar esses problemas que são diários e que causam justamente o cansaço e o desgaste mental".
Um outro olhar sobre o trabalho flexível e a saúde dos líderes
Há quem não considere o trabalho flexível como principal causador do aumento dos índices de problemas mentais no mercado. Há, na verdade, quem o prefira. Joaquim Costa Bezerra Dias, 28 anos, já trabalhou nas duas modalidades de contratação: CLT e Pessoa Jurídica (PJ). "Prefiro PJ e remoto. É como me encontro hoje e não abriria mão por presencial/CLT", conta.
O engenheiro de software elencou pré-requisitos que o teriam ajudado na adaptação às atuais formas de trabalho dele, mas que podem não estar presentes nas experiências de outros trabalhadores. A ausência de fundos garantidores da PJ, por exemplo, teria sido suprida por bons acordos contratuais e conhecimento prévio de gestão de finanças. No entanto, ele acrescenta que a forma de contratação pode ser "uma armadilha caso você não consiga negociar um contrato factível com o que você espera".
E acrescentou: "A CLT tem a vantagem de ter uma seguridade dada pelo próprio Estado, porém com encargos tributários um pouco maiores para aqueles que já recebem um valor considerável". Quanto o home office, Joaquim considerou de boa utilidade caso o trabalhador saiba "delimitar espaço e tempo para cada atividade". "Pode ser ótimo até para sua saúde mental", completou, citando a própria experiência.
Lideranças ouvidas foram na mesma toada. O trabalho flexível foi citado como sinônimo de "equilíbrio" por Marina Mendonça, atualmente coordenadora de Treinamento, Desenvolvimento e Seleção da Rede de Hotéis Vila Galé no Brasil. Segundo ela, as relações devem contar com "limites claros", de modo a evitar sobrecarga, isolamento e dificuldades de desconexão. Uma das soluções estaria no acompanhamento das equipes, com promoção de boas práticas de gestão. "Independentemente do formato de trabalho", acrescentou.
Marina diz ter recebido a Norma Reguladora com "consciência da sua importância", mas a considera um alerta às empresas. O debate, explica, precisa ser incorporado "com orientações claras, treinamentos e o envolvimento diário de todos", o que inclui a liderança.
A saúde mental dos próprios contratantes torna-se, então, alvo de discussão. Sherydan Gomes, psicanalista, defende que é preciso "enfrentar os desafios do ambiente de trabalho, através de práticas voltadas ao autocuidado e a autoconexão, por meio do desenvolvimento das habilidades psico socioemocionais".
A flexibilização "é uma possibilidade", mas não consiste na principal causa do aumento dos problemas mentais no trabalho, diz ela, em uma outra visão da psicologia sobre os dados atuais. "Não é o suficiente. A maior questão é gerenciar conflitos e demandas internas e isso só acontece quando se tem consciência das potencialidades e vulnerabilidades", completou.
Neste contexto, a psicóloga criou o Clube Areté, experiência imersiva voltada para saúde mental dos contratantes e gestores. A iniciativa consistirá em seis encontros, um por mês, com a duração de 4 horas - cada. O primeiro ocorreu em 12 de abril de 2025.
Os líderes podem participar por meio do telefone 85 99994 0129, contato dos coordenadores. O interessado deve preencher um formulário e participar de uma entrevista presencial, com o intuito de "perceber as reais necessidades" e demandas a serem atendidas.
"Viver em um ambiente corporativo é viver o inevitável, as relações humanas, e hoje elas se dão naturalmente na esfera presencial ou virtual e em cada um desses espaços quem vai conduzir a saúde ou adoecimento mental é a forma como esse mesmo sujeito estar internamente", reforçou Sherydan, quanto às modalidades de trabalho.
Riscos psicossociais aumentam com a flexibilização
A norma foi proposta em um contexto de aumento exponencial de casos de afastamentos por problemas de saúde mental no Brasil. O ano de 2024 representou um índice inédito: 440 mil pessoas receberam autorização médica para afastamento do trabalho por estes motivos. Em 2023, o número era de 288 mil, o que representa um aumento de 67% em apenas um ano.
Questionado, o diretor Rogério Araújo ainda elencou diretrizes da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) como motivadoras da portaria. "As duas instituições defendem o desenvolvimento de ações concretas por parte dos governos, dos empregados e trabalhadores e da sociedade como um todo", comentou o servidor do MTE.
O estágio máximo de esgotamento no trabalho é chamado de burnout. Não necessariamente todos os afastamentos dos índices acima se referem a este problema, porém todo diagnóstico de burnout é acompanhado de afastamento.
Uma funcionária que preferiu não ser identificada relatou ter passado por episódios de mal-estar sem diagnóstico após enfrentar acúmulo de funções devido a reestruturações da empresa em que trabalhava. Ela mantinha as próprias demandas, enquanto entregava outros produtos diários e quinzenais. Houve ainda um período em que intercalava funções em dois setores ao mesmo tempo.
O resultado foi, além dos mal-estares, pensamentos "catastróficos e obsessivos", segundo ela mesma. "Eu pensava 'e se eu fosse atropelada? Seria ótimo, pois aí não iria trabalhar', 'e se eu fosse assaltada?', 'e se eu batesse o carro?'. Tinha choros incontroláveis, acessos de raiva, problemas de pele, gastrointestinais…", contou.
A mulher iniciou um tratamento psicoterapêutico, mas logo encaminhou-se para um psiquiatra. O médico receitou medicação e pediu afastamento da funcionária. "Depois de um tempo, depois de outras sessões, depois de muita análise eu fui entender que o meu pedido de demissão de forma abrupta e sem negociação havia sido uma resposta a um burnout", disse.
Hoje, ela diz seguir em tratamento, mas com sessões não voltadas unicamente às consequências da crise no trabalho. Apesar disso, alegou não saber ao certo do estágio mental em que se encontra. A sensação de alerta constante a persegue, junto do receio de que a síndrome retorne. "Eu consigo dar mais valor a outros aspectos da minha vida, mas acredito que o burnout me marcou de uma maneira definitiva."
A psicóloga Janaína Melo, professora substituta na Universidade Estadual do Ceará (Uece), elencou uma mudança na configuração de doenças mentais relacionadas ao trabalho ao longo dos anos. Ao adentrar o âmbito da saúde ocupacional, em 2012, ela atribuiu a maioria dos casos que recebia a professores, médicos e demais funcionários em regime exaustivo e/ou de plantão. "Hoje está generalizado", disse.
Especialmente após a pandemia de Covid-19, a procura por ajuda psicológica direcionada a problemas no trabalho teria aumentado, conforme a percepção dela. Isso porque, ainda que haja diversas causas, a psicóloga citou dois grandes motivos como causadores de crises no trabalho: assédios - morais e/ou sexuais - e jornadas excessivas de trabalho. "A pessoa não vai apresentar o problema do nada. O problema vem de todo um contexto de trabalho exploratório ou em excesso que faz com que a pessoa desenvolva transtornos", disse.