A Mostra de Cinema Tiradentes abre a cada ano o calendário do audiovisual brasileiro. Realizado sempre em janeiro, o evento dedicado à produção contemporânea teve em 2023 caráter ainda mais relevante por ser o primeiro encontro do segmento já sob a nova gestão federal. Reconstrução do Ministério da Cultura sob comando de Margareth Menezes, movimentos de liberação de recursos ao setor, nomeação da produtora Joelma Gonzaga como secretária do Audiovisual: em um mês, foram muitos os gestos do governo Lula (PT), em sinalização considerada positiva pela classe. O momento, agora, é de busca por concretizar a retomada de processos e políticas públicas para o setor, bem como aprofundar o estabelecimento de novas bases.
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Nesta edição, que ocorreu entre os dias 20 e 28 de janeiro, o evento realizou a primeira edição do Fórum de Tiradentes - Encontros pelo Audiovisual Brasileiro, uma iniciativa de reflexão, debate e ação pela reconstrução de políticas culturais do setor. Com presença de profissionais do segmento, representações da sociedade civil e figuras institucionais — como a ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia e a secretária do Audiovisual Joelma Gonzaga —, o Fórum teve como fruto principal a Carta de Tiradentes 2023.
O documento foi endereçado a instâncias do Governo Federal com "recomendações estruturantes e transversais" para a retomada de políticas. Entre elas, estão a aprovação do Marco Regulatório do Fomento à Cultura, a regulação do streaming, o fortalecimento de dados e indicadores do setor e pensamento sobre relações trabalhistas.
"A carta foi muito importante. O setor audiovisual sempre se estruturou na ideia de uma cadeia formada por produção, distribuição e exibição, mas hoje a gente tem que vê-la de forma mais ampliada: uma cadeia produtiva, mas também criativa, que coloca elementos como formação, preservação, universidades, crítica, festivais de cinema", elenca o professor da Universidade Federal do Ceará e pesquisador Marcelo Ikeda, que participou da Mostra de Tiradentes.
Na avaliação de Ikeda, a realização do Fórum "funcionou como um Congresso Brasileiro de Cinema", comparando o evento deste ano, em especial, com a terceira edição do CBC. "Em 2000, ela teve como fruto justamente a criação da Agência Nacional de Cinema (Ancine). Pela abrangência do que foi proposto aqui, é quase como se fosse um CBC que propusesse uma 'Ancine 2.0'", explica.
Para o professor, a reestruturação da Agência em 2023 será um desafio central para o governo federal. "Ela, que tem importância central nas políticas para o cinema, funciona com uma diretoria colegiada. São quatro diretores, mas só tem uma vaga. O Governo pode colocar uma quarta pessoa, que vai ter que dialogar com os outros diretores, nomeados por Bolsonaro em 2022", aprofunda Ikeda. Na avaliação do professor, o cenário é de "impasse político", mas ressalta que o atual presidente da Ancine, Alex Braga, "tem sinalizado que as políticas da Agência vão ser aderentes à nova política do Governo". Ikeda lembra, ainda, que apesar da importância do órgão, ainda há necessidade de avançar em diferentes pontos de atuação.
"A Ancine teve função fundamental para crescer e diversificar o cinema brasileiro, só que precisa avançar muito mais. Na perspectiva de transformações do novo governo e da ideia que é preciso ampliar, de fato, a cadeia produtiva, a Carta de Tiradentes está antenada com novos tempos. As estruturas de política pública precisam se atualizar para as necessidades desse novo Brasil", resume.
A posição reflete a de Francis Vogner dos Reis, coordenador curatorial da Mostra de Tiradentes. "Tivemos mudanças drásticas com a pandemia, o governo Bolsonaro, a ascensão dos streamings, as mudanças tecnológicas. É a reconstrução de antigas bases que ainda são sólidas e precisam ser fortificadas, mas também proposições para coisas que são novas e que ainda não temos respostas do ponto de vista de política pública", resume.
Para profissionais do setor, há demandas que despontam como centrais nesse momento de retomada. "A gente viveu alguns anos com a Ancine contra o cinema, não teve muitas ações, ficou sem ter aportes e os poucos que tiveram foram mais voltados para a produção. Falta um aporte importante no desenvolvimento, na finalização e na distribuição dos filmes", observa a produtora cearense Caroline Louise.
Ela esteve na Mostra de Tiradentes com o filme "A Filha do Palhaço", que foi exibido na Mostra Praça e saiu com o prêmio do júri popular. A obra é dirigida pelo cineasta Pedro Diógenes, que faz coro em relação à necessidade de descentralizações. "É preciso retomar e aprofundar o sistema de distribuição regional, continuar cada vez mais as cotas por região, classe, gênero. Investir mesmo nas políticas de descentralização dessa grana do audiovisual", afirma.
Pedro ainda ressalta a importância do debate da regulamentação de streamings. "Tem que se trabalhar para ter cota de cinema brasileiro neles, para eles pagarem um imposto que seja revertido à linguagem, como é a Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional), e também para se criar parâmetros de trabalho nas produções", lista.
Lançando olhar geral para o contexto, a curadora cearense Camila Vieira, que também atua na Mostra de Tiradentes, observa: "À revelia de um cenário nacional de destruição e desmonte que ocorreu nos últimos anos e ainda somado à pandemia que afetou o campo cultural como um todo, o cinema continuou sendo feito no Brasil. São cinemas atravessados por diferentes maneiras de organização e que reverberam uma energia coletiva que precisamos assumir mais frontalmente, agora com a retomada do Ministério da Cultura e com a refundação das políticas públicas nacionais para a cultura e para o audiovisual", defende.
Continuidade e avanços na esfera estadual
Na avaliação de nomes cearenses ou radicados no Estado, as perspectivas para a atual gestão da Secretaria da Cultura do Ceará — comandada pela secretária Luisa Cela, que já ocupava cargo executivo na gestão anterior — são positivas pela continuidade do projeto. No entanto, é necessário avançar.
"Ao mesmo tempo, o setor audiovisual na gestão do Fabiano (Piúba, titular da pasta entre 2017 e 2022) teve avanços e recuos", reflete o professor e pesquisador carioca Marcelo Ikeda, que leciona na Universidade Federal do Ceará.
"O edital de Cinema e Vídeo teve muitas descontinuidades, houve um edital cancelado por questões administrativas, o encerramento da Câmara Setorial do Audiovisual na Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará (Adece)... Houve alguns impasses para a política pública", elenca.
Ikeda ressalta que o "primeiro grande desafio direto e imediato" da gestão será a execução da Lei Paulo Gustavo. "A principal demanda que vai para os estados e municípios é ela, que é específica para o audiovisual e vai ter recursos consideráveis", afirma.
No entanto, o pesquisador e professor diz que a principal questão para a pasta é conseguir ter um olhar mais amplo de planejamento, indo além das chamadas públicas. "O desafio da Secult, para além de lançar editais que atendam o interesse da classe, é conseguir de fato fazer um planejamento estratégico a longo prazo das necessidades e características do setor", destaca.
Com a retomada de ações federais, a produtora Caroline Louise antevê um bom momento para as políticas estaduais. "Falando de Ceará nessa nova construção, é importante a retomada de contato com a Ancine, para voltar às linhas de arranjos regionais, que eram muito importantes", aponta.
"A gente tinha diálogo com o Fabiano, mas mesmo assim o cinema ficou numa situação difícil nos últimos anos. O que imagino pra a nova gestão é que ela continue com diálogo aberto, mas que a gente consiga avançar mais", resume Caroline.
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