Manifestantes tomaram as ruas em cidades iranianas em onda de protestos pedindo justiça por Mahsa Amini, jovem curda que veio a óbito em setembro passado após ser detida pela Polícia da Moralidade. Na ocasião, ela usava o hijab de forma “incorreta” para as normas de modéstia do país, e as circunstâncias da sua morte levantaram suspeitas diante da abordagem truculenta dos policiais.
O caso ganhou repercussão internacional e foi motivo de uma série de manifestações no Irã e no pelo mundo. Nas redes sociais, figuras públicas e outros internautas têm se posicionado cortando uma parte do cabelo em solidariedade a Mahsa Amini, em vídeo.
No Irã, a repressão violenta do governo aos protestantes, desde então, levou à morte de mais de 200 pessoas e à prisão de pelo menos 1.500. Esse é o número que chega até os jornais, mas quem estuda o Irã afirma que a fatalidade pode ser ainda maior.
A movimentação levantou mais uma vez o debate sobre os direitos das mulheres, apesar de contextualmente mal discutido por preconceitos relacionados à religião islâmica. Afinal, mesmo em países não-islâmicos, ser uma mulher com todos os direitos garantidos é mais raro do que se imagina.
A Polícia da Moralidade, ou Gasht-e-Ershad, é uma divisão da polícia no Irã responsável por compelir os códigos islâmicos, segundo os quais, quando em público, mulheres que já passaram pela puberdade devem cobrir a cabeça e o corpo, utilizando roupas largas e pouco chamativas. De acordo com a lei iraniana, mulheres que aparecerem em público sem o hijab podem ser condenadas a pena de reclusão de até dois meses ou a pagarem até 10.000 rials, equivalente a R$ 1.245,08.
Frequentemente, as patrulhas da Gasht-e Ershad abordam pessoas que, de alguma forma, ferem essas condutas e as conduzem a uma van que deve, então, levá-las a centros de reabilitação ou estações policiais. Mulheres que já foram levadas relatam ter passado por horas de insultos e humilhação.
O professor Renatho Costa explica que as raízes do islamismo na Pérsia, onde se encontra o atual território Iraniano, remontam do século VII. Com a chegada da religião, o modo de vida dos persas passa a se adequar à filosofia islâmica.
Como a cultura árabe já apresentava aspectos em comum com os ditos islâmicos, esses valores foram assimilados com mais facilidade do que em outras localidades. Mesmo na Pérsia, em regiões ocupadas por outros grupos étnicos não incorporaram esses costumes com a mesma força. “Os povos que conseguiram adotar os preceitos islâmicos, não subjugaram elementos culturais, exceto quando era incompatível, como, por exemplo, os zoroastristas continuaram existindo na região, mas de modo à parte”, relata.
No entanto, até o século vinte, o uso de hijab não era obrigatório no Irã, mesmo sendo amplamente usado pelas mulheres no país. Foi com a
“(A opressão dos direitos femininos) É sempre uma maneira de manter o poder do regime, e as mulheres são uma ameaça”, reforça Luíza Cerioli, doutora em Política do Médio Oriente pela Universidade de Kassel. Ela e o professor Roberto destacam como o aspecto religioso, sempre tão mirado na figura do hijab, não é o único fator - nem necessariamente o mais forte - na opressão feminina no Irã.
E antes de falar sobre isso, vale deixar muito claro: a luta feminista iraniana não é contra o hijab, mas pela liberdade de escolha e pelo fim da desigualdade. Tanto é verdade que, na Revolução de 1979, as mulheres estavam à frente dos protestos em parte por causa da proibição de usar o véu instituída pelo
O Hijab é o véu tradicionalmente utilizado por mulheres muçulmanas para cobrir cabelo e pescoço em público. Existem diferentes variações e formas de utilizá-lo - alguns exemplos são o Niqab, o Chador e a Burca.
Embora o Alcorão, livro sagrado do Islã, instrua as fiéis a cobrirem o colo e não mostrarem seus atrativos “a não ser aos seus esposos, seus pais, seus sogros, seus filhos, seus enteados, seus irmãos, seus sobrinhos, às mulheres suas servas”, a prática do uso de véus precede Maomé. O costume já estava presente no Império Sassânida e na civilização mesopotâmica. Na Mesopotâmia, o véu era considerado símbolo de respeito e status, usado para distinguir a aristocracia da classe servil.
Atualmente o hijab tem abrangência mundial, sendo utilizado como símbolo de modéstia para mulheres muçulmanas. No entanto, a vestimenta não é amplamente aceita em todos os países.
No início do ano, o parlamento francês votou a favor da proibição do uso do hijab em eventos esportivos. A proibição não é um evento isolado, uma vez que a França é um dos países que são constantemente alvo de críticas sobre a discriminação contra mulheres que usam hijab.
Em instituições de ensino, essa discriminação se acentua. Também neste ano, a discussão sobre o uso do hijab nas escolas nigerianas motivou um protesto violento que resultou na morte de quatro pessoas em Ijagbo. Outro caso que gerou revolta foi a definição do tribunal superior da região de Karnataka, na Índia, que proibiu o uso de vestimentas religiosas no ambiente escolar.
Por isso, o cenário fervoroso do Irã atual pode até perpassar pela falta de liberdade de vestimenta, mas é também um grito contra todas as outras opressões. Contra o aumento dos custos - como foi em 2019 pelo aumento do preço da gasolina -, a pouca qualidade de vida, a pobreza, a desigualdade, o autoritarismo… “É uma grande insatisfação com a quebra dos direitos humanos. Desde que o Raisi (Ebrahim Raisi, presidente do Irã) foi eleito, o conservadorismo tem crescido muito”, explica Luíza.
E enquanto o mundo aponta com muita facilidade a opressão feminina vivida no Irã, o cerceamento de direitos das mulheres em outros locais do globo são menos criticados. O Brasil, por exemplo, está ao lado de Suriname e de Fiji no Índice de Paz e Segurança da Mulher de 2021 e 2022 (WPSI, na sigla em inglês), calculado pela Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos. De 170 países analisados, o Brasil figura apenas no 80º lugar.
Para chegar nas pontuações, o WPSI considera vários dados relacionados à educação, inclusão econômica, representação parlamentar e segurança. Por aqui, a presença feminina na política é de apenas 14,8%. A inclusão financeira é de 67,5%, enquanto o acesso ao trabalho alcança só 44,7%. Quando o assunto é percepção de segurança na comunidade, somente 31,5% sentem-se seguras.
Outro índice coloca o Brasil bem mais abaixo do que gostaríamos de imaginar, empatado com países como a Mongólia, o Vietnã e a Venezuela. É o estudo Mulheres, Negócios e a Lei 2022, do Banco Mundial. Com a pontuação máxima de 100 pontos, o país brasileiro soma 85 pontos na corrida pelo amplo espaço feminino.
Outras nações latinoamericanas tomaram medidas legais para seguir subindo no ranking, como é o caso da Colômbia (com 84,4 pontos), mas o Brasil ficou estagnado. Sem pioras calculáveis na vida das mulheres, segundo os parâmetros do Banco Mundial, mas também sem nenhuma melhora.
“A realidade das mulheres ao redor do mundo, as vidas concretas delas, é muito variável. O que essa situação do Irã mostra é que estruturas patriarcais ao redor do mundo oprimem as mulheres de formas concretamente diferentes”, explica Tâmara Gonçalves, pesquisadora do Instituto Simone de Beauvoir (Canadá). De acordo com ela, o tipo de estrutura é a mesma (patriarcal, sexista e misógina), mas se apresenta de forma diferente em cada contexto nacional.
No Irã, o cenário é permeado por uma história de resistência à colonização - o país nunca foi colonizado -, a influência da religião na política e o impacto abrupto da Guerra do Iraque no processo da Revolução de 79.
Já na constituição brasileira, a colonização é um dos primeiros ingredientes para a condição feminina atual. Afinal, mulheres indígenas e negras foram, desde o começo, tratadas como inferiores - com elas, suas sabedorias e estilos de vida. “As mulheres estão entre os grupos mais explorados”, reafirma Celecina Celecina Veras Sales, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Gênero, Idade e Família (Negif).
A partir daí, o acesso das multifacetas mulheres brasileiras à educação, ao trabalho e à política são totalmente diferentes. Se elas conseguem estudar, enfrentam obstáculos para seguir carreira acadêmica. Se entram na política, sofrem com violência. E mesmo se ficarem só em casa, ou apenas caminharem na rua, já sofrem com o assédio sexual. “Como podemos pensar em um país democrático, quando não há respeito pelas mulheres?”, questiona Celecina.
E assim como no Irã o islamismo é usado como uma ferramenta de grupos conservadores para opressão, o Brasil também desfigura o cristianismo para atender os interesses de grupos políticos desfavoráveis a qualquer minoria. Principalmente quando o assunto é direitos reprodutivos e sexuais, ou o papel da mulher na sociedade.
E se o problema continua sendo a ideia do véu, Tâmara aproveita para comparar: “Ainda que a gente não tenha no Brasil essa questão do uso do véu, a gente tem outras questões ligadas à aparência das mulheres. Até hoje, em discussões sobre crimes sexuais em tribunais, você tem o debate de qual roupa a mulher estava vestindo, que são questões totalmente irrelevantes para a configuração do crime sexual.”
Em geral, a existência feminina nos países do sul global é dura, por influências diferentes, mas atreladas à lógica patriarcal e colonialista. Já no norte global, explorador histórico das nações “em desenvolvimento”, a posição da mulher é consideravelmente mais humanizada. É como a professora Celecina menciona: ficamos chocados ao ver a situação no Irã. Mas e aqui?
Por aqui, muitas mulheres são mortas por terminarem relacionamentos. São assassinadas por lutarem por inclusão e representatividade política. Morrem abandonadas em decorrência de um aborto clandestino, porque o País ainda tem limitações na legislação sobre o aborto (e mesmo os casos autorizados tentam ser derrubados por grupos políticos). No Brasil, mulheres ainda são ameaçadas, perseguidas e chantageadas por lutarem pelo meio ambiente, pelo combate ao fome, pelo fim da desigualdade. O Brasil pode não ter uma polícia da moralidade, mas usa da moralidade e do conservadorismo para oprimir.
No 1º semestre de 2022, o Ministério da Mulher registrou 31.398 denúncias e 169.676 violações envolvendo violência doméstica contra mulheres.
Uma mulher é vítima de feminicídio a cada 7 horas, ou seja, ao menos 3 mulheres morrem por dia no Brasil por serem mulheres.
No ano passado, uma menina ou mulher foi vítima de estupro a cada 10 minutos.
Das vítimas, 85,5% são meninas. Mais de 4 meninas de menos de 13 anos são estupradas por hora no Brasil.
Neste ano, 91 deputadas foram eleitas, o que representa apenas 17,7% do total.
Mulheres ocupam o cargo de prefeitas em apenas 12% dos municípios, em 2021.