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Fortaleza datada: fachadas de casas antigas preservam a memória da cidade
Reportagem Especial

Fortaleza datada: fachadas de casas antigas preservam a memória da cidade

Com datas cravadas no alto da fachada, imóveis resistem em meio à modernização urbana e ajudam a contar a história de Fortaleza

Fortaleza datada: fachadas de casas antigas preservam a memória da cidade

Com datas cravadas no alto da fachada, imóveis resistem em meio à modernização urbana e ajudam a contar a história de Fortaleza
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Em meio a prédios modernos e transformações constantes, Fortaleza ainda preserva vestígios de seu passado nas fachadas de algumas construções. São casas e prédios erguidos, sobretudo, nas primeiras décadas do século XX, que trazem cravado na alvenaria a data de construção. Um detalhe que, além de estético, carrega memórias e histórias de famílias e da própria Cidade.

Embora muitas dessas marcas estejam apagadas pelo tempo, pela falta de manutenção ou pelo desconhecimento sobre seu valor histórico, é possível encontrá-las, discretamente, em imóveis espalhados por diferentes bairros de Fortaleza. Registros que ajudam a contar parte da história arquitetônica e urbana.

 

Vestígios do passado em meio à Cidade que cresce

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Casa do Português, localizada na avenida João Pessoa, no bairro Damas, foi construída em 1950 e inaugurada em 13 de junho de 1953. A edificação, cujo nome original é Vila Santo Antônio, foi residência da família do comerciante português José Maria Cardoso.

Com três andares e duas rampas laterais que facilitavam o acesso de automóveis à frente e à lateral esquerda da casa, o imóvel se destacou como símbolo de ostentação na época.

Até hoje, chama a atenção de quem passa pela movimentada avenida. Em janeiro de 2006, por meio do Decreto Municipal nº 11.964, a Casa do Português foi tombada como bem cultural de natureza material. Vendido pelos herdeiros de José Maria em 1985, o imóvel não é utilizado como residência há anos.

Palacete Carvalho Mota, no centro de Fortaleza.(Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Palacete Carvalho Mota, no centro de Fortaleza.

Outro exemplo é o Palacete Carvalho Motta, localizado no Centro de Fortaleza. Com a inscrição do ano de 1907 em uma das janelas voltadas para a rua General Sampaio — data de sua construção — o imóvel foi residência da família do então vice-presidente do Estado, coronel Antônio Frederico de Carvalho Motta.

O prédio possui área construída de 1.344,20 metros quadrados e está situado na esquina das ruas Pedro Pereira e General Sampaio.

Fechado há mais de 20 anos, o Palacete foi objeto de um acordo firmado em 1982 entre o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) e a Fundação Nacional Pró-Memória, com o objetivo de restaurar o imóvel e instalar ali o Museu de Tecnologia do Combate às Secas.

Um dos primeiros bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan) no Ceará, em 1983, o prédio foi adaptado para abrigar o acervo da instituição, que deu origem ao atual Museu das Secas.

Fachadas de casas e prédios mais antigos costume antigo de marcar o ano de construção nas fachadas, resgatando a memória urbanada cidade na Rua Pedro Pereira.(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Fachadas de casas e prédios mais antigos costume antigo de marcar o ano de construção nas fachadas, resgatando a memória urbanada cidade na Rua Pedro Pereira.

A construção é um exemplar da arquitetura eclética do início do século XX, reunindo elementos de diferentes estilos. Com dois andares, possui janelas e portas em arco abatido no térreo. A fachada principal é marcada por uma balaustrada (parapeito) decorativa, elevada por pináculos, conferindo imponência à edificação.

 

Resistência e apagamento da memória familiar

Em levantamento realizado pelo O POVO em 2021, foi identificado que, ao longo das últimas seis décadas, ao menos 15 imóveis históricos de Fortaleza — entre tombados e não tombados — foram perdidos. Entre os exemplos está o Casarão dos Gondim e, mais recentemente, o Residencial Iracema, conhecido como Edifício São Pedro. Mesmo com tombamento provisório desde 2006, por meio do Decreto Municipal nº 11.960, o edifício foi demolido em março deste ano.

Ana Nina, de 61 anos, viveu praticamente toda a sua vida em um dos antigos casarões da rua Dragão do Mar, na Praia de Iracema, em Fortaleza. A casa onde ela nasceu e cresceu fazia parte de um conjunto de seis imóveis que pertencia à Associação dos Práticos dos Portos do Estado do Ceará — instituição que surgiu vinculada à Capitania dos Portos e depois se tornou uma corporação independente.

Atualmente, há um edifício no local onde a casa dela se encontrava(Foto: Divulgação/Carri Costa)
Foto: Divulgação/Carri Costa Atualmente, há um edifício no local onde a casa dela se encontrava

As residências eram datadas entre os anos de 1919 e 1929, segundo Ana, e exibia na própria arquitetura marcas do tempo, como portas e janelas grandes, além de vitrais que remontavam à Fortaleza de outras épocas.

A casa da família tinha fachada voltada para a rua Dragão do Mar e os fundos para a rua José Avelino, entre a Senador Almino e a Travessa Itapipoca. Por quatro anos, a família de Ana travou uma batalha na Justiça para evitar a demolição dos imóveis. 

Sem condições de arcar com custos judiciais e aluguel, Ana conta que a família aceitou uma indenização considerada irrisória e deixou o local. “Foram todas demolidas. Eu não me conformava, porque estavam acabando com toda a história da Praia de Iracema antiga”, lamenta.

Após o despejo, em 2002, e o recebimento da indenização, em 2006, a família encontrou uma nova casa na comunidade do Poço da Draga, onde vive desde janeiro de 2007. Permanecer na região foi uma escolha pela memória afetiva e pela ligação construída com o território.

Para Ana, as datas nas fachadas iam além de um detalhe estético. “É um documento arquitetônico, que marca a arquitetura de uma época, mas também guarda toda a história de uma família que viveu naquele lugar”, reflete, lembrando com tristeza que perdeu parte dos arquivos e fotos da família durante o processo de demolição.

 

Datas em fachadas têm raízes na cultura latina

O arquiteto e urbanista Romeu Duarte, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), especialista em Patrimônio Histórico Cultural, explica que a prática de marcar a data em residências tem raízes na cultura latina, herdada do Império Romano e trazida ao Brasil pelos colonizadores.

Segundo Romeu, a tradição era especialmente adotada pela classe dominante, tanto na arquitetura civil quanto na religiosa e na militar, como uma forma de valorização e dignificação do imóvel. “Era uma maneira de indicar que aquele edifício era algo especial”, afirma.

A prática foi, por muito tempo, mais comum no Centro de Fortaleza, onde se concentravam os edifícios mais importantes. Como o tempo e a expansão da Cidade, esse costume se espalhou para bairros considerados emergentes ou nobres da época, como Benfica, Jacarecanga e Aldeota, acompanhando os deslocamentos da elite.

“Expandiu-se para áreas da elite, associado a um certo requinte e à valorização da família proprietária”, completa o professor.

A arquiteta e professora Jacque Holanda, com experiência nas áreas de Patrimônio, História da Arte e da Arquitetura, destaca que o costume de marcar datas nas fachadas se fortaleceu em Fortaleza com a chegada da arquitetura eclética, entre o fim do século XIX e os anos 1930.

“O ecletismo, com forte influência francesa, valorizava elementos decorativos com adornos neobarrocos e neogóticos, expressando status e poder econômico”, esclarece.

 Situação de como está a fachada da Santa Casa da Misericórdia no Centro.(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Situação de como está a fachada da Santa Casa da Misericórdia no Centro.

“Fortaleza não ficou de fora desse movimento”, destaca Jacque, citando exemplos como o antigo Banco Frota Gentil (1925), hoje agência Itaú na rua Floriano Peixoto; o Hotel Brasil (1915), hoje Bar Lions, na Praça dos Leões; e a Santa Casa da Misericórdia, com datas de 1861 e 1914.

Esse movimento também acompanha o processo de crescimento econômico e a chegada de novas tecnologias construtivas na Cidade. Foi nesse contexto que estilos como Art déco começaram a surgir em Fortaleza, marcando o início da verticalização, por volta dos anos 1940. “Basta olhar para edifícios da rua Major Facundo ou a Praça do Ferreira, como o Cineteatro São Luiz, que representam bem esse momento de transformação no cenário urbano”, completa a arquiteta.

 

Patrimônio familiar atravessa gerações

Observando atentamente, nota-se que moradias menores também seguiam as tendências da época, e isso não se restringia às casas mais abastadas. Uma via, em especial, ainda preserva essa tradição. Em meio aos prédios e casas recém-construídas, ainda é possível encontrar, na rua Visconde do Rio Branco, no Centro, casarões que preservam sua estética original, mesmo com sinais de desgaste do tempo.

No topo dessas construções, as datas gravadas nas fachadas chamam a atenção de quem passa e ajudam a contar a história da Cidade.

Embora estejam apagadas pelo tempo, ainda é possível ver a data de 1916 cravada no topo da residência do Sr. Raul.(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Embora estejam apagadas pelo tempo, ainda é possível ver a data de 1916 cravada no topo da residência do Sr. Raul.

Um dos exemplos de resistências é a casa nº 3260, de Raul Monteiro, psicólogo de 75 anos. A fachada carrega a marca de 1916, ano de construção do imóvel que foi comprado por seus avós em 1935. Raul nasceu, cresceu e permanece vivendo na casa com sua família até hoje, onde também funciona sua clínica de Psicologia. “Essa casa é meu chão, a minha infância”, define.

Embora não saiba quem foi o primeiro proprietário antes dos avós, Raul conta que seu pai chegou à casa ainda aos 15 anos, acompanhando os próprios pais. Foi ali que ele e os irmão cresceram, cercados pelas memórias que carregam até hoje. “Brincava no quintal e me escondia na caixa d'água antiga”, relembra.

Imóveis antigos na Visconde do Rio Branco preservam data nas fachadas. a casa 3260, carrega a marca de 1916 no topo da fachada. (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Imóveis antigos na Visconde do Rio Branco preservam data nas fachadas. a casa 3260, carrega a marca de 1916 no topo da fachada.

Após o falecimento da avó, o psicólogo decidiu comprar a parte dos irmãos para evitar que a casa fosse vendida e, possivelmente, demolida. O imóvel, ao longo dos anos, também abrigou uma fábrica de bombons, criada por seu pai, e, antes disso, uma padaria mantida pelo avô.

 

Datas nas fachadas: vestígios do tempo cravados na arquitetura

O arquiteto e urbanista Diego Zaranza, integrante do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Ceará (CAU-CE) e gestor de projetos da Secretaria da Cultura do Estado (Secult) destacou a evolução histórica das edificações urbanas, a responsabilidade pela preservação e os desafios impostos pelo atual cenário imobiliário.

Segundo ele, a prática de inscrever datas nas fachadas é milenar, utilizada por civilizações como a romana, egípcia e grega para marcar feitos históricos, nomes de patronos ou o tempo das construções. Ainda que tenha perdido força nas moradias durante a Idade Média, essa tradição se manteve viva em templos e edifícios públicos — e seguiu presente nos centros urbanos ao longo dos séculos seguintes, deixando registros materiais importantes para a leitura da Cidade.

“Do ponto de vista da arquitetura e do urbanismo, essas datas são cruciais para a narrativa histórica. Elas permitem compreender a evolução construtiva dos bairros e ajudam a estruturar temporalmente o espaço urbano, revelando camadas de ocupação e transformação”, afirma o especialista.

Especializado em patrimônio, o arquiteto define essas construções como verdadeiras “cápsulas do tempo”, fundamentais para decifrar o desenvolvimento das cidades. Segundo ele, as datas, associadas à análise técnica da edificação, ajudam a identificar a evolução dos materiais e técnicas construtivas empregadas em cada época.

Casas do século XVIII, por exemplo, utilizavam alvenaria de pedra ou taipa, enquanto construções do final do século XIX já empregavam tijolos cerâmicos, ferro fundido e até os primeiros usos do concreto armado.

FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 28-05-2025: Fachadas de casas e prédios mais antigos costume antigo de marcar o ano de construção nas fachadas, resgatando a memória urbanada cidade na Rua José Avelino. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 28-05-2025: Fachadas de casas e prédios mais antigos costume antigo de marcar o ano de construção nas fachadas, resgatando a memória urbanada cidade na Rua José Avelino. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)

A marcação do ano na fachada também pode indicar mudanças estruturais importantes, como a transição do uso de técnicas rudimentares para sistemas mais complexos, incluindo vigas metálicas ou fundações aprofundadas. Além disso, funcionam como referência para mapear estilos arquitetônicos predominantes, como o neoclássico ou modernismo, e entender o contexto sociocultural de cada época.

“Para um urbanista, caminhar por esses bairros é como folhear um livro a céu aberto. As datas nas fachadas revelam as camadas do tempo e ajudam a compreender as transformações que moldaram o espaço que habitamos. São testemunhos materiais da nossa história — e um recurso inestimável para a preservação e o planejamento urbano”, completa.

 

Regras e limites para preservar o passado

A preservação do patrimônio arquitetônico passa por um conjunto de regras, leis e diretrizes técnicas que orientam reformas e garantem que a história dos imóveis siga visível para as gerações futuras. Órgãos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), além de secretarias municipais e estaduais de Cultura, são responsáveis por emitir as instruções de tombamento, que funcionam como verdadeiros manuais para proprietários de bens tombados.

Casarão na Rua José Avelino, 233, datado com 1923. Segundo infomações, o local abrigou uma prensa de algodão.(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Casarão na Rua José Avelino, 233, datado com 1923. Segundo infomações, o local abrigou uma prensa de algodão.

Essas instruções definem claramente o que pode ou não ser modificado em imóveis protegidos. “Esses documentos dizem, por exemplo, que a fachada não pode ser alterada, mas que o interior pode ser adaptado. Tudo depende da especificidade de cada bem, com base em estudos e cartas patrimoniais”, explica Diego.

As instruções podem incluir restrições sobre pisos, esquadrias, telhados, fachadas, ou mesmo estruturas internas, dependendo da relevância histórica e cultural de cada elemento.

A legislação de tombamento não impede reformas ou modernizações, desde que elas respeitem os elementos protegidos. Em muitos casos, adaptações são necessárias, como instalação de banheiros acessíveis, eficiência energética ou atualizações de segurança, desde que isso não descaracterize o imóvel.

Fortaleza conta com a Lei nº 9.347, que regulamenta o tombamento de bens culturais. A legislação também prevê as chamadas “poligonais de entorno”, que funcionam como zonas de amortecimento em torno dos bens tombados, impedindo que construções vizinhas destoem visualmente da paisagem histórica.

 

Pressão imobiliária e memória ameaçada

Esses imóveis com datas nas fachadas, muitas vezes localizados em bairros centrais ou em áreas de expansão urbana, enfrentam hoje uma tensão constante entre memória e mercado. Inseridos em locais valorizados da Cidade, ocupam terrenos de alto interesse para o setor imobiliário, mas nem sempre contam com proteção efetiva.

O Ceará possui um total de 121 bens tombados, distribuídos entre esferas federal, estadual e municipal. Desse total, 22 são tombados pela União, 46 pelo Governo do Estado e 53 pela Prefeitura de Fortaleza.

Além disso, mais de 50 bens são tombados pelo Município e outros 45 estão em processo de tombamento provisório pela Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor), segundo levantamento do Anuário do Ceará atualizado até 2024.

Situado na rua General Sampaio, no Centro de Fortaleza, o Casarão dos Gondim foi erguido em 1912 por Arlindo Granjeiro Gondim e por muitos anos foi um ponto de encontro musical na cidade. Mesmo em processo de tombamento, o casarão foi demolido em 2021.  (Foto: Foto: Aurélio Alves)
Foto: Foto: Aurélio Alves Situado na rua General Sampaio, no Centro de Fortaleza, o Casarão dos Gondim foi erguido em 1912 por Arlindo Granjeiro Gondim e por muitos anos foi um ponto de encontro musical na cidade. Mesmo em processo de tombamento, o casarão foi demolido em 2021.

Daniel alerta ainda que o maior desafio na preservação é a pressão da especulação imobiliária. Em áreas centrais de cidades como Fortaleza, há tendência de demolição ou descaracterização de imóveis históricos para dar lugar a empreendimentos modernos ou estacionamentos. “É uma ameaça real à memória da Cidade”, pontua.

Além dos impactos visuais e patrimoniais, a descaracterização do entorno também contribui para o apagamento da história local. Ainda de acordo com Daniel, sem a paisagem original, a compreensão sobre a formação dos bairros, o modo de vida de outras épocas e os estilos arquitetônico se perde. "A demolição de imóveis com datas e inscrições não apaga apenas paredes — apaga marcos de identidade coletiva."

Apesar dos riscos, há casos bem-sucedidos. O arquiteto cita o imóvel localizado na avenida Santos Dumont, nº 938, construído em 1919 e recentemente tombado pelo Município de Fortaleza. O lugar foi restaurado com respeito à sua história e hoje abriga uma padaria/cafeteria — a Casa Pâine Pães Artesanais. “É um exemplo de que é possível conciliar preservação e uso comercial, desde que com planejamento e responsabilidade”, defende.

A pesquisadora Jacque Holanda alerta que não há uma política específica de proteção para casas como a de Raul Monteiro, no Centro. Conforme ela, a preservação depende da inclusão nos inventários de bens históricos ou do processo de tombamento, mas o risco de perda é constante. “É urgente difundir políticas que promovam a conscientização e também oferecer apoio financeiro aos proprietários. O patrimônio é uma herança coletiva e nosso legado para gerações futuras”, ela ressalta.

 

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