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Mucuripe, uma comunidade entre a memória e o progresso
Reportagem Especial

Mucuripe, uma comunidade entre a memória e o progresso

Acompanhe O POVO+ em um passeio pelo bairro que um dia foi uma vila de pescadores, mas que hoje é um território que carrega em si todas as contradições de uma grande cidade, da violência urbana à especulação imobiliária.

Mucuripe, uma comunidade entre a memória e o progresso

Acompanhe O POVO+ em um passeio pelo bairro que um dia foi uma vila de pescadores, mas que hoje é um território que carrega em si todas as contradições de uma grande cidade, da violência urbana à especulação imobiliária.
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Na praça Nossa Senhora da Saúde, no coração do Grande Mucuripe, um grupo de pessoas se reúne em frente à igreja. Usando roupas leves, óculos de sol e carregando garrafas de água, alguns se juntam para conversar.

Procurando espaço entre os fiéis que acompanhavam a missa das 8h da manhã, uma parte do grupo olhava um mapa enquanto outra fazia alongamentos em preparação para as duas horas de caminhada pelas ruas do Mucuripe.

Trilha urbana pelo Mucuripe (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Trilha urbana pelo Mucuripe

Todos estávamos ali para participar da trilha urbana, atividade promovida desde 2017 pelo Acervo Mucuripe, e guiada por Diêgo di Paula, técnico em Guia de Turismo com foco no turismo cultural e comunitário e nativo do bairro. 

O objetivo é apresentar uma das mais antigas comunidades de Fortaleza, que luta para preservar a memória coletiva das comunidades que fazem parte da Zona Especial de Interesse Social do Mucuripe (Zeis Mucuripe). 

A Zeis é um instrumento presente no Plano Diretor que garante que uma determinada área da cidade seja reservada e planejada para garantir moradia digna e infraestrutura para famílias de baixa renda, evitando que sejam removidas. A área da poligonal da Zeis Mucuripe é de 840.500,03 m², e está inserida em quatro bairros da cidade de Fortaleza: Varjota, Mucuripe, Vicente Pinzon e Cais do Porto.

Mapa do Grande Mucuripe com etiquetas que informam a nomenclatura original dos territórios(Foto: Mateus Mota / OPOVO+)
Foto: Mateus Mota / OPOVO+ Mapa do Grande Mucuripe com etiquetas que informam a nomenclatura original dos territórios

O que um dia foi uma vila de pescadores, hoje é um território que carrega em si todas as contradições de uma grande cidade, da violência urbana à especulação imobiliária.

Em julho de 2025, O POVO+ acompanhou o percurso de uma das trilhas e traz nesta reportagem o retrato de uma comunidade cercada entre a memória e o progresso.


 

Do bucolismo à urbanidade, o Mucuripe concentra todas as questões que afetam a Cidade

"Bem-vindo ao abandono". A frase grafitada no centenário Farol do Mucuripe passou oito anos denunciando o sentimento dos moradores da região.

Somente em janeiro de 2025, com o avanço das obras de restauração do Farol, a tinta fresca veio para renovar a esperança em uma história diferente. Mas nem sempre uma mão de tinta consegue apagar o dano.

Promessa de restauro ao Farol do Mucuripe(Foto: AURÉLIO ALVES/O POVO)
Foto: AURÉLIO ALVES/O POVO Promessa de restauro ao Farol do Mucuripe

O Grande Mucuripe, hoje, é o retrato de uma Fortaleza que falhou em proteger. Cercado pelos prédios gigantescos que quase riscam o céu, a maior parte do bairro ainda vive em casas de teto baixo, telhas aparentes e coladas em córregos.

A história do bairro se confunde com a história do Brasil. De acordo com o historiador Raimundo Girão, no livro Pequena História do Ceará, meses antes da chegada de Pedro Álvares Cabral, o navegador espanhol Vicente Pinzón teria desembarcado na praia do Mucuripe. 

A evidência histórica mais forte de que Pinzón teria chegado ao Ceará foi um mapa feito em outubro de 1500 pelo navegador e cartógrafo espanhol Juan de la Cosa. Ele não esteve na viagem de Pinzón, mas documentos históricos apontam que ele teria se baseado em relatos do navegador. Além disso, seu mapa  traz contornos que demonstram conhecimento do litoral nordestino, particularmente do cearense. 

Confeccionado pelo navegador e explorador espanhol Juan de la Cosa, a pedido dos Reis Católicos, o mapa destaca-se por ser a mais antiga e bem conservada representação inequívoca do continente americano (Foto: Domínio Público / Acervo do Museu Naval de Madrid / Wikimedia)
Foto: Domínio Público / Acervo do Museu Naval de Madrid / Wikimedia Confeccionado pelo navegador e explorador espanhol Juan de la Cosa, a pedido dos Reis Católicos, o mapa destaca-se por ser a mais antiga e bem conservada representação inequívoca do continente americano

A área foi utilizada como um dos portos naturais da costa cearense e foi palco de importantes contatos iniciais com os europeus no século XVII, tornando-se um porto de escambo, segundo um estudo da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

A construção do farol, iniciada em 1840 e concluída em 1846, foi um marco para a navegação e deu origem a um importante elemento da identidade local. Um século depois, a enseada do Mucuripe foi escolhida para ser a casa do porto de Fortaleza, que ficou pronto em 1953. 

Com a instalação do porto, vieram as empresas para o entorno e o crescimento econômico alavancou as transformações no território, que acabou deixando de ser apenas uma vila de pescadores e se aproximou do bairro que é hoje. 

Imagem aérea do Cais do Porto. Companhia Docas do Ceará no bairro Mucuripe (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Imagem aérea do Cais do Porto. Companhia Docas do Ceará no bairro Mucuripe

A partir de 1980, o Ceará vivenciou o desenvolvimento da atividade turística, o que consolidou a especulação imobiliária no litoral de Fortaleza, mais precisamente na região do Mucuripe. As casinhas e os espaços vazios foram dando lugar aos prédios, cada vez mais altos. 

Junto dos grandes edifícios, vieram para o bairro pessoas de média e alta classes. Para que esses novos espaços de moradia fossem construídos, a população de origem, os chamados “mucuripeiros”, sofreram, ou ainda sofrem, grandes pressões por parte dos agentes imobiliários, que transformaram o Mucuripe num grande canteiro de obras.

Mas verticalização acessível aos moradores é a feita pelas próprias mãos. Casas são construídas umas sobre as outras em vielas e becos que guardam a memória de uma cidade que tenta chegar ao futuro sem ter noção de onde veio.

 

Ao lado dos prédios luxuosos, assentamentos precários marcam a paisagem. Confira no mapa

O processo de remoção de uma comunidade na rua Senador Machado, nas proximidades do Parque Bisão, ainda é uma cicatriz dolorida para a comunidade.

Fruto da primeira Operação Urbana Consorciada (OUC) do Município, aprovada em 2000, durante a gestão de Juraci Magalhães (1997-2004), a criação do parque envolveu a Nordeste Participações (Norpar), empresa que comprometeu-se a financiar e a executar a requalificação e urbanização da foz do Maceió.

 

Envolta em uma série de polêmicas que iam desde a intervenção no curso do riacho e remoção da mata ciliar original existente, até a desapropriação dos moradores tradicionais, a OUC Parque Foz do Riacho Maceió só começou a ser executada em 2014, na gestão do então prefeito Roberto Cláudio (2013-2020).

Assim, cercado por árvores, pontes e jardins, foi construído o Parque Arquiteto Otacílio Teixeira Neto, ou Parque Bisão, que passou a ter uma integração direta com o desenho urbanístico do riacho e foi de área verde pública a elemento de valorização dos imóveis, erguidos já na gestão do prefeito Sarto Nogueira (2021-2024).

Do mar, vista do paredão de prédios da avenida Beira Mar, em nova tendência de verticalização ainda maior. Ao centro, o Residencial One, em obras, que será o edifício mais alto de Fortaleza, com 170m(Foto: CLÁUDIO RIBEIRO)
Foto: CLÁUDIO RIBEIRO Do mar, vista do paredão de prédios da avenida Beira Mar, em nova tendência de verticalização ainda maior. Ao centro, o Residencial One, em obras, que será o edifício mais alto de Fortaleza, com 170m

"Vai querer R$ 1 mil ou não vai? Se o seu vizinho saiu, você vai sair também". É assim que Diêgo di Paula relata como foi a abordagem das construtoras envolvidas na requalificação do Parque e na construção dos prédios. Ele classifica como "uma remoção, visto que os moradores não tinham poder de escolha".

Um artigo do Observatório de Remoções, do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (Lehab/UFC), aponta que não houve uma articulação formal dos moradores para impedir a saída do local. De acordo com o artigo, as construtoras ligadas à Norpar, dona do terreno, começaram a fazer propostas de compras a algumas pessoas da rua.

O estudo indica que, durante esse processo, as casas que eram compradas eram demolidas e o entulho resultante era deixado no local, acumulando lixo, baratas e ratos, tornando a moradia na rua mais insalubre e insegura. A mesma publicação aponta que, por volta de 2015, após a compra das casas, algumas famílias tinham menos de um dia para deixar o local. 

Hoje, os dois prédios mais altos de Fortaleza, o One Residencial e o Sky Residencial, se erguem no espaço. Apartamentos de até quatro suítes são vendidos por, no mínimo, R$ 9 milhões, conforme O POVO+ apurou em uma pesquisa em sites especializados em negócios imobiliários. 

Trilha urbana do Mucuripe (Foto: Mateus Mota / OPOVO+)
Foto: Mateus Mota / OPOVO+ Trilha urbana do Mucuripe

Um dos destinos da população que saiu do grande Mucuripe foi o Serviluz. Do ponto de vista de Diêgo, o crescimento da cidade segue uma lógica de "esconder" aqueles considerados "feios" e "pobres".

Para ele, a comunidade do Serviluz foi colocada "no olho do furacão", no meio de projetos urbanos e com um alto valor de terra, mas com desenvolvimento lento de infraestrutura.

“A gente vê tudo aqui (na avenida Abolição) urbanizado, diferente da realidade que encontramos duas ruas depois da Abolição. A gente já começa (a ver a) rua apertando, ausências de calçadas… E por isso falamos em Fortalezas, né?”, aponta Diêgo.

No Grande Mucuripe, a atividade pesqueira e de fabricação e manutenção de pequenas embarcações ainda resiste, apesar de tímida (Foto: Mateus Mota / OPOVO )
Foto: Mateus Mota / OPOVO No Grande Mucuripe, a atividade pesqueira e de fabricação e manutenção de pequenas embarcações ainda resiste, apesar de tímida

Fato é que, até o final do século XIX, a elite fortalezense demonstrava uma relação de desprezo pelo mar. Áreas costeiras, como a Praia de Iracema, eram desvalorizadas e ocupadas por populações mais pobres e por pescadores, além de abrigar edifícios considerados insalubres, como a Santa Casa, a Cadeia Pública e o cemitério São João Batista.

Um estudo feito na UFC indica que, nas primeiras décadas do século XX, a influência europeia e o discurso médico-higienista levou à valorização de caminhadas na praia, banhos de mar e tratamentos terapêuticos. Isso teria transformado a percepção negativa sobre o ambiente marítimo.

Conforme a historiadora e memoralista Leila Nobre, problemas estruturais no porto da Praia de Iracema levaram à transferência da estrutura, em 1933, para a enseada do Mucuripe. A construção do Porto do Mucuripe (1939-1940) causou impactos de enormes proporções, incluindo a degradação de dunas e a formação da Praia Mansa devido ao molhe do porto. 

Leila, que desde 2009 mantém o blog Fortaleza Nobre — dedicado à memória da Fortaleza antiga — afirma que a intervenção no Mucuripe provocou um processo de intensa erosão na Praia de Iracema, destruindo casarões e acelerando o deslocamento das funções de lazer e moradia da elite para o leste. 

Foi assim que o Meireles se tornou o novo foco da elite, com a transferência de clubes sociais, como o Ideal Clube e o Náutico, e a construção de novos empreendimentos de alto padrão.

Trilha urbana pelo Mucuripe (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Trilha urbana pelo Mucuripe

 

 

Grande Mucuripe: uma história que vive nos olhos de quem conta

No percurso, a trilha saiu da avenida Abolição e virou à esquerda na rua Pedro Rufino. Na esquina, dois terrenos vazios e cercados denunciam os conflitos entre a comunidade tradicional e a especulação imobiliária. Um deles já abrigou um popular cinema de rua, o Cine Cardoso.

As pessoas costumavam a se referir ao local como “Cine Pulga”, pois era comum que as pessoas pegassem o famoso “bicho-de-pé” depois das sessões.

Anos depois, a esquina abrigou a churrascaria Sal e Brasa, um local muito popular para cidade durante os anos 1990 e 2000. O empreendimento recebia muitas confraternizações de empresas, aniversários e outras comemorações, e empregava moradores do entorno.

O antigo terreno do Cine Cardoso e que também já abrigou uma famosa churrascaria, hoje está vazio e cercado por um gradil (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA O antigo terreno do Cine Cardoso e que também já abrigou uma famosa churrascaria, hoje está vazio e cercado por um gradil

Do lado oposto da rua, um pedaço de terra abriga árvores frutíferas, como tamarindo, caju e seriguela. Até 2022, o terreno contava apenas com uma cerca, e os moradores podiam aproveitar as frutas abundantes da estação. Pouco depois da Copa do Mundo, um muro foi erguido e um portão instalado.

Corre à boca miúda que o lote pertence a uma família industrial cearense, e eles estariam em negociação com o setor imobiliário. Hoje, o paredão aparta a memória do território, enquanto o metro quadrado da região passa a valer cada vez mais.

Conforme o índice FipeZAP de julho de 2025, a região da Cidade que engloba os bairros Mucuripe, Varjota e Meireles tem o preço médio do metro quadrado variando entre R$ 9.874 e R$ 11.971.

Com a construção de condomínios, as ruas do Mucuripe vão sendo ocupadas por filas de carros, cercas-vivas e pessoas que estão ali porque querem morar com vista para o mar. Enquanto isso, o trabalho do Acervo Mucuripe e a articulação entre lideranças comunitárias, a vida e a memória da região continuam a prosperar.

É o que relata dona Evânia Albuquerque, 65, pintora, artista e uma das guardiãs do Beco dos Cará. A viela resguardada por um portão guarda a memória do bairro e dos mestres jangadeiros que lá moravam. Um deles, avô de Evânia, está eternizado na parede de sua casa.

Trilha urbana pelo Mucuripe(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Trilha urbana pelo Mucuripe

Ele foi um dos pioneiros do bairro, e quem primeiro teve a ideia de abrir um caminho no meio do terreno para dar passagem aos vizinhos e aos estudantes da escola municipal Bárbara de Alencar, que fica nas imediações do Beco. Dona Evânia se orgulha da frase gravada em sua parede: "Nossa vida, nossas histórias".

"Me incomoda quando dizem que moramos em uma favela, com aquele tom de desprezo. Aqui é uma passarela, é um caminho aberto pelos nossos avós e hoje todo mundo pode caminhar", relata Evânia. "Eu me sinto muito honrada de vocês entrarem aqui."

"Agora todos vocês fazem parte dessa história, parte dessa comunidade e vão explicar para os outros, onde quer que vocês forem, que aqui nós vivemos de uma forma honesta, exercendo nossa cidadania", disse entre aplausos do grupo.

A turismóloga Riana Rocha diz ter ficado impressionada com a história do Beco dos Cará(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA A turismóloga Riana Rocha diz ter ficado impressionada com a história do Beco dos Cará

A turismóloga Riana Rocha fez questão de pontuar a importância do local. “Para quem vem de fora nunca poderia imaginar que aquele portão ia dar acesso a uma cidade”, afirma.

“É incrível, fui entrando e fui abrindo possibilidades. Fiquei pensando ‘gente, que lugar é esse? Que coisa maravilhosa!’ Parece que, a partir daquele portão, se abre um mundo”, conclui.

De fato, a cidade que se abre depois do Beco dos Carás em pouco se parece com que percebemos até a altura da av. Abolição. Todas as pessoas se conhecem, não só pelo nome, mas também pela profissão.

O Grande Mucuripe não se deixa definir pelos estigmas de pobreza e violência, e sim pela  poderosa afetividade que permeia cada esquina(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA O Grande Mucuripe não se deixa definir pelos estigmas de pobreza e violência, e sim pela poderosa afetividade que permeia cada esquina

A salgadeira, o garçom, a vendedora de pratinho, a agente de saúde e o barbeiro não têm só um endereço, mas um lugar onde a identidade é tecida pelas histórias compartilhadas, pelas memórias afetivas e pela noção de pertencimento a uma comunidade viva.

Essa é a verdadeira face do Grande Mucuripe: uma comunidade que se define pela resiliência de seus laços, pela riqueza de suas histórias e pela poderosa afetividade que permeia cada esquina, cada casa e cada vida.


 

Uma questão de respeito

Seguindo na trilha, chegamos até a estação do VLT, que estava fechada por ser um domingo. Várias pessoas, porém, atravessavam os trilhos e cruzavam os gradis de proteção, retorcidos em vários pontos, para fazer passagem.

“Criticam as pessoas por passarem por cima do trilho, mas ninguém pensou nisso quando fecharam essas entradas para o bairro. Hoje só temos duas”, comentou Diêgo.

O trecho da obra do ramal Parangaba-Mucuripe do Metrofor, que começou em 2011, desapropriou dezenas de famílias, e desde então representa para a comunidade o atropelo de caminhos e vidas.

Estação VLT do Mucuripe(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Estação VLT do Mucuripe

Por segurança, nosso grupo atravessou a avenida pela passarela, em um trajeto que dura cinco minutos. Cruzar os trilhos leva menos de 60 segundos.

Não é por menos que a maioria das pessoas não usa a estrutura de concreto, cuja base também serve de abrigo para pessoas em situação de rua. Outras questões permeiam o território, como o conflito entre facções criminosas. 

A violência não se restringe a confrontos pontuais, mas se manifesta em uma série de consequências que afetam a segurança, a liberdade e o bem-estar da comunidade. A presença de grupos criminosos impõe uma constante tensão no dia a dia.

Ruas e vielas, que antes eram espaços de convívio e socialização, tornam-se zonas de risco, limitando a circulação de pessoas.

A violência também fragiliza os laços comunitários. A desconfiança pode surgir, dificultando a solidariedade e a articulação entre vizinhos, elementos essenciais para a resiliência do Grande Mucuripe.

Além disso, a estigmatização da região, muitas vezes associada à criminalidade, dificulta o acesso a serviços básicos e a oportunidades de trabalho para os moradores, perpetuando um ciclo de vulnerabilidade social.

Trilha urbana pelo Mucuripe (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Trilha urbana pelo Mucuripe

Um episódio de preconceito nunca saiu da memória de dona Evânia: foi quando ela atuava como monitora de Arte Educação em uma escola, e sentou-se ao lado de uma pessoa durante a reunião. 

Ao se aproximar, a outra pessoa rapidamente pegou seu celular e o escondeu em uma gaveta. A artista, que se descreve como "muito observadora", percebeu o gesto e decidiu confrontar a situação diretamente. "Não se preocupe, não, com seu celular", disse. Ela fez questão de esclarecer a desconfiança, afirmando que, embora more em uma favela, não é "esse tipo de gente de carregar nada de ninguém".

Ela mencionou que seu marido trabalha com eletrônicos e frequentemente traz aparelhos para consertar, reforçando que não havia motivo para a apreensão. Evânia expressou ter se sentido "super incomodada" com a situação. Este episódio, segundo ela, é apenas um dos vários preconceitos que se enfrenta ao dizer de onde vem.

A luta pela preservação da memória e da identidade do Mucuripe, tão enfatizada por projetos como o Acervo Mucuripe, precisa coexistir com a batalha diária pela segurança e pela dignidade em um território marcado por complexas contradições urbanas.

Diêgo relatou que o trajeto planejado inicialmente terminaria no mirante, mas os conflitos entre organizações criminosas que estavam acontecendo naquela semana impossibilitaram o deslocamento.

Isso ficou nítido ao chegarmos na travessa São João. Já se aproximando das escadarias, homens parados em pontos estratégicos observavam a movimentação do grupo.

Trilha urbana pelo Mucuripe (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Trilha urbana pelo Mucuripe

A trilha encerrou perto do campo do Terra & Mar, onde a historiadora Ianna Uchôa, do Acervo Mucuripe, explicou sobre a luta dos jangadeiros em busca de direitos trabalhistas, em especial de Mestre Raimundo, homenageado com um mural.

Para ela, o legado desses homens e mulheres está diretamente associado à história e memória do Grande Mucuripe. “Tem que falar do mestre! Conte a história dos pescadores!”, gritou um homem que estava sentado na esquina oposta. Ele se aproximou e perguntou, abaixando o tom de voz, se o grupo subiria até o mirante.

Diante da negativa, ele assentiu com a cabeça: “É melhor mesmo, mas volte outro dia, tem que subir.”

A história dos mestres jangadeiros ainda é contada por seus descendentes no grande Mucuripe (Foto: Mateus Mota / OPOVO )
Foto: Mateus Mota / OPOVO A história dos mestres jangadeiros ainda é contada por seus descendentes no grande Mucuripe

"Esses espaços da cidade, intencionalmente não vistos, precisam ser preservados. Estamos aqui para dizer que existimos, temos histórias e potência enquanto sujeitos e artistas", concluiu Ianna.

Diante das múltiplas camadas que compõem o Grande Mucuripe — da resiliência de seus moradores à complexidade de seus desafios urbanos —, a trilha é um convite a olhar além das aparências, a reconhecer a riqueza das histórias invisibilizadas e a compreender que, apesar das cicatrizes do "progresso", a potência do Mucuripe reside em sua capacidade de preservar sua identidade, seus laços e a voz de seu povo.

 

 

Serviço

O que: Trilha urbana do Mucuripe

Quando acontece: sob demanda, de acordo com a agenda do Arcevo Mucuripe

Quem pode participar: grupos a partir de 10 pessoas

Como agendar: entrando em contato com o Acervo Mucuripe, pelo whatsapp (85) 99957-3424

Instagram: @acervomucuripe

"Me conta, você imaginava que o Mucuripe guardava tantas histórias assim? E no seu bairro, quais histórias e estórias se escondem? Eu sou Mateus Mota, repórter do O POVO+ e quero ler o seu comentário aqui embaixo. "

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