
Durante quase uma década, Palmeiras e Flamengo deixaram de ser apenas protagonistas esporádicos para se tornarem símbolos de uma nova era no futebol brasileiro. Com ascensão técnica alinhada com uma gestão eficiente e finanças sólidas, as duas equipes têm consolidado um projeto de poder que tem refletido em títulos, performance e regularidade competitiva.
Em uma espécie de hegemonia compartilhada, a dupla formada por paulistas e cariocas é figura constante no topo não apenas de competições nacionais, como também internacionais.
Esse fenômeno, marcado por investimentos consistentes e planejamento de longo prazo, guarda semelhanças com Real Madrid e Barcelona, que dominam a Espanha por anos, empurrando o Campeonato Espanhol a uma lógica de duopólio. Palmeiras e Flamengo parecem conduzir o Brasil a uma dinâmica parecida: dois gigantes operando em velocidade própria, acima da concorrência, acumulando conquistas e ditando os rumos do esporte no País.
Os números ajudam a chegar a essa conclusão, ao contabilizar troféus, contratações milionárias e uma presença constante nas fases decisivas dos torneios que disputam. Para ilustrar esse protagonismo, Palmeiras e Flamengo se enfrentam, em 29 de novembro, na grande final da Copa Libertadores da América 2025 – é a segunda vez em menos de cinco anos.
Para tentar entender, comprovar e ilustrar essa dominância, a Central de Dados O POVO+ coletou dados das principais competições nacionais e continentais, bem como as principais estatísticas coletivas dessas equipes, destacando esta que pode ser entendida como uma nova fase do futebol brasileiro e sul-americano.

Ao observar o histórico recente da Série A do Campeonato Brasileiro, percebe-se um movimento evidente sobretudo na parte de cima da tabela. Palmeiras e Flamengo têm o grupo dos quatro primeiros colocados (G4) como um palco natural ao fim de cada temporada. Entre 2015 e 2024, foram disputadas 40 vagas na parte de cima, das quais Verdão e Rubro-Negro ocuparam 15 delas – o equivalente a 37,5% do total.
A equipe alviverde aparece oito vezes entre os primeiros colocados (2016, 2017, 2018, 2019, 2021, 2022, 2023 e 2024). Nesse período, conquistou o troféu do Brasileirão em quatro oportunidades. Enquanto isso, o Rubro-Negro surge com sete aparições no topo (2016, 2018, 2019, 2020, 2021, 2023 e 2024). Foram dois troféus levantados no período.
Mais atrás, Grêmio e Atlético Mineiro são os que mais se aproximam dessa regularidade, com cinco aparições cada um. Já outros rivais tradicionais da dupla, como Corinthians e Fluminense vêm com números bem mais modestos: três e uma aparições, respectivamente.
Para o jornalista Paulo Calçade, da ESPN e da Disney+, pós-graduado pela Escola de Educação Física e Esporte da USP, esse padrão aproxima Palmeiras e Flamengo do cenário europeu pela polarização. “São duas grandes marcas brigando no topo”, afirma.
Segundo ele, a percepção não se limita ao Brasil. “Quando a gente sai para fazer jogos da Libertadores, Flamengo e Palmeiras são tratados como equipes europeias. Da mesma forma que olhamos para Real Madrid, Chelsea, Barcelona ou Manchester como potências, eles olham para nós”, completa.

A trajetória que levou Palmeiras e Flamengo ao topo do futebol brasileiro não aconteceu da noite para o dia. Antes de 2015, os dois clubes conviviam com instabilidade e limitações técnicas, além de crises financeiras e administrativas. Todo esse contexto, obviamente, dificultava qualquer possibilidade de projeção de hegemonia.
No caso do Palmeiras, o caminho foi especialmente turbulento. O clube já chegou a ser rebaixado para a Série B do Brasileirão duas vezes, em 2002 e em 2012. Depois disso, o risco de um terceiro rebaixamento voltou a assombrar o time em 2014.
Naquele ano, foram quatro trocas de treinador e um acumulo de atuações irregulares que deram a confirmação de permanência na Série A somente na última rodada. Nesse período, o time já vinha passando por um processo de reestruturação administrativa, liderada sobretudo pelo então presidente Paulo Nobre, que injetou dinheiro e transformou a gestão do clube.
O Flamengo viveu um processo semelhante. Após a Era Dourada do início dos anos 1980, marcada pelas conquistas da Libertadores e do Mundial Interclubes com ídolos como Zico e Júnior, o clube passou décadas oscilando entre campanhas medianas e crises técnicas.
Em 2013, o novo presidente Eduardo Bandeira de Mello encontrou um clube com dívidas elevadas, salários atrasados e problemas administrativos. A solução foi adotar um período de redução de gastos, renegociação de contratos e reorganização estrutural a longo prazo, tanto é que naquele ano encerrou o Brasileirão em 16º lugar, com apenas um ponto acima do Z4.
A virada de ambos começou a se consolidar só a partir de 2016. De lá para cá, o Verdão conquistou quatro edições do Campeonato Brasileiro e foi vice em outras duas ao longo de nove temporadas. Já o Rubro-Negro venceu duas vezes e acumulou três vices no mesmo período.
A regularidade, construída de forma gradual, transformou o cenário competitivo do País e abriu espaço para o domínio que ambos exercem hoje.
Para Paulo Calçade, o fator decisivo por trás dessa mudança é “o desejo de fazer. O desejo de buscar uma situação mais favorável, rompendo com o modelo tradicional que dominou o futebol brasileiro durante décadas.”
“No caso desses dois clubes, ambos bateram no fundo do poço: o Flamengo com uma dívida gigante; o Palmeiras com quedas para a segunda divisão. A partir disso, decidiram se reorganizar internamente. E essa trajetória tem mais de 10 anos.”
Essa construção é uma consequência administrativa e organizacional dos clubes. Como explica Paulo Calçade, hoje não existe mais espaço para alegar falta de caminho. “Hoje, nenhum clube pode dizer que ‘não sabe o que fazer’. Até o caos é uma escolha. É uma decisão do clube”, completa Calçade.

No futebol de alto rendimento, o investimento é decisivo. A presença de atletas de nível internacional se torna indispensável para preservar o desempenho de uma equipe ao longo das temporadas. Esse padrão também se repete nas principais ligas do mundo, especialmente na Europa, onde a concentração de poder financeiro molda a competitividade.
A La Liga (Campeonato Espanhol) é um exemplo disso. A competição é dominada historicamente por dois clubes: Real Madrid e Barcelona. O Real, por exemplo, chega a temporada de 2025/26 com valor de mercado estimado em 1,39 bilhão de euros, o que corresponde a cerca de R$ 8,5 bilhões. Já o Barcelona chega a 1,11 bilhão de euros, algo em torno de R$ 6,81 bilhões.
A evolução do valor de mercado de Flamengo e Palmeiras evidencia um cenário parecido e reforça a percepção de uma certa “espanholização” do futebol brasileiro. Os números mostram um distanciamento crescente em relação aos demais clubes nacionais, assim como ocorre com a dupla espanhola e seus rivais diretos.
Em 2015, o valor total dos elencos brasileiros eram relativamente equilibrados. De acordo com dados extraídos do portal Transfermarkt, o elenco do São Paulo era avaliado em 91 milhões de euros. Na sequência, vinham Internacional (68 milhões) e o próprio Palmeiras (66 milhões). O Flamengo, por sua vez, era avaliado "apenas" em 38 milhões de euros.
Dez anos depois, Palmeiras e Flamengo aumentaram suas cifras, como se afastaram do restante e estabeleceram novos patamares financeiros no País.
A equipe palmeirense passou a ser avaliada em 2025 em 212 milhões de euros, enquanto que a flamenguista em 195 milhões. O próximo da lista é o Botafogo, com 138 milhões graças ao modelo SAF e com injeção de capital estrangeiro. Mas rivais tradicionais como Corinthians e São Paulo aparecem mais abaixo, somando 110 milhões e 89 milhões, respectivamente.
Esse desempenho é reflexo direto dos investimentos realizados para a formação dos elencos, os quais passam a contar cada vez mais com a manutenção e chegada de atletas de destaque tanto no futebol local quanto estrangeiro. Prova disso é que Palmeiras e Flamengo concentram maior parte das contratações de impacto do futebol brasileiro.
Das 97 mais contratações valiosas feitas pelos clubes, 42 delas foram da dupla. O número é o equivalente a quase metade (43%) das principais transações do mercado da bola brasileiro.
O Flamengo é responsável por 24 dessas contratações, número superior à soma de Corinthians (9), Atlético-MG (6), Santos (5) e São Paulo (5). Já o Palmeiras conta com outras 18 contratações.
Quando observamos os valores gastos, a disparidade fica ainda mais evidente. Das 97 transferências que movimentaram 995 milhões de euros, Flamengo e Palmeiras foram responsáveis por 442 milhões. O Flamengo investiu 265 milhões e o Palmeiras, 176 milhões, o que representa 44% de todas as negociações de ponta no País.

Se a análise de performance revela quem sustenta regularidade ao longo da temporada, as finais expõem quem realmente dita o rumo do futebol sul-americano. E, nesse cenário, o protagonismo brasileiro, especialmente de Palmeiras e Flamengo, deixa de ser uma tendência para se tornar um padrão histórico.
Desde 2006, foram disputadas 19 finais de Copa Libertadores da América e em 15 delas (78,9%), pelo menos um clube brasileiro esteve presente. Em quase 20 anos, portanto, apenas quatros finais da principal competição do continente ocorreram sem representantes do Brasil.
Além de chegar com frequência, o Brasil passou a ocupar os dois lados da disputa. Das dez finais desde então, quatro foram exclusivamente brasileiras.
Esse processo, sustentado especialmente pela dupla Palmeiras e Flamengo, projeta uma nova realidade no futebol sul-americano em que poucos clubes concentram muito desempenho, investimento e presença constante nas decisões.
Outro dado que chama atenção é que, desde 2019, Palmeiras e Flamengo também são figuras constantes entre os finalistas. O Rubro-Negro esteve nas decisões de 2019, 2021 e 2022, vencendo a primeira e a terceira. Em 2021, perdeu justamente para o Palmeiras, que também havia sido campeão na temporada de 2020.
Para coroar o momento de domínio atual, ambos os times voltam a se encontrar na final da Copa Libertadores de 2025. Quem vencer se tornará o primeiro clube brasileiro a conquistar o torneio continental pela quarta vez.

Entre entrevista ao O POVO+, o jornalista Paulo Calçade reforça a influência que a instauração de um
Calçade ressalta que práticas comuns hoje, como contratações sem capacidade de pagamento, deixariam de existir: “Um clube não vai poder sair contratando sem pagar."
Ele também projeta um impacto direto na hierarquia do futebol nacional afirmando que: “Com o fair play, muitos clubes grandes vão frequentar a segunda divisão, porque, nesse modelo atual, com gestões incompetentes, para dizer o mínimo, muitos vão cair. Ou alguns dirigentes vão acabar detidos. Vamos ver o que acontece.”
Confira outros trechos da conversa:
Paulo Calçade: O fator decisivo, sem o qual nada acontece, é o desejo de fazer. O desejo de buscar uma situação mais favorável, saindo daquele controle estabelecido no futebol brasileiro durante décadas. Apesar de ainda serem clubes associativos, com conselhos deliberativos, e não SAFs, como também acontece com Barcelona e Real Madrid, a questão principal não é a mudança de modelo. O modelo de SAF pode contribuir muito, desde que haja gente competente no comando, mas você pode ter incompetentes ou competentes em qualquer estrutura.
No caso desses dois clubes, ambos bateram no fundo do poço: o Flamengo com uma dívida gigante e o Palmeiras com quedas para a segunda divisão. A partir disso, decidiram se reorganizar internamente. O Palmeiras fez isso muito em função do Paulo Nobre, que pôde emprestar cerca de R$ 200 milhões em 2014, que hoje equivaleria a três ou quatro vezes mais. Isso permitiu pagar dívidas de curto prazo e reorganizar todo o clube.
Essa trajetória tem mais de 10 anos. O Flamengo seguiu caminho parecido: estava no fundo do poço e percebeu que, com a potência que é, poderia se reorganizar financeiramente para desfrutar de sua grandeza.
Eu sempre digo que temos muitos clubes grandes, mas nem todos desfrutam da própria grandeza. Um exemplo é o Corinthians. Um clube gigantesco, com potencial extraordinário em alguns momentos até superior ao Flamengo, mas que prefere ser administrado como um microclube, onde o interesse da torcida é o último da fila.
O que Palmeiras e Flamengo tiveram foi uma decisão interna e política de não aceitar a situação e buscar um caminho. Encontraram esse caminho, cada um à sua maneira, e hoje são únicos no futebol brasileiro.
Paulo Calçade: A situação lembra Real Madrid e Barcelona pela polarização. São duas grandes marcas brigando no topo. Mas a estrutura brasileira não é igual à espanhola. Aqui, São Paulo, Corinthians, Vasco, Fluminense, Atlético, Cruzeiro, Inter e Grêmio poderiam compor esse grupo se trabalhassem bem.
A polarização entre Palmeiras e Flamengo ocorre por capacidades e forças diferentes.
O Flamengo tem a maior torcida do país. Torcida é um ativo fundamental: quando você senta para negociar patrocínio, a torcida está na mesa. O Palmeiras não tem o tamanho da torcida do Flamengo, mas tem um mercado muito mais forte. São Paulo é o maior mercado consumidor e financeiro do país. Isso impacta totalmente o potencial de arrecadação dos clubes.
Flamengo pode arrecadar no país inteiro. O Palmeiras concentra força em São Paulo e parte do país. Já clubes de Minas, Rio Grande do Sul, Pernambuco ou Ceará têm limitações estruturais de mercado.
O futebol brasileiro precisa entender que os clubes têm tamanhos diferentes, porque vivem em estados e cidades com economias diferentes e possuem torcidas de magnitudes distintas.
Paulo Calçade: Têm, usando o próprio Palmeiras como exemplo. O Palmeiras precisa trabalhar muito bem para competir com o Flamengo - melhor base, melhor marketing, melhor ciência, melhor estrutura. E isso vale para qualquer clube.
O Fortaleza, por exemplo, cresceu muito de tamanho. Vive uma situação delicada agora, mas mudou de patamar com organização, governança e orçamento responsável. Mostrou o caminho. Hoje, nenhum clube pode dizer que “não sabe o que fazer”. Até o caos é uma escolha. É uma decisão do clube.
Clubes com mercados menores terão de trabalhar muito bem. E aí está o drama, porque muita gente não aceita isso e continua investindo no caos.
Paulo Calçade: O risco existe. Se clubes como São Paulo, Corinthians, Inter, Grêmio, Atlético e outros não trabalharem bem, o Flamengo tende a se tornar uma força inigualável. Se o Corinthians fosse bem administrado, seria uma potência do tamanho ou até maior que o Flamengo, pelo mercado onde está. Isso é análise fria de mercado.
Mas como muitos clubes são mal administrados, muitas empresas se afastam.
Ou seja: existe a possibilidade de reduzir a distância, mas é preciso entender que os clubes não são iguais e nunca serão.
Cada um vive em mercados diferentes, com economias diferentes, com torcidas de tamanhos diferentes. Mesmo se todos fossem muito bem administrados, ainda assim haveria clubes de tamanhos distintos.
Não dá para transformar o Mirassol no tamanho do Cruzeiro, nem o Atlético-PR - apesar de competente - no tamanho de Flamengo ou Corinthians, que têm penetração nacional.
O dia em que todos os clubes forem extremamente bem geridos, teremos ainda assim potências de tamanhos diferentes.

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Por Fernando Graziani*
A final da Copa Libertadores de 2025 entre Palmeiras e Flamengo simboliza bem mais do que a disputa por um título relevante - representa a consolidação de um duopólio que tem dividido os principais troféus do Brasil e da América do Sul nos anos recentes. Brasileirão, Copa do Brasil e Libertadores passaram a ter, com enorme frequência, pelo menos um dos dois no centro das decisões.
Eles remodelaram o futebol brasileiro não pela força do acaso, mas pela soma de método, estrutura e capacidade de manter projetos ativos por muito mais tempo do que seus concorrentes.
Um detalhe crucial nessa transformação é que nenhum dos dois se tornou SAF. Em um país onde boa parte dos clubes recorreu à venda de controle para escapar do colapso, Flamengo e Palmeiras mostraram que governança, planejamento e estabilidade política podem gerar resultados equivalentes aos de empresas do futebol, sem que precisem abandonar o modelo associativo. É algo poderoso em um ambiente tomado por urgências e improvisos.
O paralelo com Real Madrid e Barcelona funciona porque ambos criaram ecossistemas que resistem a tropeços, mudanças de treinador e saídas de jogadores importantes. No Brasil, essa lógica é quase disruptiva. Eles construíram estruturas que atravessam temporadas ruins sem provocar danos internos e, por isso, conseguem manter coerência esportiva e financeira quando o restante do país opera apagando incêndios.
Mas isso não significa que Palmeiras e Flamengo sejam perfeitos. Eles erram contratações, equivocam-se em escolhas e, às vezes, tomam decisões atormentadas. A diferença é que seus erros são menores, menos frequentes e absorvidos por projetos que não dependem de um lampejo momentâneo. São clubes em que o acerto pesa mais do que o tropeço e essa balança faz toda a diferença.
A hegemonia recente não se explica por milagre - explica-se por disciplina, método e a compreensão de que vencer repetidamente exige projeto e não improviso. Enquanto isso não se tornar regra no Brasil, a tendência é clara: eles continuarão ditando o ritmo do futebol nacional e continental, vivendo uma realidade própria.
*Fernando Graziani é âncora do programa Esportes do Povo nas rádios O POVO CBN e CBN Cariri; comentarista de esportes da Rádio O POVO CBN e CBN Cariri; colunista do O POVO impresso, O POVO+ e redes sociais do O POVO