Para a maioria das pessoas, até entrar na faculdade, pesquisa científica é algo que remete a homens de jaleco balançando tubos de vidro. Mas, para estudantes da rede pública de ensino no Ceará, a educação baseada em projetos científicos já é uma realidade e tem ajudado a mudar a vida de centenas de estudantes Estado afora.
Tudo começou nos anos 2000, quando o governo estadual lançou o Festival de Talentos (Festal), com competições esportivas, apresentações culturais e trabalhos científicos. Embora o foco inicial fosse nas Ciências da Natureza, o evento ajudou a construir a identidade das escolas e incentivou professores a adotar métodos de ensino mais interativos.
Contudo, essa mudança trouxe desafios, com destaque para a necessidade de adaptação por parte dos educadores, acostumados com métodos mais tradicionais.
“A gente vinha de uma tradição bem bancária, aquele modelo bem tradicional de aula, prova, recuperação. Antes da reforma dos anos 1990, se o aluno estivesse dentro da sala, já era muito”, relembra a professora aposentada Salete Nunes.
Em 2007, o Estado reestruturou o Festal, criando as Feiras Estaduais de Ciências e Cultura (FECC). Com a mudança, as feiras passaram a ter um formato mais amplo e inclusivo, com etapas escolares, regionais e estaduais, além de englobar diferentes áreas do conhecimento, como linguagens, ciências humanas e ambientais.
A partir de 2010, novas modalidades, como Robótica Educacional, foram incluídas, promovendo a integração de novas tecnologias nas escolas.
"Antes da reforma dos anos 1990, se o aluno estivesse dentro da sala, já era muito"
O modelo atual do evento, chamado Ceará Científico, surgiu em 2016 como uma evolução das iniciativas anteriores. Ele consolidou a integração entre feiras de ciências e cultura e atividades ambientais, promovendo um itinerário científico para toda a rede pública estadual.
No dia 30 de outubro de 2024 ocorreu uma das etapas do Ceará Científico, a feira estadual que premia os melhores trabalhos de pesquisa desenvolvidos pelos estudantes e professores do Ceará. Na ocasião, vários estudantes mostraram ao O POVO+ o processo de criação e execução dos projetos, expuseram as conquistas e denunciaram as dificuldades de fazer ciência na escola pública.
Mas até chegar lá, foi preciso fortalecer o sistema de ensino estadual. No último episódio do especial Educação no Ceará, entenda como o Ceará está construindo uma cultura de educação científica transformadora na vida dos jovens.
Depois de implementar uma reestruturação administrativa e uma profunda mudança na metodologia do ensino fundamental, a partir de 2008, o Governo do Estado passou a olhar também para os estudantes que eram da sua responsabilidade direta.
Foi aí que o Ceará iniciou outro importante movimento: integrar o Ensino Médio à formação técnica profissionalizante, por meio da criação das Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEPs).
Com um investimento superior a R$1 bilhão — 71% provenientes do governo estadual e 29% do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação — esse projeto começou modestamente, com apenas 25 escolas e quatro cursos técnicos.
A estrutura das EEEPs foi projetada conforme padrões do Ministério da Educação (MEC), com infraestrutura adequada, incluindo salas de aula, auditórios, bibliotecas e ginásios esportivos. A seleção do corpo docente é feita por meio de processos seletivos públicos, assegurando a qualidade do ensino.
Simultaneamente, o Ceará passou a avançar na expansão do ensino em tempo integral, com a meta de transformar 75% das escolas de ensino médio neste modelo até o final de 2024. As Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (EEMTI) buscam preparar os alunos para o ensino superior, seguindo um modelo semelhante ao das EEEP.
Hoje, a rede estadual cearense conta com 341 EEMTI e 131 EEEP, contemplando mais de 140 mil estudantes em 165 municípios. O currículo integrado combina a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) com a formação técnica, visando desenvolver habilidades técnicas, autonomia, senso crítico e consciência cidadã.
Os resultados obtidos pela Secretaria da Educação do Ceará (Seduc) também demonstram avanços significativos.
Entre 2011 e 2015, a taxa de inserção dos egressos no mercado de trabalho variou entre 20% e 30%, enquanto entre 2012 e 2016, a taxa de aprovação dos alunos em universidades ficou entre 35% e 40%.
“Esses números mostram que as EEEP e EEMTI estão cumprindo seu papel de preparar os jovens para o futuro,” afirma a professora de Língua Portuguesa Ana Santos.
Por outro lado, nem todos veem esse modelo como ideal. A professora de sociologia Maria Oliveira comenta: “Embora o currículo integrado seja valioso, sinto que há uma pressão excessiva sobre os alunos para que se tornem profissionais em vez de cidadãos críticos. Nós tentamos contornar, mas existe uma pressão pelos indicadores, a Secretaria cobra a direção, que acaba nos cobrando também”.
Apesar dos resultados serem encorajadores, alguns desafios persistem, como garantir a qualidade da educação em todas as escolas e combater a evasão escolar no ensino médio.
Paulo Martins, 17 anos, estudante do segundo ano do ensino médio e integrante do Fórum Cearense dos Grêmios Estudantis, alerta: “Para que os avanços se traduzam em benefícios reais, é essencial que o governo não apenas implemente as políticas, mas também monitore e ajuste continuamente as práticas educacionais.”
Paulo também adverte que é preciso cuidado com as metas de universalização do ensino integral, pois em alguns casos, o processo atropela a própria capacidade da escola.
“Hoje a gente já está vendo algumas falhas práticas dentro das escolas que não têm uma real estrutura para poder acomodar esse modelo de ensino médio, dos itinerários formativos, e mesmo de estar com duzentos alunos o dia todo em um espaço pequeno”, finaliza.
"É essencial que o governo não apenas implemente as políticas, mas também monitore e ajuste continuamente as práticas educacionais"
A meta do governador Elmano de Freitas (PT) é universalizar a educação em tempo integral na rede estadual até o final do seu mandato, em 2026. Para isso, conta desde o ano passado com o apoio de um novo programa federal.
Instituído pela Lei n. 14.640, de 31 de julho de 2023, e com investimento de R$ 4 bilhões, o Programa Escola em Tempo Integral pretende ampliar em 3,2 milhões o número de matrículas de tempo integral nas escolas de educação básica de todo o Brasil, até 2026.
O programa busca o cumprimento da
As Escolas Estaduais de Tempo Integral têm se destacado nas últimas edições do Ceará Científico. Em 2023, das 24 escolas premiadas, 20 funcionavam no modelo de ensino integral, sendo EEMTI ou EEEP.
Este ano, o tema proposto pela Secretaria de Educação foi a equidade de gênero e proteção às mulheres, como forma de estimular a participação de mais mulheres na construção de projetos de pesquisa que promovam a integração entre os diversos componentes curriculares, sob a ótica da a interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade.
A EEMTI Patativa do Assaré, localizada no bairro Granja Lisboa, teve um dos estandes mais visitados. Para a professora orientadora Camila Miranda, parte do sucesso vem da cultura de aprendizagem baseada em projetos, que vem sendo incentivada pela Secretaria de Educação, especialmente com as mudanças do Novo Ensino Médio.
"Acreditamos que essa abordagem é eficaz para produzir conhecimento e aprendizado entre os alunos, tanto em projetos científicos quanto em projetos de desenvolvimento interpessoal", disse a professora de biologia.
O projeto que os classificou para a etapa estadual do Ceará Científico foi o jogo de tabuleiro A Busca pelo Conhecimento.
"Nossa ideia era tornar o projeto uma forma divertida de ajudar meninas a se incluírem mais e se sentirem inspiradas a seguir a carreira científica. No contraturno, trabalhávamos no tabuleiro, no caderno de campo e em outras partes do projeto, sempre buscando formas de melhorar", explicou Herllon, 15 anos, um dos representantes da equipe.
O colega Jefferson, 15 anos, completou dizendo que faz parte da cultura da escola incentivar esse tipo de iniciativa por meio de feiras científicas e culturais, nas quais os alunos são mobilizados, produzem banners e apresentam seus trabalhos para a comunidade escolar.
Camila, porém, ressalta que mesmo com as políticas públicas ainda há um longo caminho a percorrer. "Para nós, seria ideal ter mais apoio financeiro e estrutural para levar esses projetos adiante, como bolsas para os alunos e verba para projetos de longa duração", afirma.
Outro projeto, também envolvendo
"Nosso objetivo é mostrar que, na caminhada para o sucesso, a mulher sempre tem mais obstáculos, enquanto para o homem sempre é mais fácil", explica Yuri, de 15 anos, um dos autores do projeto.
Maria do Carmo, professora de Física e orientadora do projeto, afirma que só em o jogo ter ficado pronto, já é uma vitória dos estudantes. "Eles tiveram que aprender a computação do zero: aprender a ligar um computador, a fazer funcionar, e já conseguiram programar um jogo em um semestre. Então, a gente ganhou só em conseguir desenvolver o jogo".
Para a docente, o maior desafio de realizar os projetos em uma escola de tempo parcial é o tempo, uma vez que o tempo de aula é insuficiente e muitas vezes as atividades são executadas no contraturno.
"São alunos que vêm de uma classe social mais vulnerável, e eles precisam trabalhar. Às vezes, eles têm que optar entre o trabalho ou o contraturno para executar o trabalho científico. A gente percebe que é muita força de vontade, tanto do professor quanto do aluno, que vêm participar, porque não é fornecido muito suporte", finaliza Maria do Carmo.
A realidade para as escolas em tempo integral é um pouco diferente, como relata a professora Marion Lucena, da EMTI Integrada 2 de Maio. "Na escola integral, temos a disciplina de
"Há muitos desafios, mas se eu precisar eleger um, é a questão dos recursos. Muitas vezes temos que tirar do nosso próprio bolso", finaliza a professora que estava orientando quatro trabalhos.
Um deles era o Respeita Elas: o combate ao assédio dentro e fora da escola, projeto que surgiu da necessidade de discutir o assunto após um caso de assédio durante um evento escolar.
"Tivemos várias etapas para realizar o projeto, mas a primeira foi um questionário diagnóstico que a gente realizou para ver o percentual de meninas que sofreram assédio e coletar sugestões de ações que a escola poderiam fazer para apoiá-las", explica Maria Letícia, 16 anos, uma das representantes da equipe.
Ali ao lado, outra professora observava a entrevista. Era a bióloga Joyce Félix, que orientava o projeto da EEMTI Padre Guilherme Waesen. Suas alunas falavam da importância de mulheres para o campo da astronomia e como a relação das mulheres com os astros podia ir muito além dos signos do zodíaco.
Joyce estudou na EEMTI Integrada 2 de Maio. A professora contou que, para ela, é um prazer e uma grande alegria representar uma figura de incentivo e representatividade para os alunos.
Quando era secundarista, teve professoras de Biologia, Química e Física que lhe mostraram a importância da área científica e a incentivaram, e que agora deseja ser esse incentivo para suas alunas entrarem na universidade, quem sabe até seguirem na licenciatura. Ela contou acreditar, por experiência própria, que a educação pode transformar vidas.
"Quando reencontrei outras professoras e colegas da universidade aqui no evento e percebi que estamos ganhando prestígio – algo que não era comum há alguns anos. Estudei em escolas públicas, me formei em universidade pública e a presença de políticas de incentivo científico, de feiras culturais e a participação ativa da comunidade sempre me fizeram sentir incluída", relatou.
Joyce, Maria do Carmo e outros tantos professores presentes no evento são os primeiros frutos do sistema. Hoje professoras, quando estudantes do ensino básico tiveram acesso a um item raro no Brasil: a oportunidade. A história delas pode não ser tão contada e recontada como a da eleição de Tasso Jereissati, mas talvez sejam as quebras de ciclo mais importantes da história do Ceará.
A secretária executiva da Igualdade Racial, Martír Silva, destaca o papel essencial das escolas na discussão de questões sociais e como gerador de ações de impacto. “A educação, como política pública, é o campo de formação de pessoas, de ideias e de compreensões de mundo".
"É importante termos uma perspectiva antirracista, contemplando as diversidades étnico-raciais, o respeito e a compreensão de que pessoas negras não são apenas portadoras de direitos, mas que precisam ser valorizadas como integrantes da composição social brasileira. É na educação que a gente rompe o racismo, sobretudo a partir de revisões das narrativas de fatos históricos”, finalizou.
Apesar dos méritos inegáveis, muitos professores fazem questão de dizer que o Ceará Científico é apenas um evento. Nas entrevistas, as professoras que ouvimos enfatizam que o verdadeiro legado está no pensamento crítico, aplicado, e no debate de questões sociais relevantes.
São as professoras, negras, oriundas do ensino público que estão conduzindo estudantes a mostrar não apenas habilidades em pesquisa e inovação, mas também um engajamento que vai além das paredes da sala de aula e mira em um futuro que não é feito só de braços robóticos e realidades virtuais, mas de abraços solidários e realidades transformadas.
Série de reportagens se debruça sobre dados do Ministério da Educação que indicam ser a rede pública de Ensino Fundamental cearense a melhor do País. Do modelo sobralense de alfabetização ao ambicioso projeto de educação em tempo integral, são mais de 30 anos de políticas públicas e um trabalho que envolve gestores públicos, professores e famílias. Vamos entender o que faz do Ceará uma referência nacional em educação