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Tributação e crise climática: como esses mundos se encontram
Reportagem Seriada

Tributação e crise climática: como esses mundos se encontram

Tributação deve ser aliada do combate à crise climática ao influenciar comportamento dos empresários e dos consumidores; especialistas defendem que todos os tributos brasileiros têm potencial para serem direcionados ao meio ambiente
Episódio 3

Tributação e crise climática: como esses mundos se encontram

Tributação deve ser aliada do combate à crise climática ao influenciar comportamento dos empresários e dos consumidores; especialistas defendem que todos os tributos brasileiros têm potencial para serem direcionados ao meio ambiente
Episódio 3
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Eles estão por todo lado: na nota fiscal das compras diárias, no holerite do salário mensal, no preço dos produtos no mercantil. São os tributos, valores pagos ao Estado como obrigação de pessoas físicas e jurídicas, depois revertidos em ações de interesse público.

Mas nem só para saúde e educação serve um imposto. A política tributária também é usada para induzir o comportamento do empresário e do consumidor, e até para combater a crise climática — chamado em termos técnicos de função extrafiscal.

 A reforma tributária incluiu a defesa do meio ambiente como um princípio constitucional(Foto: Infocuspix)
Foto: Infocuspix A reforma tributária incluiu a defesa do meio ambiente como um princípio constitucional

É o que aponta o mestre em direito tributário internacional e desenvolvimento pelo IBDT-SP "Instituto Brasileiro de Direito Tributário"  José Andrés Lopes da Costa, no livro "Tributação Transformadora", escrito em conjunto com a advogada Patrícia Villalba, mestre em Direito Internacional pela USP.

Nele, os autores defendem que a lei tributária deveria trazer o meio ambiente como um “propósito núcleo norma tributária” — ou seja, todos os tributos deveriam estar imbuídos de caráter e função ecológica. “Precisamos de uma economia voltada para a ecologia”, sintetiza Andrés.

Um passo importante foi dado pelo Brasil com a Emenda Constitucional 132/2023, a reforma tributária. Finalmente, o País “fala da possibilidade de tratamento diferenciado (da tributação) em função de questões ambientais”, explica Denise Lucena, professora titular de Direito Tributário da Universidade Federal do Ceará (UFC) e presidente de honra do Instituto Latino-Americano de Tributação Ambiental (Ilata).

“Eu sempre brinco com os meus alunos: ‘Olha, tenho certeza que o mundo está mesmo em apuros’... Porque quando um tributarista tá preocupado com a camada de ozônio, é porque a coisa é muito séria”, alegoriza a professora, também procuradora da Fazenda.

Denise Lucena Cavalcante: seminário sobre educação fiscal (Foto: Gentil Barreira/ Divulgação )
Foto: Gentil Barreira/ Divulgação Denise Lucena Cavalcante: seminário sobre educação fiscal

A discussão sobre tributação ambiental começou em meados dos 2000 no Brasil, tendo a UFC como uma das pioneiras. Na época, a ideia de ter uma política tributária centrada no meio ambiente e, por consequência, na emergência climática, era absurda.

“O direito tributário foi talvez uma das últimas áreas a falar sobre meio ambiente”, reflete a professora Denise. Por muito tempo, o foco era unicamente social.

É por isso que, ainda hoje, temos tributos que acabam estimulando hábitos poluentes. Um exemplo, no Ceará, é a isenção de pagamento do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) para veículos de uso rodoviário com mais de quinze anos de fabricação.

“Se a gente fizer uma análise histórica, essa questão do IPVA começa na década de 1990. A Constituição de 1988 tem esse enfoque social muito grande, e aí a legislação do IPVA do Ceará coloca uma alíquota zero para veículos acima de 15 anos para proteger o social mesmo, o economicamente mais fraco. Essa foi a ideia”, explica Denise.

“Só que nessa época nós não tínhamos tanta consciência dessa questão ambiental”, contrapõe. “Eu tô no ano 2025 e agora eu já não posso com ingenuidade dizer: ‘Vamos continuar a proteger o veículo antigo.’ Não, ele é extremamente poluente. Eu tenho que tirar.”

 

Exemplos de tributações ambientais já existentes no Brasil

 

No caso dos carros elétricos, a alíquota cearense é reduzida para 2,5% para aqueles 100% eletrificados. Entre os que usam combustível, a alíquota é de 3% para os que têm entre 100 e 180 cavalos; e 3,50% para os com acima de 180.

Além da reforma tributária incluir a defesa do meio ambiente como um princípio constitucional, ela autoriza impostos seletivos para desestimular o consumo de produtos específicos — tanto para a área da saúde, quanto para a ambiental.

É o que se faz com os cigarros. A alíquota ad valorem "Aquele cobrado com base no valor dos produtos" do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre os cigarros é de 300%. Essa alíquota é aplicada sobre 15% do preço do produto, “resultando em uma alíquota efetiva de 45% sobre o preço da venda”.

No Brasil, público prefere carros híbridos, para não depender da rede de recargas(Foto: José Cruz/ Agência Brasil)
Foto: José Cruz/ Agência Brasil No Brasil, público prefere carros híbridos, para não depender da rede de recargas

“A justificativa [...] é de que este (tributo) teria o condão de diminuir a prática do tabagismo e, em consequência, a incidência de doenças respiratórias e de câncer de pulmão na população, diminuindo, também, as despesas do sistema público de saúde com tais moléstias”, descrevem os pesquisadores Flávio dos Santos e Filipe Scabora no artigo Tributação Ambiental e Extrafiscalidade no Brasil: Incentivos Fiscais e Regressividade da Tributação Verde.

Por outro lado, o pesquisador José Andrés entende que a norma deveria sair da seletividade e ir para a generalidade. Ou seja, que basicamente todos os tributos tenham propósito ambiental. “É uma utopia, mas no sentido bom da palavra”, ri.

“Há uma crítica que se faz na reforma tributária sobre o porquê do imposto seletivo incidir sobre automóveis, mas não sobre automóveis movidos a diesel para transporte”, comenta a professora Denise.

“É muito difícil e eu não consigo ter uma resposta técnica razoável e correta, mas vou ter uma resposta política: o nosso transporte de mercadorias no Brasil é majoritariamente rodoviário. E a gente viveu na pele o que é (a força desse setor) quando o Brasil parou pela greve dos caminhoneiros.”

  

 

Tributação é um caminho, mas não a solução completa

Um dos tributos mais diretamente reconhecidos como ambientais é a tributação do carbono. Na Suécia, o carbon tax foi introduzido em 1991, com uma taxa de 22 euros por tonelada de gás carbônico (CO2) fóssil emitido. A taxa foi gradualmente aumentando para que famílias e empresas tivessem tempo para se adaptar; em 2025, o imposto é de 134 euros por tonelada de CO2 fóssil emitido.

“Em 2018, a taxa reduzida para a indústria fora do Sistema de Comércio de Emissões da União Europeia (EU ETS, na sigla em inglês) foi eliminada gradualmente”, define o site do governo da Suécia.

Vista na direção norte sobre o trevo de Olskroksmotet, onde as rotas europeias E6, E20 e as ruas locais se encontram na Suécia(Foto: WSP Trafik / Wikicommons)
Foto: WSP Trafik / Wikicommons Vista na direção norte sobre o trevo de Olskroksmotet, onde as rotas europeias E6, E20 e as ruas locais se encontram na Suécia

“O imposto sobre o carbono da Suécia gera receitas consideráveis para o orçamento geral”, descreve o país. “Os fundos do orçamento geral podem ser utilizados para fins específicos relacionados ao imposto sobre o carbono, como lidar com consequências distributivas indesejáveis da tributação ou financiar outras medidas relacionadas ao clima.”

As “consequências indesejáveis da tributação” do carbono mencionadas podem estar relacionadas ao aumento do custo dos produtos para o consumidor.

No artigo dos pesquisadores Flávio dos Santos e Filipe Scabora, explica-se que a “elevação de preços causada pela tributação de poluentes recai sobre as famílias de menor renda, além de diminuir a quantidade de vagas de emprego em segmentos mais poluentes.”

“É por isso que é tão importante que o governo tenha consciência dessas mudanças, porque há o risco de ocorrer essa regressividade, que é um aumento do tributo para a classe mais baixa, economicamente mais vulnerável”, pontua Denise.

Dessa forma, a tributação ambiental só é saudável para a economia se ela estiver amparada por outras medidas. “O poder público vai ter que pensar em outras medidas, porque a gente não pode prejudicar toda uma política fiscal ambiental por conta de uma questão socioeconômica”, defende a professora.

Em Fortaleza, por exemplo, a maoria das ciclovias estão totalmente expostas ao sol, sem canteiros arborizados(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Em Fortaleza, por exemplo, a maoria das ciclovias estão totalmente expostas ao sol, sem canteiros arborizados

Voltemos ao exemplo dos carros. Carros antigos e movidos a combustíveis fósseis deveriam ser tributados ou até retirados das ruas — como alguns países europeus fizeram. Mas como ficam as pessoas?

“Essas pessoas são prejudicadas, mas é aí que vem a importância de uma política pública eficiente”, delimita Denise. “Só o tributo não resolve. O tributo tem que vir dentro de uma política fiscal ambiental.

Isso significa melhorar e baratear o transporte público coletivo, investir em caminhabilidade nas cidades para estimular a população a se locomover à pé ou de bicicleta, ou mesmo instituir uma política promocional para veículos elétricos.

  

 

Cadeia de valores e os paradoxos da sustentabilidade

Outro problema à vista: é verdade que os veículos elétricos são menos poluentes, mas a produção das baterias demanda cada vez mais mineração.

A mineração tem diversos impactos ambientais, como assoreamento dos corpos d’água superficiais, escassez de água, poluição das águas superficiais e subterrâneas, perda de fertilidade do solo, alterações no relevo, contaminação do ar e poluição sonora.

Além disso, está amplamente relacionada a tensões socioambientais, como ameaças a povos originários e trabalho análogo à escravidão em países do sul global.

“Esses são problemas estruturais, paradoxos da sustentabilidade”, define José Andrés, um dos autores do livro “Tributação Transformadora”.

“Nós precisamos controlar a cadeia de valor um pouco mais amplamente. De onde vem a sua bateria? No agronegócio, via blockchain "sistema de registro de transações" , você pode monitorar um produto desde a semente. Ou seja, nós temos tecnologia para isso (monitorar a cadeia de produção e de valor dos produtos ditos sustentáveis).”

O intuito é garantir uma taxação que tenha impactos positivos reais a nível global, e não apenas localmente.

José Andrés Lopes da Costa, mestre em direito tributário internacional e desenvolvimento pelo IBDT-SP e sócio-fundador do DCLC Advogados(Foto: Luis Ariel Guevara)
Foto: Luis Ariel Guevara José Andrés Lopes da Costa, mestre em direito tributário internacional e desenvolvimento pelo IBDT-SP e sócio-fundador do DCLC Advogados

Isso se estende para as próprias negociações mundiais, como as que veremos na 30ª Conferência das Partes pelo Clima (COP30), sediada em Belém (PA). “Os mecanismos de combate à crise climática que existem hoje em dia são fragmentados, cada país tem o seu”, comenta Andrés.

“Mas essas coisas precisam ser unificadas e parametrizadas”, defende, sugerindo, por exemplo, o mesmo preço pelo carbono. “Seria interessante a criação de um órgão multilateral com mandato específico para a questão (tributária) ambiental. (No entanto), entramos no problema da representação, porque os países mais pobres praticamente não têm voz ativa nenhuma nesses fóruns.”

Enquanto isso, cada país dita as próprias regras. No Brasil, o mercado de carbono foi instituído pela Lei Nº 15.042/2024, com o nome Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE).

A lei agora depende de regulamentação, mas Andrés critica que ela “proíbe tributar a emissão de carbono”. “É a lógica de pagar para poluir”, resume.

Ele refere-se ao artigo 22, que indica que ficam “vedadas a dupla regulação institucional e qualquer tributação sobre emissões de GEE por atividades, por instalações ou por fontes reguladas pelo SBCE”.

No final das contas, a pergunta sempre é: como garantir que o tributo vai dar certo? A pesquisadora Denise Lucena responde: é uma questão de tempo.

“Eu sempre digo, o tributo ambiental, o incentivo, é mais um dos instrumentos em prol do meio ambiente. Eu não posso deixar todas as áreas indo por um caminho e a tributação para outro, por exemplo, dando incentivo para combustível fóssil. Isso não é razoável, né?”, reflete.

Apesar das dificuldades técnicas, o tributo ambiental precisa virar o status quo, sempre aberto ao aperfeiçoamento e focando no objetivo final de construir um futuro seguro e sustentável. “A tributação ambiental é mais uma diretriz”, finaliza a professora. “Não é a única, não é a mais importante. Mas é preciso que se faça.”

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