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Mulheres vítimas: as dores permanentes das querelas
Reportagem Seriada

Mulheres vítimas: as dores permanentes das querelas

CRIMES NA CAPITANIA | Pelos registros criminais do Ceará, nos séculos XVIII e XIX, a violência sexual e física às mulheres era repetitiva. O agressor que se aproximava para tirar proveito, o vizinho em ato absurdo, o genro abusador. Contra meninas, jovens, adultas, idosas, escravas... Um padrão que atravessou os séculos
Episódio 2

Mulheres vítimas: as dores permanentes das querelas

CRIMES NA CAPITANIA | Pelos registros criminais do Ceará, nos séculos XVIII e XIX, a violência sexual e física às mulheres era repetitiva. O agressor que se aproximava para tirar proveito, o vizinho em ato absurdo, o genro abusador. Contra meninas, jovens, adultas, idosas, escravas... Um padrão que atravessou os séculos
Episódio 2
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Dos registros oficiais disponíveis que cruzaram 250 anos, confirma-se a violência contra a mulher como uma das mais incidentes na história local. Um círculo vicioso, dores permanentes a qualquer época. Desde os tempos da capitania do Ceará Grande até os dias atuais, a linha do tempo não desfez esse padrão de hostilidade.

Os autos de querelas, documentos que davam espaço a denúncia de crimes no Brasil Colonial, ficharam vários casos da cultura agressiva ao gênero feminino. Foi algo contínuo, repetitivo, em situações diversas, e as mulheres sempre mencionadas como vítimas principais.

Está tudo contado nos registros ainda existentes, dos séculos XVIII e XIX. São 18 livros preservados para consulta no Arquivo Público do Ceará (Apec) e pelo menos mais três no Memorial do Tribunal de Justiça do Estado (TJCE).

A professora e escritora Angélica Sampaio, em sua pesquisa de mestrado concluída em 2023, lidou com 133 autos e descortinou a história de 29 casos relacionados a violência sexual em que as mulheres sofreram defloramentos (eventualmente citado como exvirginação), estupros, raptos, aleivosias (as traições para tirar o proveito).

Há também o descrito de agressões físicas, patrimonial ("perda de terra em questões familiares ou à base da força"). Um 30º auto de querela identificado foi excluído das análises, segundo ela, pelas condições do documento, "muito danificado, muitas falhas".

Angélica Sampaio, professora e escritora, pesquisadora de casos antigos da violência contra a mulher, de registros desde o século 18. Autora do livro 'A violência contra mulheres em autos de querela dos séculos XVIII E XIX no Ceará'(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Angélica Sampaio, professora e escritora, pesquisadora de casos antigos da violência contra a mulher, de registros desde o século 18. Autora do livro 'A violência contra mulheres em autos de querela dos séculos XVIII E XIX no Ceará'

Foram registros entre 1779 e 1829. De quando ainda havia escravidão legalizada, o império vigente e até os primeiros anos da Independência proclamada. O Direito e a Medicina eram precários, ainda sendo implantados. O país em formação se descobria em seus problemas. "O que a gente encontra nesses documentos não é nem, digamos assim, 50% do que de fato ocorria", reconhece a pesquisadora.

Das ocorrências há crueldades indizíveis a qualquer tempo, mesmo que as nomenclaturas ainda não estivessem atualizadas para termos como crianças ou adolescentes, para reconhecimentos de garantias básicas. A realidade era outra. Pelos dados coletados, a cultura do estupro, do abuso sexual contra as mulheres, era bastante presente.

Janeiro de 1780, a menina Ana, "donzella menor com des anos de idade", foi estuprada e agredida fisicamente por "Estevão Soares da Crûs omem branco cazado". Ele era conhecido de Damazia Maria, a mãe da vítima. Porque moravam todos na mesma localidade, "um lugar ermo chamado Poso da Onsa", na vila de São José de Ribamar de Aquiraz.

O crime aconteceu na casa dele, com a mulher dele estando no imóvel. Ana foi deixada lá com o aval de Damazia, na intenção de que faria companhia à esposa do abusador. O homem voltou, encontrou a menina e partiu para o abuso. Nem considerou "refrear aprezensa de sua própria mulher e amizade que trataua com a querelante”.

Mesmo sob a dificuldade de locomoção e distâncias, ainda assim a mãe não hesitou e viajou com a filha até a vila do Aracati para denunciar o vizinho abusador. O registro foi no dia 3 de fevereiro. Geralmente eram os pais que conduziam esse momento, mas o pai de Ana era “auzente a anos”.

Igreja matriz de Aquiraz. Foto de 2019(Foto: Júlio Caesar)
Foto: Júlio Caesar Igreja matriz de Aquiraz. Foto de 2019

O caso chocou o escrivão e o ouvidor geral na época. Hoje ainda surpreende pesquisadores. No auto de vistoria (exame pericial), feito "por duas mulheres honestas" convocadas pelo ouvidor por falta de parteiras, elas concluíram que a menina estava em "mizeravel estado" e foi "não so deflorada mas ferida". Estava "incapas de andar". Livre de juramento, por sua idade, Ana descreveu que o agressor a "lansara no chaõ e lhe apertava a garganta com as maõs para naõ gritar".

Em dezembro de 1782, as irmãs Albina e Antonia Maria Olanda, solteiras, moradoras do Siupé (atual São Gonçalo do Amarante), então pertencente à "villa de Nosa Senhora da Assumpsam da Fortaleza", registraram dois autos de querela separadamente.

Para a denúncia contra dois homens, Ignácio e Pedro. Eles eram irmãos, residentes no mesmo Siupé e acusados de situação semelhante. Ambos por "defloramento e stupro". Teriam "solicitado amores" às duas sob a promessa de casamento, mas as deixaram abandonadas e "peijadas". Era o termo usado para grávidas nessas circunstâncias.

Segundo a pesquisadora, o auto de querela quase sempre ocasionava uma segunda violência à vítima. Porque o reparo de um defloramento, por exemplo, era que a moça se casasse com o agressor.  Ou quando nem tinham direito a se manifestar na queixa do crime sofrido - os querelantes costumavam ser pais ou outros responsáveis. 

"Em nenhum dos registros dos autos de Querela não encontramos nenhum reparo. A maioria deles fugia para não assumir o dano", reforça Angélica Sampaio 

A pesquisadora Angélica Sampaio diz que o auto de querela quase sempre ocasionava uma segunda violência à vítima, porque o reparo era casar com oa gressor(Foto: Fábio Lima)
Foto: Fábio Lima A pesquisadora Angélica Sampaio diz que o auto de querela quase sempre ocasionava uma segunda violência à vítima, porque o reparo era casar com oa gressor

Em julho de 1782, Jozé Camello, morador do Aracati, foi denunciado na vila de Fortaleza, por Manoel de Castro e pela filha dele, Maria da Conceição de Jesus. Ela também foi largada “peijada”. Manoel cobrava o casamento deles como punição. Se o rapaz foi achado? Não há documentos que possam contar o desfecho.

Livro 'A violência sexual contra mulheres em autos de querela dos séculos XVIII e XIX no Ceará'(Foto: Editora Sol Literário)
Foto: Editora Sol Literário Livro 'A violência sexual contra mulheres em autos de querela dos séculos XVIII e XIX no Ceará'

"O que a gente passa hoje não é uma coisa só do nosso tempo. É uma violência que reverbera e ela vai sistematicamente passando de século em século e torna-se algo praticamente normalizado, normatizado pela sociedade. Mesmo dizendo que aquilo é errado, que não deve ser aceitável, mas como é uma prática secular, ela vai passando e torna-se uma coisa natural, o que não deveria", pontua Angélica Sampaio.

Seu trabalho do mestrado, com perfil interdisciplinar entre História e Letras, resultou no livro "A violência sexual contra mulheres em autos de querela dos séculos XVIII e XIX no Ceará", da editora Sol Literário, publicado em abril de 2025, durante a Bienal Internacional do Livro de Fortaleza. "Eu queria dizer que não foi fácil realizar essa pesquisa como mulher, como mãe, como escritora. É muito doloroso, não é fácil".

"O ato em si da violência, ele não tem data, não tem século. Ele é um crime. Porque ele é impregnado com força, com violência. A violência contra os escravizados, contra os povos originários, ela vai só mudando de forma, mas continua ocorrendo". Angélica segue nos estudos de violência contra a mulher, agora no doutorado em sociologia, considerando casos levados a processos já do século XX.

 

 

Romana foi levada para cometer "furtos miúdos"; Custódia era forçada a sevícias do seu dono

Num caso condizente àqueles tempos, em fevereiro de 1788, a denúncia feita pelo capitão Jozé Ribeiro Freire, na vila do Aracati, demonstrava como era o trato racial, étnico, e uma personagem feminina na história. Romana, sua escrava, teria sido desencaminhada "pelo crioulo Manoel", para que faltasse aos serviços de seu dono e passasse a cometer "furtos miúdos". A situação contrastava às que mais apareciam nos registros, de violência sexual.

A versão dada pelo capitão querelante foi que a negra cativa tanto era açoitada "com muitas borduadas e coises" e retida por Manoel, para cumprir os ilícitos, como depois seu senhor a castigava até sangrá-la, cobrando respeito. Romana teria emagrecido demais de tanto apanhar. "Se acha o suplicante (capitão) em termos de a perder pois atres anos ou parte delles naõ deixa susegar e nem fazendo servisso a tempo e a horas".

Em 23 de agosto de 1792, o tenente Ignácio Barroso de Souza, "morador no Citio das Goaribas", registrou um auto de querela na vila de Fortaleza sobre o furto de sua escrava Custódia, mulata, que também "o servia de portas adentro", teria sido vítima de rapto e aliciamento.

A afirmação feita ao ouvidor e ao escrivão indicava que Custódia, além de escrava, seria "vítima de sevícias sexuais" ou de "concubinato forçado" por seu senhor, conforme a tese de doutorado do pesquisador José Valente Neto ("Os Autos de Querela na Capitania do Ceará - 1779/1793"), concluída na UFC. A menção ao escravismo sexual foi feita sem qualquer constrangimento, como se fosse algo usual.

O professor e diretor da Faculdade de Direito UFC, Gustavo Cabral, reconhece que o Brasil é uma sociedade onde a violência é continuamente presente, mas rejeita a ligação linear entre os crimes do passado e os fenômenos atuais. Na imagem, registro de primeiros crimes no Ceará(Foto: Fábio Lima)
Foto: Fábio Lima O professor e diretor da Faculdade de Direito UFC, Gustavo Cabral, reconhece que o Brasil é uma sociedade onde a violência é continuamente presente, mas rejeita a ligação linear entre os crimes do passado e os fenômenos atuais. Na imagem, registro de primeiros crimes no Ceará

A denúncia sobre o "furto" de Custódia foi contra o "cabra Pedro Francisco que abitava no Citio do Paudolho, do termo desta mesma vila". Ignacio chamou o querelado de "mau e perverso vadio sem oficio nem beneficio", por ele ter levado sua escrava na noite do dia 2 daquele mês. Para fugir com Custódia, Pedro tomou um cavalo de um outro morador local. O tenente cobrava "exemplar castigo" ao homem.

Se o acesso à Justiça era difícil às mulheres brancas, muito pior era para as vítimas de populações menos favorecidas. O Brasil era escravocrata e cor da pele era informação quase obrigatória nos autos.

 

Confira os 29 registros de violência sexual contra as mulheres (1779 a 1829)

 

O professor e diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), Gustavo Cabral, rejeita a ideia de ligação linear entre os crimes do passado e os fenômenos atuais. Ele sugere cautela ao se buscar uma relação direta de causa e efeito, mas reconhece que o Brasil é uma sociedade onde a violência é continuamente presente.

Pesquisador da história do direito no período colonial, Cabral diz que o problema não é uma continuidade simples, mas, segundo ele, que "o país muda muito... mas a questão é que a violência continua". "A experiência colonial brasileira foi alicerçada em atos de violência extrema. (...)É tentar entender como mexendo todas as peças, o resultado do jogo continua sendo o mesmo. E essa violência que sempre vai para os mais vulneráveis", destaca.

 

 

Pedro estuprou a sogra Thomazia e escrivão sugeriu o caso para a Inquisição

"Thomazia Francisca de Souza mulher parda, viúva e moradoura na serra de Uruburitama, termo da villa da Fortaleza de Nossa Senhora da Assumpção", residia na mesma casa com a filha e "seo genrro Pedro Antonio da Silveira, õmem pardo". No dia 15 de setembro de 1802, "a oras de meia noite pouco mais oû menos", quando Thomazia já estava recolhida, "entrou pella caza dentro seu genro e compadre Pedro" e a estuprou. A mulher do acusado estaria na mesma casa no momento do ato.

“Sem temor de Deos e das Justissas de sua alteza real pegando lhe pello brasso direito e com uma faca de ponta que tirou do cóz das silouras, arrastou a suplicante sua sogra, e comadre para fora da casa com forssa, e violencia do que rezultou a contuzão que consta do auto de vestoria, e outras mais pisaduras, e nodoas que tem em seo corpo causados de a ter arastado pello xão obrando semilhante, e orrorozo dilicto só a fim de ter acçesso carnal com a suplicante”.

Mapa da Capitania do Ceará Grande, de 1818(Foto: REPRODUÇÃO)
Foto: REPRODUÇÃO Mapa da Capitania do Ceará Grande, de 1818

O auto de querela desse caso é um dos mais ricos em detalhes e mais violentos entre os analisados, como admite o professor, filólogo e pesquisador Expedito Ximenes, estudioso dos documentos da capitania do Ceará Grande. Do caso em setembro, o registro só foi feito em 13 de novembro. "Curiosamente, ela não denuncia o estupro, vai denunciar o fato da contusão que ela sofreu no braço, porque o genro a pôs no chão e ela caiu em cima de uma pedra". No lugar isolado, os gritos foram em vão.

O escrivão descreve que o genro “satisfez seu diabolico intento transversalmente, e bestial e sodomita”. Chama o “cazo este o mais orrorozo que tem aconteçido não obstante toda a rezistençia e gritos que a mesma suplicante daua e rogos com que instaua ao suplicado de nada lhe valeo por ser a caza da suplicante em lugar dezerto”. E chegou a sugerir que a acusação fosse levada ao tribunal da Igreja Católica: “e porque semilhante acontecimento não só pertence ao Santo Tribunal da Inquizição como athé he de querela conforme as nossas leis patrias”.

Segundo a professora e pesquisadora Angélica Sampaio, este termo tinha menção muito específica, não era banalizado pelos escrivães. "O ato de sodomia era considerado o sexo anal, que era um uma coisa altamente proibida dentro dos preceitos da Igreja Católica, de todo o imaginário religioso. Não era um ato aceitável pela sociedade e praticado contra uma mulher era coisa ainda mais absurda, vexatória e humilhante e ultrajante".

O genro foi preso e é um dos poucos casos, segundo Ximenes, de acusados de crimes sexuais que morreram no cárcere naquele tempo de capitania. A informação apareceu em um livro chamado Rol de Culpados, com o registro das pessoas presas e, às vezes, o cumprimento da pena ou falecimento.

 

 

 Glossário

  • Concepção, pesquisa e texto Cláudio Ribeiro
  • Edição O POVO+ Catalina Leite e Fátima Sudário
  • Edição no impresso Tânia Alves
  • Identidade visual OP+ Cristiane Frota
  • Concepção visual Gil Dicelli
  • Recursos Visuais Catalina Leite
  • Imagens Arquivo Público do Ceará, Memorial do Tribunal de Justiça do Ceará, Aurélio Alves, Cláudio Ribeiro, Daniel Galber (especial para O POVO), Fábio Lima e FCO Fontenele
  • Tradução de documentos Expedito Eloísio Ximenes, paleógrafo, pós-doutor em filologia, professor da Universidade Estadual do Ceará
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Crimes na Capitania

Reportagem especial investigativa aborda os registros históricos da violência no Ceará dos séculos XVIII e XIX