A Inglaterra era o “centro do mundo” na Primeira Revolução Industrial. As máquinas a vapor, as indústrias e o carvão espalhavam-se pelas ruas das cidades e incrementavam a economia mundial de um jeito nunca visto antes. Desde então, foram pelo menos outras três viradas na evolução tecnológica mundial e, de grandes indústrias, o poder passou a residir em números “invisíveis”.
Os dados são a base do meio online, das redes sociais e das empresas. Mais que isso, são fonte de controle de “comportamento, consumo e até da democracia”, conforme Vladimir Nunan, colunista de tecnologia do O POVO+ e CEO da startup Eduvem.
As informações movem o mundo e são abrigadas em um local físico: os data centers que, nesta lógica, tornam-se ouro na disputa geopolítica. “Quem hospeda a infraestrutura atrai investimento, na teoria”, explica o especialista.
Isso é fato, mas a unanimidade acaba por aí. Os data centers ganharam o debate público, alvos de críticas e fortes defesas. Gastam muita água, energia e retornam em pouco emprego, relembram alguns.
Ao mesmo tempo, outros alegam que os empreendimentos dão destaque ao território nacional, importância política e ganho em impostos e na cadeia de produção direta e indireta do País em que estão hospedados.
Afinal, o que ganhamos com os data centers e de que maneira o Brasil pode expandir os retornos econômicos nesse mercado?
Um dos pontos que mais chama atenção sobre os data centers é a relação entre investimentos e retorno em empregos. O POVO+ visitou o centro de dados mantido pela Hostweb, em Fortaleza, utilizado por 1.000 clientes.
A estrutura contém três andares e o prédio hospeda outras ações da empresa, conforme o diretor técnico, João Victor Moreira de Sousa. Para a operação do centro de dados, trabalham apenas quatro pessoas diretamente. Outros, 80, operam outras funções de tecnologia de informação ligadas à insfrastrutura do data center.
Data center, no geral, não traz emprego. O POVO+ solicitou dados às empresas com empreendimentos certificados TIER III em Fortaleza e os em fase de construção ou instalação. Obtivemos alguns retornos. Em todos os casos, são milhões ou bilhões em troca de centenas de empregos na fase de operação.
Por exemplo, o data center da Ascenty, instalado em 2015, custou R$ 120 milhões e emprega 50 pessoas entre colaboradores próprios e terceiros.
Os empreendimentos bilionários não expandem muitos os retornos em relação aos demais. O da Casa dos Ventos, do TikTok, que ganhou o debate público pelos elevadíssimos gastos de água e energia, tem R$ 55 bilhões previstos de investimento. Em retorno, empregará 3.800 na construção do data center e mais de 400 na operação.
O contraste é bem nítido em relação, por exemplo, a outras empresas da própria Zona de Processamento de Exportação (ZPE), onde será instalado o data center da Casa dos Ventos. A ArcelorMittal Pecém, de aço, gera mais de 20 mil empregos – entre diretos e indiretos.
Essa diferença surge pela própria natureza do negócio. Os data centers, uma vez instalados, não precisam de muita mão-de-obra para operação. Os quadros são técnicos para evitar que a estrutura queime ou desligue, segundo explica João Victor Moreira, da HostWeb.
"Se a gente utiliza uma uma fiação de ar-condicionado diferente de uma residência, que normalmente você espera o ar-condicionado dar problema para poder corrigir, aqui ele não pode dar problema. Então a manutenção ela é constante, o monitoramento é constante", exemplificou.
Conforme a percepção de Vladimir Nunan, os data centers não se conectam com a economia local. “O impacto direto para a comunidade é marginal. Após a obra civil, os empregos são escassos e altamente especializados. Isso exclui a maior parte da população local”, considera.
O especialista retoma o debate ambiental, trazido no episódio 2 desta série de reportagens. A alta demanda de energia e água transforma, para ele, os centros de dados em um “enclave”: “extrai recursos locais e devolve pouco ou nada”, justifica.
As empresas, diz, usam de argumentos de “retorno simbólico e estratégico” para justificar a instalação. “O Ceará se posiciona como um hub digital, com potencial de atrair serviços satélites. A pergunta é: vale a pena esse posicionamento se a soberania de dados e os lucros são externalizados?”, cita ele, em debate expandido mais a frente na reportagem.
Contatados, representantes dos data centers alegaram, na verdade, que os empregos retornam em “cadeia”. A Casa dos Ventos, ao informar os números de empregados, incluiu os serviços de energia e funcionários indiretos na contagem. Somados, seriam por volta de 29.230 postos de trabalho, temporários ou não.
O retorno, segundo a empresa, virá em camadas - na seguinte ordem: obras e cadeia local, operação de longo prazo, know-how e soft power, compromissos do investidor de tecnologia, além de compromissos da própria Casa dos Ventos. Saiba mais detalhes abaixo.
Esta cadeia seria ainda maior, conforme Luis Tossi, vice-presidente da Associação Brasileira de Data Center. “Fabricantes de equipamento que não tão diretamente na obra, mas movimentam a indústria. Então, assim, eu fabrico mais cabo, fabrico mais barramento, fabrico mais concreto, mais aço, mais mão de obra para os equipamentos de energia. É uma cadeia indireta enorme”, defende ele.
E completa: “Eu preciso de desenvolvedores de ferramentas, de desenvolvedores de software, especialistas em programação. Então a gente estava fazendo uma cadeia tecnológica em volta desse polo gigantesco”.
Sob a perspectiva das empresas, os países, portanto, deixam de ganhar quando não oferecem um cenário atrativo para a instalação e adesão de investidores de fora.
“Quando a gente tem essa toda essa cadeia de serviços trabalhando em outros países fisicamente, acabamos perdendo muito dessa mão de obra, que tende a se variar do país, para indicar os pólos de geração de tecnologia”, afirma Luis Tossi.
No caso do Brasil, a principal reclamação de investidores estrangeiros de data centers seria o percentual de impostos, em meio a um negócio já muito caro. Os críticos, por outro lado, defendem que este seria o caminho para fazer valer a arrecadação dos data centers.
Data center é caro. Os milhões ou bilhões na instalação ou operação incluem construção civil, equipamentos de infraestrutura, elétrica, equipamentos de refrigeração. O custo de cada Megawatt (MW) é de mais ou menos 10 milhões de dólares. Tudo isso é tributado no Brasil.
O total de tributos que incide sobre o investimento para construção de um Data Center chega a 23%, segundo estudo da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI). Com o arrecadado, seria possível realizar inteiramente as etapas de espaço físico e infraestrutura de telecom pelas empresas.
Já segundo Luis Tossi, da Associação Brasileira de Data Center (ABDC), o percentual de tributação da cadeia gira em torno de 15 a 20%, considerando produtos e serviços no investimento. Na parte de operação, diz ele, mesmo seja haja incentivos ou isenções de importação, os tributos ainda assim caem sobre os serviços.
“Vai tributar tudo que vai ser gerado de serviço nos próximos 5 ou 10 anos que o equipamento vai estar ativo. A parte tributária, de retorno financeiro para o país é muito significativa”, defende.
O representante da ABDC cita um estudo de injeção tributária na cidade de Ashburn, na Virgínia - conhecida como capital mundial dos data centers, ou Data Center Alley. Em 2025, 150 centros de dados estavam em funcionamento ou em construção por lá.
O condado onde a cidade se localiza, de Loudoun, oferece acesso a diversos loops de fibra óptica, energia barata e incentivos fiscais - como um programa de redução de impostos sobre vendas e uso proporcional aos operadores e clientes. Ele promove uma economia de 6% em servidores, chillers, geradores e hardware relacionado a servidores.
Em doze anos, a política de data centers cresceu a base tributária de 19% para 34%. O estudo é de 2022, da Mangum Economics, em nome do Conselho de Tecnologia do Norte da Virgínia.
Os dados indicaram que os data centers geraram 45.460 empregos e US$ 15,3 bilhões em produção econômica na Virgínia em 2021. Corresponde a aproximadamente 1% dos empregos e 2,5% da produção econômica da Virgínia.
O Condado de Loudoun teria recebido, em 2021, US$ 424,7 milhões em receita tributária proveniente de data centers, o que corresponde a mais de treze vezes o custo orçamentário estimado de US$ 32,3 milhões.
“Então, quando você dá um incentivo de um imposto de importação de 15%, o retorno para cadeia toda para o país, em termos de tributo é gigantesco. Fora o que você está trazendo de tecnologia agregada”, argumenta Luis Tossi.
A pasta retornou, via nota, informando que “o estímulo à instalação de data centers estará diretamente vinculado ao adensamento das cadeias produtivas do setor de TICs no Brasil, ampliando as possibilidades de geração de emprego e renda”.
“O programa (ReData) também trará obrigatoriedade quanto ao uso e a produção de fontes de energias renováveis, além de contrapartidas para que parte da produção de dados seja direcionada ao mercado brasileiro”, seguiu o texto.
Sobre os benefícios, afirmaram: “ocorrerão na exata medida dos tributos equivalentes, condicionados às exigências e contrapartidas que constarão do programa e com previsibilidade fiscal. Mais informações serão fornecidas quando da publicação da MP”.
Ao argumento de isenção, há controvérsias, especialmente pelos gastos em recursos naturais como energia e água, cada vez mais escassos no mundo. A própria Virgínia, por exemplo, em 2023, usava mais de 25% de toda a energia gerada no estado para os data centers. A previsão é que esse número suba para 46% até 2030, caso o crescimento continue no ritmo atual.
Algumas cidades do Norte Global estão expulsando estes centros de dados justamente pelo alto consumo. É o caso de Amsterdã, Dublin e Salt Lake City. Ao mesmo tempo, países do Sul como o Brasil miram virar hub para estes centros, no que alguns argumentam se tratar de uma “armadilha”, caso mal discutida e executada.
Como os data centers geram pouco emprego e focam em um retorno mais indireto, o perigo - para especialistas - é que países se tornem “meros vassalos” dos dados de empresas estrangeiras, que utilizarão de recursos naturais estrangeiros a troco de muito pouco.
Há conceitos teóricos e linhas de estudo voltadas para isso, como o imperialismo da Inteligência Artificial ou tecnofeudalismo. Defendem que o modelo de mercado da tecnologia seria uma espécie “reformulada” das antigas colonizações, nas quais as metrópoles sugavam as riquezas dos países menores, utilizavam dos produtos finais e refinados, e deixavam os países com no lixo e no abandono.
Nesta lógica, se formos comparar com a colonização portuguesa, os dados seriam nosso ouro. Se compararmos com o imperialismo estadunidense do século XX, seriam o petróleo. É a coisa mais valiosa que existe.
Explica Vladimir Nunan: “Quem controla os dados, controla a capacidade de prever, influenciar e moldar comportamentos em massa. As plataformas digitais operam com algoritmos alimentados por volumes massivos de dados pessoais, sensoriais, financeiros, políticos e institucionais. Esses dados não são neutros: eles decidem o que vemos, o que consumimos, em quem confiamos e em quem votamos”.
Os data centers, conforme a teoria do tecnofeudalismo seriam “os castelos dos senhores feudais”. “Onde as big techs, armazenam e controlam os dados que alimentam sua dominação econômica e social”, explica Nunan, que, no entanto, prefere a metáfora do petróleo: “Se os dados são o novo petróleo, os datacenters são as refinarias e nós, muitas vezes, apenas os poços”, defende Vladimir.
O principal debate circula, de novo, nos recursos naturais. O data center de Mesa, no Arizona (Estados Unidos) foi expulso pelo Governo local após denúncias de que utilizaria mais de um milhão e meio de litros de água por dia. A região é afetada por seca extrema.
Amsterdã, nos Países Baixos, implementou uma medida para impedir a construção de novos datacenters. Já em Santiago, no Chile, o data center da Meta mudou sistemas de refrigeração.
No Brasil, há uma forte luta no Ceará narrada nesta série de reportagem especial do O POVO+. O mega data center da Casa dos Ventos, para o Tiktok, gastará água e energia em abundância em um território indígena em que isso já falta. Para os anacés do Cauípe, vizinhos do futuro empreendimento, a luta não é para impedir, mas por justiça.
Para além da água e energia, os estudos sobre o tecnofeudalismo voltam os olhares para o uso dos dados e a falta de controle dos países que os abrigam. No Sul Global, diz Vladimir, a instalação de datacenters é apresentada como avanço tecnológico, mas muitas vezes ocorre sem soberania sobre os dados que circulam.
Os territórios oferecem vantagens como energia barata, terras subsidiadas, incentivos fiscais, e estabilidade jurídica.
No entanto, não deteriam o controle sobre os dados nem sobre os algoritmos que os processam. Como consequência, consolidam um papel periférico, no qual o valor dos dados e o poder deles vai para fora. A configuração impacta diretamente um cenário global já muito desigual e democraticamente instável - especialmente para a América Latina.
Para Luis Tossi, da ABDC, não se pode dizer que o serviço de dados será “extraído por outros países”, uma vez que as empresas brasileiras também o usarão. Hoje, o Brasil importa 60% dos serviços de nuvem que consome, o que, segundo a Associação de Data Centers, significa uma perda dos ganhos em serviços citados por ele mais acima.
“Então eles não estão aqui explorando energia e mão de obra para consumir em outro local. Não, a gente consome, a gente precisa desses data centers aqui no Brasil para que a gente consuma esses serviços regionalmente e gere riqueza aqui”, defende.
Quanto à soberania de dados, Tossi citou a cláusula soberana, projeto do Governo Federal, que subjuga o processamento de dados às leis e regulamentos nacionais - a exemplo da Lei Geral de Proteção de Dados.
Algumas iniciativas do projeto, como a Nuvem de Governo, garantem que os “dados estejam armazenados em território nacional, com alto nível de segurança e controle público”, segundo a União.
No entanto, uma política de fato de soberania de dados ainda está em fase de escuta popular e deve sair bem depois das isenções fiscais previstas aos data centers. A regulamentação dos dados pelo Congresso é outro debate com muita resistência e, ironicamente, rodeado de desinformação.
A principal política de incentivo ao data centers, em nível federal, é a ReData, detalhada no episódio anterior desta série. Ela está em andamento no Congresso, prevista para ser implementada em 2026.
Além disso, o presidente Lula assinou, no Ceará, Medida Provisória (MP) que altera as Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs). Ficou estabelecido que toda energia elétrica a ser utilizada por empresas instaladas em ZPEs seja proveniente de fontes renováveis que não tenham entrado em operação até a publicação da MP.
O Governo do Ceará oferece benefícios na ZPE do Estado como isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e no diferencial de alíquotas nas aquisições interestaduais de bens destinados. Como resultado, para além do projeto da Casa dos Ventos, outros cinco mega projetos, tão robustos quanto o do TikTok.
Há ainda iniciativas de Prefeituras. A Secretaria Municipal do Desenvolvimento Econômico (SDE) de Fortaleza informou que duas empresas de data centers são beneficiadas com incentivos fiscais municipais no âmbito do Programa de Apoio a Parques Tecnológicos e Criativos de Fortaleza (Parqfor). São elas a Hostweb e a DB3.
Caucaia, por meio de Machidovel Trigueiro, secretário de Ciencia, Inovação e Desenvolvimento Tecnológico, informou estar desenvolvendo programas de incentivo para fomentar a mão-de-obra local nos data centers.
As iniciativas incluem o Programa Talentos para Data Centers, em estudo de parcerias com IFCE, UFC, Sistema S, e escolas técnicas, com trilhas rápidas (facilities, redes, cibersegurança, operação de missão crítica) e metas de contratação local nas contrapartidas voluntárias dos empreendedores. Também preveem bolsas, residência técnica e bootcamps para acelerar a empregabilidade de jovens de Caucaia.
Já Aquiraz foi além e aprovou o Parque Tecnológico de Data Centers (Parqraz). O texto prevê incentivos fiscais — como reduções de impostos (ISS e ITBI) — e estabelece diretrizes para a instalação de centros de dados, startups e instituições de pesquisa.
Mas como essas medidas são recebidas? O mercado espera totalmente o ReData e, com ele, pretende atrair “o máximo de investimentos para o Brasil, não apenas das empresas de prestadoras de serviços de cloud estrangeiras, as big techs, mas também com também o desenvolvimento das aplicações organizadas”.
“A gente é muito otimista e nós estamos fazendo um trabalho de acompanhamento em todas as alçadas do poder público para ajudar na emissão do na publicação do Redata com maior brevidade, para para consolidar os investimentos a tomada de decisão e que a gente consiga sair os datacenters de inteligência especial para o Brasil”, completou.
Já Vladimir Nunan considera que “estamos cedendo sem contrapartidas estruturantes”. Como solução, ele sugere caminhos como: soberania digital como política de Estado; exigência de contrapartidas concretas dos centros de dados estrangeiros; investimentos em formação técnica local; apoio direto a ecossistemas de inovação e startups locais
“O Sul Global, se agir com inteligência e coordenação, pode transformar essa disputa assimétrica em uma oportunidade histórica de reequilibrar o poder digital e, com ele, revitalizar a própria democracia. O Brasil pode liderar tudo isso”, diz ele.
A população, por fim, se diz escanteada e recebe os novos empreendimentos com surpresa. No vendaval dos data centers, não querem ver a história se repetir e presenciar a nova revolução industrial, mais uma vez, como tomada de terras, destruição ou algo totalmente desconhecido, mesmo que a metros de distância.
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Série de reportagens investiga os mais diversos impactos do novo investimento cearense e nacional: os datacenters. Base física do império de dados global, eles chegam aos montes no Ceará. Enquanto prometem avanços, representam ameaças ao meio ambiente e baixo retorno às comunidades que os rodeiam