
Por baldios e caminhos desconhecidos, Maria foge com Jesus no colo. Tem medo, por isso fustiga as patas do animal, mas um jumentinho pode pouco, quando o assunto é trote veloz. E uma mãe, cujo filho escapou por pouco da espada de Herodes, pode menos, ou nada, em meio ao tamanho da ameaça.
No livro de Contos do Tempo de Noel, do escritor Henri Pourrat (*), os soldados de Herodes vêm no encalço da mãe e do filho. Guiam cavalos sírios pelo terreno montanhoso e árido da Judeia, informados do paradeiro dos fugitivos por olhos espiões.

— Viu passarem por aqui uma mulher e um menino? —, perguntaram a um camponês suado, em pleno trabalho de ceifar o trigo. O homem tirou o chapéu, assustado de ver assim diante dele os soldados mercenários do rei, tendo ali, bem ao lado, escondidos por ele em uma toca, e tapados por uma capa, a mãe, o filho, e o animal.
— Sim, nobre capitão de Herodes, foram por aquele lado —, disse, apontando em uma direção qualquer.
— Temos o comando de matá-la. Cortaremos os dois mamilos e os dois braços da mulher, e o menino cairá no chão, sem ter onde se apoiar e um peito para mamar — respondeu o soldado, e seguiu na direção indicada.

Maria — isso o conto não menciona — segue pela estrada na companhia de José. E, também, se temos o coração tocado por esta cena, dos desvalidos e vulneráveis. Daquele tempo, deste, e de outros vindouros. Imigrantes, sem-teto, catadores de lixo, moradores de barracos de lata, meninos e meninas vítimas de abusos e violência — milhares de mulheres e adolescentes mortas por namorados, companheiros e maridos, no mundo.
Todos e todas, em perigo de morte. Os que sonham, como ela sonhou, com uma vida melhor, um recomeço. Natais em paz. Chegar ao Egito, levando um menino à bordo de um barco inflável, ou no lombo de um burro, ou em um ônibus interestadual.

O Egito como imagem de um lugar seguro — um abrigo para vítimas de violência, um país acolhedor, um céu sem bombas, ruas sem perigo. Maria e Jesus a salvo das mãos assassinas de Herodes.
Isabele Gomes de Macedo, 40, não chegou ao Egito, com seus quatro filhos pequenos no colo. O mais novo, de um ano, por certo, ainda mamava leite. O mais velho, sete anos, talvez esperasse ansioso este Natal. De uma vida de espancamento e perseguição, morreram carbonizados, a casa incendiada, pela mão criminosa do pai e marido.
Um ex-namorado atropelou e arrastou pela estrada Tainara Souza santos, 31. Mais uma, arrancada do caminho do Egito. Jogada da sacada do décimo andar, Maria Katiane, 25. Três nomes para representar milhares.
Os corpos destas mulheres mortas são também os corpos perseguidos de Maria e de Jesus. Vidas não protegidas. Maria levantou-se do parto e agiu, para não morrer, com o filho. Quantas mulheres, depois dela, não tiveram a oportunidade de um Egito?

Massacre dos inocentes, chama-se este capítulo da história de Natal. Inocentes meninas e mulheres que não viram o cerco do ódio se fechando, farejando o rastro delas, em um país no quinto lugar em feminicídios. A maiorias das vítimas, jovens e negras.
O nome e a lembrança destas mulheres e crianças, assassinadas por uma “cultura do machismo”, estarão presentes neste Natal — no berço vazio, na casa queimada, nas marcas de sangue no asfalto.
As mulheres sobreviventes levantaram-se mais uma vez, neste dezembro.
O grito multiplicado delas enche este dezembro festivo, lembrar-nos que nem todos têm chaminé e rotas de fuga, mesmo pedregosas.

O menino enrolado em fraldas, fugiu nos braços da mãe para o Egito. Um jumento levava os dois no lombo. José vinha a pé, e logo atrás deles, plantinhas, árvores de raízes e animais. O jumento e o boi, tendo ganho o dom da palavra, tagarelavam. Todo este conjunto na representação do mundo e de seus viventes.
Lá se vai a pequena família puxando a humanidade de homens e mulheres de todas as origens e condições sociais. Todos nós, em marcha, porque um nascimento trouxe-nos um milagre.
E este milagre quebrou as leis da matemática, fazendo a conta de um mais um somarem três, segundo Bernadette Bricout (**), pesquisadora e professora de literatura. E todo milagre é puro mistério, diz a professora.

Onde não havia nada, logo haverá um novo ser — vulnerável e, ao mesmo tempo, cheio de potência de vida. Crianças, recém-nascidos, inocentes, que nos pedem a responsabilidade de nos levantarmos agora por eles. Para que no futuro não sejam estranhos uns para os outros, agressores e vítimas uns dos outros. E sim, amigos que apenas ainda não se encontraram, ainda não se conhecem.
O amanhã que nos espera, nos juntará, nos reunirá — pode ser ao redor de um berço, ou em um abraço, ou em uma ceia. Para isso, temos de construir espaços de vida, e não de violência. Como Maria fez.
Bom-Natal aos homens e mulheres, meninos e meninas, árvores e bichos voadores, terrestre ou aquáticos, inclusive a minúscula ameba. Todos os que fazem parte deste grande presépio mundial.
Paz e vida para nós.


(*) O escritor francês Henri Pourrat (1887-1959), estudioso e apaixonado pela cultura oral da região de Auvergne, na França, coletou e deu vitalidade a contos antigos, para que não se perdessem com o tempo. O Conto da Fuga para o Egito, mencionado neste ensaio, faz parte do livro dele, Contos do Tempo de Noel.
(**) A professora de literatura oral Bernadette Bricout pesquisa e trabalha com mitos e contos de tradição oral, transmitidos de geração em geração. Aos interessados sobre o tema, sugere-se a leitura do livro dela, La Clé des Contes (A Chave dos Contos).
Em clima de reencontro, atravessamos mais um ano e trazemos histórias de personagens que emocionaram, envolveram e encantaram o público, em reportagens veiculadas nas plataformas do O POVO+. São protagonistas da vida cotidiana que encaram passado, presente e futuro