Quem mora no Cariri está sempre ao passo de esbarrar em algum fóssil. Pela Bacia do Araripe, espalham-se insetos, peixes, plantas, dinossauros e pterossauros sem número, tão bem preservados em seu último momento que são capazes de oferecer respostas para as infinitas perguntas dos paleontólogos.
O Café das Antigas, localizado no Crato (a 507,2 quilômetros de Fortaleza), será o astro da vez para a descoberta de fósseis na região. Propriedade do jornalista Paulo Ernesto Arrais, o local abriga um café com decoração de peças variadas e raras. Da varanda, a vista deslumbrante da Chapada do Araripe.
O terreno está em uma encosta. Aos pés do restaurante, uma pequena plantação de milho e uma estação de secagem de grãos de café. Vira-se direita abaixo, então à esquerda e encontra-se um buraco três por três, coberto por duas lonas azuis. É a mais recente escavação da Universidade Regional do Cariri (Urca), à procura de respostas sobre o
A escavação foi iniciada ainda em 2022, quando o professor Álamo Saraiva levou uma equipe para abrir a trilha do terreno a facão e fazer um buraco de teste de um metro quadrado. Com isso, ele pode confirmar os níveis de concreção e daí enveredar para uma escavação completa. Essa iniciou em 2023, servindo também como um espaço didático para os alunos do Laboratório de Paleontologia da Urca (LPU).
Eu pude participar de um dia de escavação, na quarta-feira 21 de junho de 2023. O relógio marcava quase 14 horas quando chegamos ao local, acompanhados de uma garoa que, se inofensiva e querida pelo sertanejo, é amaldiçoada pelos paleontólogos.
O final de junho já deveria ser de poucas chuvas, mas São José guardou enxurradas para São João. Numa dessas, a escavação que já tinha passado da fase inicial de delimitação e de desentulho pesado foi totalmente destruída. "Virou tipo uma piscina", lembra a mestranda Ednalva da Silva Santos (LPU). "Chega a gente perdeu o brilho quando chegou no outro dia."
Com baldes de água e o restinho de força de vontade após ver dias de trabalho afogados, a equipe restituiu a escavação. Reforçaram a proteção do buraco com duas lonas grossas e impermeáveis, presas a troncos fincados no chão.
Assim que o sol espiou pelo nublado, as pás e picaretas ganharam donos: os mestrandos Artur Fernandes de Souza Araujo e Eugenio Barroso de Moura, ambos do LPU. Enquanto isso, os estudantes de Biologia Francielma Amparo das Neves (LPU) e Edinardo da Silva Santos
As instruções de Álamo para todos são constantes: bata assim, anote isso, atenção aqui, cuidado nessa parte, use ferramenta tal… Sentada fora do buraco, tudo o que eu via era rocha; mas os paleontólogos veem o que está impresso delicadamente nelas.
De repente um "opa!" parava a pá e todos se agachavam para ver um peixinho fossilizado numa rocha. Geralmente um Vinctifer comptoni, rodeado de coprólitos — cocô fossilizado, para os íntimos. Nas rochas, os excrementos preservados são brancos e arredondados, com resquícios de um material amarelo alaranjado. “São as escamas do que eles comeram”, Ednalva explica.
Para além dos vinctifers e das fezes aos montes, a equipe queria concreções mais específicas. Na Formação Romualdo, onde eles sabiam que estavam escavando pelas características do solo e das rochas, a fossilização dos animais ocorria enquanto eles estavam com uma textura meio gelatinosa: nem sólidos, nem líquidos. Essa característica permitiu que os minerais envolvessem os animais e os preservasse em pedras que, ao serem escavadas, surgem soltas, meio arredondadas.
Olhos amadores vêem apenas uma pedra maciça, mas a coleção de conhecimento e técnica da equipe já prevê um fóssil. Algumas concreções já tinham sido abertas quando Ednalva estendeu a mão para mim e perguntou se eu queria tentar abrir uma. “Eu posso mesmo? Tenho medo de estragar!”, amedrontei. Mas a ideia é bater mesmo e ia dar certo, ela tranquilizou.
Seguem as instruções: pegue a rocha com a mão esquerda e afaste ela do corpo, para evitar acidentes com as lascas. Com a mão firme e bem apoiada, bata até cansar. “Como vocês sabem onde é pra bater?”, perguntei. Foi a vez de Álamo indicar a solução.
Analisando bem, essas concreções têm linhas aqui e ali. Elas são os pontos onde a rocha provavelmente vai abrir e exibir o fóssil espelhado de um lado e de outro. O problema é quando, no processo de fossilização, a água adentra a concreção, criando vários caminhos e prejudicando essa linha guia. Mesmo assim a solução segue igual: bata com força e resiliência.
Todos já tinham revelado dois a três fósseis de peixinhos e cocozinhos e lá estava eu, martelando sem parar. Na minha cabeça, levei uns 30 minutos batendo. Precisei de mais ajuda do Álamo para indicar quais linhas golpear e de pouquinho em pouquinho a rocha foi sendo moldada e cedendo. Até que “pléc”. “Aaaaaaahhh, abriu! Consegui!”, gritei — ah, a doce sensação de abrir um fóssil.
Só sorrisos, admirei escamas marrom alaranjadas de um rabo com nadadeiras. Uma espiada rápida e Ednalva já sabia quem era: “É um Cladocyclus”, um peixe com uma bocarra de predador lotada de dentes pontudos, que podia alcançar 1,20 metro de largura.
A escavação deve seguir até agosto de 2023, ainda com outro buraco a ser aberto a alguns metros do atual ponto de trabalho para servir como uma contraprova dos achados. De acordo com Álamo, esse terreno é interessante porque a profundidade da Formação Romualdo nela é menor. O mais comum seria ela estar com 14 metros, mas esse pedacinho de chão tem apenas sete metros de profundidade para a área.
“A gente acha que é a desembocadura de nível”, propôs. Ou seja, quem sabe era o ponto de encontro entre o mar e os rios da região naquela época, quando o Cariri era uma laguna profunda de água salobra. “A gente quer entender para poder remontar como era a vida nesse lago, quando começou e quando deixou de ser marinho”, afirma Álamo.
Para o trabalho pesado de retirada de terra e perfuração de rochas
Para abrir as concreções/rochas
Agora pode ser substituída pelo celular, mas é necessária para anotar a localização da escavação
Os pincéis servem para limpar com delicadeza os fósseis encontrados, sem danificá-los
Para analisar os menores fósseis e os detalhes em coprólitos
Todos os detalhes precisam ser anotados e registrados meticulosamente
Uma das melhores partes é que, futuramente, a escavação poderá ser visitada. Por estar em um terreno privado, o proprietário concordou com o trabalho na condição de que a escavação ficasse aberta — o que se chama de testemunho — para servir como ponto turístico aos clientes do Café das Antigas.
A proposta foi recebida por Álamo e equipe com coração aberto: parte da luta dos paleontólogos do Cariri é que a pesquisa seja ferramenta de estímulo turístico e desenvolvimento social.
No final do dia, os fósseis encontrados, entre eles uma linda cauda bem preservada, foram guardados em caixas de papelão e prontamente levados ao LPU, na Urca. Lá, eles serão tratados e estudados. Os coprólitos especialmente servirão para as pesquisas de Aline Dino, uma das pesquisadoras do laboratório — o sobrenome é apenas uma feliz coincidência.
Até agosto, a equipe deve visitar a escavação três vezes por semana, trabalhando das 13 horas até o sol baixar. A nós, resta aguardar as descobertas que possivelmente virão dos vestígios do Cariri e maravilhar-se com o que já se sabe.
Reportagens do O POVO exploram o universo dos fósseis do Brasil e do mundo