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Escavação adentro: como funciona o trabalho de encontrar fósseis
Reportagem Seriada

Escavação adentro: como funciona o trabalho de encontrar fósseis

O POVO+ foi convidado para participar de um dia de escavação no Crato e mostra uma parte da jornada dos paleontólogos em busca de respostas num passado muito longíquo
Episódio 33

Escavação adentro: como funciona o trabalho de encontrar fósseis

O POVO+ foi convidado para participar de um dia de escavação no Crato e mostra uma parte da jornada dos paleontólogos em busca de respostas num passado muito longíquo
Episódio 33
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Quem mora no Cariri está sempre ao passo de esbarrar em algum fóssil. Pela Bacia do Araripe, espalham-se insetos, peixes, plantas, dinossauros e pterossauros sem número, tão bem preservados em seu último momento que são capazes de oferecer respostas para as infinitas perguntas dos paleontólogos.

O Café das Antigas, localizado no Crato (a 507,2 quilômetros de Fortaleza), será o astro da vez para a descoberta de fósseis na região. Propriedade do jornalista Paulo Ernesto Arrais, o local abriga um café com decoração de peças variadas e raras. Da varanda, a vista deslumbrante da Chapada do Araripe.

O terreno está em uma encosta. Aos pés do restaurante, uma pequena plantação de milho e uma estação de secagem de grãos de café. Vira-se direita abaixo, então à esquerda e encontra-se um buraco três por três, coberto por duas lonas azuis. É a mais recente escavação da Universidade Regional do Cariri (Urca), à procura de respostas sobre o Cretáceo Inferior "Há 145 milhões e 100,5 milhões de anos" .

A escavação foi iniciada ainda em 2022, quando o professor Álamo Saraiva levou uma equipe para abrir a trilha do terreno a facão e fazer um buraco de teste de um metro quadrado. Com isso, ele pode confirmar os níveis de concreção e daí enveredar para uma escavação completa. Essa iniciou em 2023, servindo também como um espaço didático para os alunos do Laboratório de Paleontologia da Urca (LPU).

O buraco da escavação é protegido por duas lonas impermeáveis.(Foto: Catalina Leite)
Foto: Catalina Leite O buraco da escavação é protegido por duas lonas impermeáveis.

Eu pude participar de um dia de escavação, na quarta-feira 21 de junho de 2023. O relógio marcava quase 14 horas quando chegamos ao local, acompanhados de uma garoa que, se inofensiva e querida pelo sertanejo, é amaldiçoada pelos paleontólogos.

O final de junho já deveria ser de poucas chuvas, mas São José guardou enxurradas para São João. Numa dessas, a escavação que já tinha passado da fase inicial de delimitação e de desentulho pesado foi totalmente destruída. "Virou tipo uma piscina", lembra a mestranda Ednalva da Silva Santos (LPU). "Chega a gente perdeu o brilho quando chegou no outro dia."

O tempo bonito pra chover não costuma ser animador para os paleontólogos e, se chove, pode causar transtorno ao trabalho de escavação(Foto: Catalina Leite)
Foto: Catalina Leite O tempo bonito pra chover não costuma ser animador para os paleontólogos e, se chove, pode causar transtorno ao trabalho de escavação

Com baldes de água e o restinho de força de vontade após ver dias de trabalho afogados, a equipe restituiu a escavação. Reforçaram a proteção do buraco com duas lonas grossas e impermeáveis, presas a troncos fincados no chão.

Assim que o sol espiou pelo nublado, as pás e picaretas ganharam donos: os mestrandos Artur Fernandes de Souza Araujo e Eugenio Barroso de Moura, ambos do LPU. Enquanto isso, os estudantes de Biologia Francielma Amparo das Neves (LPU) e Edinardo da Silva Santos (Lacruse) "Laboratório de Crustáceos do Semiárido da Urca" anotavam alguns dados nas pranchetas. Ednalva e Álamo já tinham martelos em mãos e assim começou a sinfonia de terra arada e arremessada, rocha martelada e as conversas e risos próprios de qualquer trabalho em equipe.

As instruções de Álamo para todos são constantes: bata assim, anote isso, atenção aqui, cuidado nessa parte, use ferramenta tal… Sentada fora do buraco, tudo o que eu via era rocha; mas os paleontólogos veem o que está impresso delicadamente nelas.

Os mestrandos Arthur Araujo e Eugenio de Moura escavando. (Foto: Catalina Leite)
Foto: Catalina Leite Os mestrandos Arthur Araujo e Eugenio de Moura escavando.

De repente um "opa!" parava a pá e todos se agachavam para ver um peixinho fossilizado numa rocha. Geralmente um Vinctifer comptoni, rodeado de coprólitos — cocô fossilizado, para os íntimos. Nas rochas, os excrementos preservados são brancos e arredondados, com resquícios de um material amarelo alaranjado. “São as escamas do que eles comeram”, Ednalva explica.

Para além dos vinctifers e das fezes aos montes, a equipe queria concreções mais específicas. Na Formação Romualdo, onde eles sabiam que estavam escavando pelas características do solo e das rochas, a fossilização dos animais ocorria enquanto eles estavam com uma textura meio gelatinosa: nem sólidos, nem líquidos. Essa característica permitiu que os minerais envolvessem os animais e os preservasse em pedras que, ao serem escavadas, surgem soltas, meio arredondadas.

Olhos amadores vêem apenas uma pedra maciça, mas a coleção de conhecimento e técnica da equipe já prevê um fóssil. Algumas concreções já tinham sido abertas quando Ednalva estendeu a mão para mim e perguntou se eu queria tentar abrir uma. “Eu posso mesmo? Tenho medo de estragar!”, amedrontei. Mas a ideia é bater mesmo e ia dar certo, ela tranquilizou.

 

 

Seguem as instruções: pegue a rocha com a mão esquerda e afaste ela do corpo, para evitar acidentes com as lascas. Com a mão firme e bem apoiada, bata até cansar. “Como vocês sabem onde é pra bater?”, perguntei. Foi a vez de Álamo indicar a solução.

Analisando bem, essas concreções têm linhas aqui e ali. Elas são os pontos onde a rocha provavelmente vai abrir e exibir o fóssil espelhado de um lado e de outro. O problema é quando, no processo de fossilização, a água adentra a concreção, criando vários caminhos e prejudicando essa linha guia. Mesmo assim a solução segue igual: bata com força e resiliência.

As concreções que guardam fósseis ficam soltas, são arredondadas e também têm linhas indicando onde a rocha irá abrir ou os sulcos da água que invadiu o mineral durante a fossilização.(Foto: Catalina Leite)
Foto: Catalina Leite As concreções que guardam fósseis ficam soltas, são arredondadas e também têm linhas indicando onde a rocha irá abrir ou os sulcos da água que invadiu o mineral durante a fossilização.

Todos já tinham revelado dois a três fósseis de peixinhos e cocozinhos e lá estava eu, martelando sem parar. Na minha cabeça, levei uns 30 minutos batendo. Precisei de mais ajuda do Álamo para indicar quais linhas golpear e de pouquinho em pouquinho a rocha foi sendo moldada e cedendo. Até que “pléc”. “Aaaaaaahhh, abriu! Consegui!”, gritei — ah, a doce sensação de abrir um fóssil.

Só sorrisos, admirei escamas marrom alaranjadas de um rabo com nadadeiras. Uma espiada rápida e Ednalva já sabia quem era: “É um Cladocyclus”, um peixe com uma bocarra de predador lotada de dentes pontudos, que podia alcançar 1,20 metro de largura.

O fóssil de um peixe Cladocyclus.(Foto: Catalina Leite)
Foto: Catalina Leite O fóssil de um peixe Cladocyclus.

A escavação deve seguir até agosto de 2023, ainda com outro buraco a ser aberto a alguns metros do atual ponto de trabalho para servir como uma contraprova dos achados. De acordo com Álamo, esse terreno é interessante porque a profundidade da Formação Romualdo nela é menor. O mais comum seria ela estar com 14 metros, mas esse pedacinho de chão tem apenas sete metros de profundidade para a área.

“A gente acha que é a desembocadura de nível”, propôs. Ou seja, quem sabe era o ponto de encontro entre o mar e os rios da região naquela época, quando o Cariri era uma laguna profunda de água salobra. “A gente quer entender para poder remontar como era a vida nesse lago, quando começou e quando deixou de ser marinho”, afirma Álamo.

 

Ferramentas em uma escavação

 

Uma das melhores partes é que, futuramente, a escavação poderá ser visitada. Por estar em um terreno privado, o proprietário concordou com o trabalho na condição de que a escavação ficasse aberta — o que se chama de testemunho — para servir como ponto turístico aos clientes do Café das Antigas.

A proposta foi recebida por Álamo e equipe com coração aberto: parte da luta dos paleontólogos do Cariri é que a pesquisa seja ferramenta de estímulo turístico e desenvolvimento social.

Após o dia de escavação, os materiais são levados para o Laboratório de Paleontologia da Urca.(Foto: Catalina Leite)
Foto: Catalina Leite Após o dia de escavação, os materiais são levados para o Laboratório de Paleontologia da Urca.

No final do dia, os fósseis encontrados, entre eles uma linda cauda bem preservada, foram guardados em caixas de papelão e prontamente levados ao LPU, na Urca. Lá, eles serão tratados e estudados. Os coprólitos especialmente servirão para as pesquisas de Aline Dino, uma das pesquisadoras do laboratório — o sobrenome é apenas uma feliz coincidência.

Até agosto, a equipe deve visitar a escavação três vezes por semana, trabalhando das 13 horas até o sol baixar. A nós, resta aguardar as descobertas que possivelmente virão dos vestígios do Cariri e maravilhar-se com o que já se sabe.

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