Cristas multiformes e multicoloridas, bicos dentados ou banguelas, asas gigantescas. Os pterossauros caririenses desafiam a imagem hollywoodiana dos répteis alados com uma diversidade de tamanhos, cores e estilos de vida excepcionalmente preservados nas rochas da Bacia do Araripe.
Dominando os céus caririenses no período Cretáceo, há 125 e 100 milhões de anos atrás, os pterossauros foram um grupo completamente extinto pela queda do asteroide. Nenhum animal diretamente aparentado a eles sobreviveu, diferente do que ocorreu com as aves ascendentes dos dinossauros.
Leia mais
Além disso, fósseis de pterossauros são raros. Encontrar esqueletos completos é motivo de festejos sem fim, assim como achar ossinhos de partes aleatórias do corpo — o que é mais provável.
Pela ausência de descendentes e de fósseis, os pterossauros são uns dos maiores mistérios da paleontologia. Mesmo com paleoartes garantindo imagens concretas de animais majestosos, o que realmente se entende sobre os répteis voadores é quase nada comparado com o que desejamos saber. Mas a terra encantada do Cariri é privilegiada pelo potencial de oferecer algumas respostas.
Talvez o mais surpreendente dos pterossauros seja a habilidade de voar. Tudo na imagem deles parece pesado: as enormes cristas e bicos, a envergadura das asas e a altura de seus corpos.
É claro, existiam pterossauros pequeninos, mas é impossível ignorar os gigantes voadores como o Thanatosdrakon amaru, da Argentina, com nove metros de envergadura (a maior da América do Sul), ou o norte-americano Quetzalcoatlus northropi, com 10 metros de envergadura.
No Cariri, o senhor dos céus com certeza foi o Tropeognathus mesembrinus (imagem acima), alcançando oito metros de envergadura. É um dos maiores pterossauros já encontrados na Gondwana, o supercontinente que unia África, América do Sul, Antártida, Índia e Austrália.
É de se impressionar a força que esses animais deveriam ter para decolarem. A paleontóloga Taissa Rodrigues, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), faz uma analogia com o peito de frango. Sim, o que se come: esse é o músculo exercitado ao abaixar a asa. Se em uma galinha o peitoral é estufado, imagine como deveriam ser os dos pterossauros.
“Você tem que fazer muita força para abaixar a asa contra o vento. Então o músculo que abaixa asa é muito forte!”, explica. E o osso ao qual esse músculo se prendia nos répteis alados era enorme — mesmo naqueles com hábitos terrestres.
Os pterossauros são primos dos dinossauros. A principal característica deles são as asas, compostas por uma membrana presa a uma palma da mão comprida, na qual o quarto e último dedo é enorme, indo até o final da asa.
Enquanto os humanos têm cinco dedos e, em cada um, três falanges, os pterossauros têm quatro dedos e quatro falanges. Ou seja, são dedos bem compridos.
Os paleontólogos não sabem até onde as asas iam: se elas se prendiam no alto da coxa do animal ou se elas iam até os tornozelos. Essas informações (até agora) não ficaram preservadas nos fósseis.
Nos outros dedos, eles possuíam garrinhas. Provavelmente tinham várias utilidades,especialmente para agarrar árvores ou rochedos.
Por outro lado, eles tinham ossos razoavelmente leves. Assim como nos passarinhos, os ossos dos pterossauros (que não têm relação nenhuma com as aves modernas) eram pneumatizados; ou seja, “ocos”.
“Eles têm um monte de características que mostram claramente que eles são totalmente adaptados para o voo. A gente sabe que eles tinham capacidade de bater as asas, mas alguns provavelmente conseguiam passar boa parte do tempo planando, se aproveitando de correntes de ar”, comenta Taissa.
Claro, tudo depende de onde esses animais viviam. Se a região era litorânea, mais espaçosa e com boas lufadas de ar, é mais provável que eles planassem mais e fossem até maiores em envergadura. Já naqueles ambientes mais fechados como florestas, a possibilidade é que os animais fossem um pouco menores.
O Cariri viveu esses dois momentos durante o Cretáceo Inferior: o Paleolago Crato, com vários lagos rasos e vegetação diversificada, e a Laguna Crato, com água salobra, profunda e com menos variedade de plantas.
“Eu acho demais a gente pensar que um dia existia um animal que podia ter metros e metros de abertura da asa voando por aqui. É impensável, né?”, comenta Taissa. “Às vezes eu tento muito pensar, mas é tão diferente do tudo que a gente vê hoje em dia… A gente está acostumado a pensar muito em dinossauros, mas eles estavam voando e eram enormes. Claro que tinham pequenos, mas acho que isso faz parte. Eles estavam vivendo em um momento com muitas novidades.”
Os pterossauros do Cariri são famosos mundialmente, a ponto de fazerem parte da infância e da adolescência do espanhol Borja Holgado. É por causa dos incríveis "pterossauros de Santana" que Holgado virou paleontólogo e mudou-se para o Brasil para estudá-los. Primeiro, foi ao Rio de Janeiro, e alguns anos depois ao Cariri, como um dos 11 pesquisadores visitantes da Universidade Regional do Crato (Urca) contratados por edital da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap).
Ao O POVO+, Borja comentou a singularidade do Cariri em relação ao resto do globo quando se fala em preservação de pterossauros. Na Bacia do Araripe, os fósseis ficam conservados tanto em duas dimensões (na Formação Crato) e em três dimensões (na Formação Romualdo). Isso significa que alguns fósseis ficam achatados, enquanto outros apresentam volume. “Isso não acontece em outro lugar do mundo", afirma Borja em relação às duas formas de conservação.
“Esse lugar é incomparável. Não tem como medir isso” - Borja Holgado, paleontólogo
Tem mais: os tecidos moles, como pele e plumas, também ficam preservados na região. A qualidade dos materiais encontrados no Cariri é tão boa que pesquisas já foram capazes de identificar moléculas de melanina preservadas na crista de um Tupandactylus imperator.
Comparável a essa belezura está a China, pontua Borja, onde o tecido mole também conserva-se em rochas laminadas — assim como a pedra Cariri — e onde já foram descobertas mais de 60 espécies de pterossauros. Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha são os outros países que fecham o top 5 para a descoberta de fósseis dos gigantes voadores.
Mas mesmo com tantos pterossauros aqui e ali, os do Cariri são especiais. São entre 26 e 33 espécies encontradas na região (em toda a extensão da Espanha foram encontrados quatro, compara Borja), com variedade de cristas, bicos e tamanhos.
Ainda que muitos sejam pedaços, existem espécimes caririenses com praticamente todo o esqueleto conservado. Um deles é o Tupandactylus navigans, o esqueleto de pterossauro mais completo do Brasil. É o sonho de qualquer paleontólogo estudioso de pterossauros, um grupo pequeno de cientistas apaixonados que precisam conviver com o fato de que, talvez, nunca saibam por exato como esses bichões eram verdadeiramente.
Enquanto isso, depende-se da imaginação dos paleoartistas para materializar como eles poderiam ser em vida. Abaixo, veja alguns dos quase 30 pterossauros caririenses. Ao clicar nas fotos, você tem acesso às ilustrações completas, à imagem dos fósseis e a informações sobre a formação em que os materiais foram encontrados.
Há um mundo de perguntas a serem respondidas, especialmente aquelas que envolvem alimentação, ecologia e convivência dessas espécies. Um dos problemas é a raridade e incompletude dos fósseis, mas outra bem mais séria vem da ausência de
Com o tráfico, informações sobre onde e em qual porção da terra o fóssil foi encontrado são vagas e, por vezes, inexistentes. Sem elas, é praticamente impossível precisar quando exatamente os animais viveram.
Por exemplo, podemos dizer que o Kariridraco dianae e o Tupuxuara leonardii vieram da formação Romualdo, correspondente à idade do Aptiano no Cretáceo Inferior. Ou seja, eles viveram entre 125 e 113 milhões de anos.
Mas a pergunta é: quando exatamente no Aptiano? As espécies duraram 12 milhões de anos inteiros? Eles conviveram? Ou será que eles nunca compartilharam a terra no mesmo período?
“Todo mundo pode falar no artigo: ‘Ah, eu acho que veio lá perto de Santana, perto de Nova Olinda’. Mas será que veio mesmo ou um peixeiro simplesmente inventou uma coisa? A gente nunca mais vai saber com dados que temos, só fazendo novas escavações, encontrando tudo bonitinho… O que vai levar quantos anos de trabalho de escavação? Porque os pterossauros são muito difíceis de serem encontrados”, reflete a professora Taissa.
Enquanto isso, o trabalho continua. Se o que sabemos sobre os répteis voadores mudou tanto nos últimos 30 dias, como explica o paleontólogo Borja Holgado, não há porque duvidar que o futuro reserva grandes descobertas. Para isso, basta uma ciência ética e valorizada.
"Oie! Aqui é a Catalina, repórter do OP+. Dos pterossauros caririenses que você acabou de conhecer, qual o seu favorito?"
Reportagens do O POVO exploram o universo dos fósseis do Brasil e do mundo