Foram dois anos disponíveis a quem quis entendê-lo e pouco menos de outros dois estão por vir aos que queiram se prestar ao exercício. Até as consciências mais indiferentes a Brasília costumam assistir com incredulidade às ações e inações do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), principalmente no aspecto do combate à pandemia da Covid-19.
Desde que subiu a rampa do Planalto, o capitão tem demonstrado coerência em relação àquele trajeto percorrido na Câmara dos Deputados, sempre caótico e recordável por diferentes demonstrações de ojeriza ao jogo democrático. Dá até pra falar em negacionismo científico. Ou a "pílula do câncer" não faz lembrar a cloroquina oferecida às emas?
A Presidência da República é o espaço de implementação de um projeto de poder cujo um dos elementos centrais é o da obstinada fabricação de inimigos a serem combatidos, talvez mandados à ponta da praia, tais como isolamento social, vacinas, máscaras, urnas eletrônicas, governadores ou prefeitos. E o STF, sempre ele. Bolsonaro elenca novos "comunismos" ao tempo em que o painel da tragédia informa que mais de 240 mil brasileiros sucumbiram à peste.
O primeiro ano de pandemia revelou fragilidades e virtudes de governantes pelo mundo. A crise pesou para que Donald Trump fosse alijado da Casa Branca. Aqui, no meio do caminho, haviam pleitos municipais.
Termômetros distantes de aferir a temperatura de 2022, no mínimo permitiram verificar que os humores do eleitorado, dinâmicos, mudaram no sentido de uma opção pela cautela. Diante do quadro sanitário e econômico de incertezas, a maioria voltou a privilegiar nas urnas nomes tradicionais do mundo político em detrimento às autodenominadas novidades. Bolsonaro não fez prefeitos em capitais.
Em 22 de janeiro, levantamento Datafolha mostrou queda na popularidade do mandatário. A rejeição saltou de 32% a 40% e a aprovação caiu de 37% a 31%. A pior de um presidente nesse estágio dentre os primeiros mandatos daqueles eleitos desde 1989.
Emoldurado pela derrota política para João Doria (PSDB), o governador de São Paulo que viu sua equipe vacinar a enfermeira Mônica Calazans, a primeira no País, o desinteresse de Bolsonaro e Eduardo Pazuello (Saúde) na aquisição de vacinas fez crer que a sensação de impeachment poderia se materializar, já que tudo vinha na esteira de sucessivos boicotes a medidas de contenção do vírus.
A possibilidade foi por ora aplacada pela vitória de Arthur Lira (PP-AL) na Câmara dos Deputados, um autêntico membro do "centro democrático", como ele prefere classificar o Centrão que dá sustentação ao presidente saudoso de Brilhante Ustra. Fato é que o alagoano encarna tudo aquilo que um dia Bolsonaro jurou que não queria para si.
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O tempo da pesquisa Datafolha coincide com o fim do auxílio emergencial, mecanismo provisório de distribuição de renda por meio do qual o presidente conseguiu afrouxar o nó da gravata. Fórmula simples, ao feitio dele. Foi necessário, sim, que as torneiras fossem abertas, na perspectiva dos que seriam socorridos.
Para Bolsonaro, serviram de piloto automático, elemento único a fazer o governo parar em pé. Surfou então confiante nos dividendos políticos do suporte financeiro, esquecendo-se de algo: o fardo que é liderar.
Como se governar fosse antes acenar a caminhoneiros por uma hora para somente em seguida - ou nunca - traçar um plano decente de imunização. Não uma tarefa à base de exposição de argumentos, construção de entendimentos, execução de estratégias conjuntas.
O movimento liderado pelo presidente é reacionário e vislumbra na crise oportunidade de atingir o estresse institucional perfeito. É o combustível que o mantém vivo mesmo quando se insinua conciliador e com o qual marchará favorito à disputa de 2022.
Sua cruzada contra o pensamento racional explica o fato de que insira na fervura do caldeirão de suas frases mais atentatórias toda instituição que o trate a partir de uma perspectiva de crítica, fiscalização e cobranças.
Tome-se como exemplo o Jornalismo, um ofício por meio do qual é possível ter um nível de compreensão da realidade. Ora mais profundo, ora mais imediato. Um incômodo que deveria acabar, segundo disse. Entram aqui o STF e o Congresso Nacional.
Instituições que em vários momentos lhe pediram somente que agisse como adulto perante uma crise sanitária de proporções globais que demanda liderança.
Linha de estratégia diferente foi traçada a partir do Palácio da Abolição para reduzir os estragos inevitáveis. A começar pela concepção exitosa no Comitê de Enfrentamento ao Coronavírus de que a prioridade número zero seria a de mobilizar esforços para proteger vidas.
Mesmo que a consequência disso tenha representado repercussões políticas e pressões econômicas. Valeu para Camilo a máxima citada à exaustão de que governar é fazer escolhas.
O Comitê, aliás, é elemento que merece olhar particularizado. A criação de uma estrutura para análise da realidade e elaboração de soluções é exemplo de que houve disposição para encarar o caos à altura de sua complexidade desde o início.
Outra dimensão do Comitê: erros e acertos cometidos na condução da crise foram resultados de decisão colegiada, e também sob liderança do secretário de Saúde, Dr. Cabeto. O mesmo desde o início do segundo mandato do petista.
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Camilo tem entrado e saído de sucessivas crises. Embora marcado pelos desafios sanitários, o pontapé inicial do ano do gestor foi sob o estresse causado pela paralisação de parte da Polícia Militar, numa escalada de tensões sempre traumática para toda a sociedade.
É impossível que se saia incólume de tanta turbulência. Agora, por exemplo, o chefe do Executivo estadual sofre elevada pressão de setores do empresariado em função do endurecimento de medidas de combate à transmissão da Covid-19. Uma pilha de situações conflituosas que exigem de Camilo serenidade administrativa.
Alguns nós próprios da política também demandaram do petista capacidade de fazer equilibrismos, na medida em que suas partes pedetista e petista tiveram de ser calculadamente silenciadas. Assim como em 2016 e 2018, sim, mas com a novidade de que após a reeleição Camilo atingiu outra estatura política, muito longe daquele preposto de Cid Gomes de 2014.
Sintomático disso foi a disputa política e jurídica entre José Sarto (PDT) e Luizianne Lins (PT), que mediram forças para ver quem fazia o uso mais convincente da imagem do governador nas campanhas. Imprensado entre a ligação real e a ligação partidária, nessa ordem, Camilo teve de encontrar modo de operar na disputa.
Lançou-se numa campanha contra Capitão Wagner (Pros), surpreendendo no tom até mesmo aliados. O policial inicialmente relevou os ataques. Na sequência, entrou no ringue. Também por isso, mas não somente, Sarto terminaria prefeito da Capital.
Série de reportagens que marca um ano da pandemia de Covid-19 no Brasil