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Passarinhá-lo no araticum
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Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações

Passarinhá-lo no araticum

Terei prazer sem fim em silenciar e deixar que percebas que há um desmedido de pássaros no Parque do Cocó e orquestra de cantigas sem fim. Até na travessia da noite
Tipo Crônica
Especial Rio Cocó quarentena. Sanhaçu-cinzento (Tangara sayaca). Parte do dia, está em busca de áreas de alimentação no Parque do Cocó. (Fortaleza-Ceará, 31/5/2020, Foto: Demitri Túlio) (Foto: Demitri Túlio)
Foto: Demitri Túlio Especial Rio Cocó quarentena. Sanhaçu-cinzento (Tangara sayaca). Parte do dia, está em busca de áreas de alimentação no Parque do Cocó. (Fortaleza-Ceará, 31/5/2020, Foto: Demitri Túlio)

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Melhor delicadeza para quem não tem intimidade com uma floresta, com um rio, com um mangue, uma duna, uma lagoa... é passarinhar a criatura. E não estou de ironia, é uma benquerença esparramada. Passarinhá-la, passarinhá-lo.

Banhá-la de floresta, oferecer a ela ou ele um mergulho. Alagá-lo em cada vereda, repeti-la numa mesma árvore quantas vezes for para rebrotá-la. Encharcar, irrigar, ensopar, regar, voá-lo de passarins.

Rio, lago, borboletas, todas as cantigas, sapos e cigarras. E o silêncio também, a consonância em qualquer lugar onde uma ou mais árvores estiverem reunidas nas perenidades e ressurgências. Aliás, simplesmente assim, sem obrigação de serviço ambiental ou sei lá o que o ser humano encaixota no encaretamento do cartesiano reles.

 

"Convido-o e me disponho a levá-lo ao Parque do Cocó, à Sabiaguaba, ao mangue do rio Ceará, à Barra do Atlântico, à lagoa da Precabura"
 

 

Benquerença esparramada tenho por o amigo Nazareno Albuquerque. Periodista caro, pessoa do bem e não há nenhum motivo para agredi-lo nem tratá-lo nos cascos. Um senhor da cidade, um aliado em tempos brutos.

Convido-o e me disponho a levá-lo ao Parque do Cocó, à Sabiaguaba, ao mangue do rio Ceará, à Barra do Atlântico, à lagoa da Precabura, ao Parque Rio Branco, ao Parque Botânico, à Florestinha do Curió...

Melhor que seja numa manhã. Rebentando ainda. Cedinho, quando os pássaros revivem antes de nós. Meio que me acostumei com o primeiro rouxinol trinando, depois um rasgo bem-te-vi, o alvoroço dos sanhaços e da periquitada.  

 

"Falo barulhento, mas as buzinas desaparecem quando entregamos a alma. É o passaredo quem dá sentido ao amanhecer"

 

Meu caro amigo Naza, poderíamos ter conversado antes. Em sua sala, onde habito atualmente na Redação, no Café do Jornal, nos corredores agradáveis do O POVO onde a pressa não empata um abraço, um afago ou juras amorosas.  

Terei prazer sem fim em silenciar e deixar que percebas que há um desmedido de pássaros no Cocó! Até no anoitecido. Um privilégio. E estou falando apenas de um trecho, "o Cocó dos ricos", apesar do miolo zoadento de asfaltos, a Sebastião de Abreu, a Padre Antônio Tomás, a Engenheiro Santana Júnior e o shopping Iguatemi.

Falo barulhento, mas as buzinas desaparecem quando entregamos a alma. É o passaredo quem dá sentido ao amanhecer. Não há pneus, mesmo que a floresta esteja acuada em um parque sempre em risco.

 

"E tem assim, já fui mais amante do Parque (ainda o amo) quando passei mais de mil dias sem fim dado à floresta antes invisível"

 

Elas e eles chilreiam, gorjeiam, trilam, trinam, cantam, pipilam, cantarolam, piam, rasgam, dobram, garganteiam, emitem agudos e graves. Arrulhar, assobiar, chiar, pipiar, grasnar, cacarejar, crocitar, cantam U2.

E tem assim, já fui mais amante do Parque (ainda o amo) quando passei mais de mil dias sem fim - olhos, ouvidos e o corpo todo - dado à floresta antes invisível. Na época, cataloguei pelo menos 85 espécies diferentes de aves. Passarins e pássaros.

Deu um caderno histórico e do meu bem-querer: "Expedição Cocó - pássaros". Uma grande reportagem. A primeira pesquisa científica, sistematizada e fotografada, sobre a avifauna dali. Foi para o plano de manejo do Parque, mas nem crédito me deram. Tranquilo. O POVO importou o que o repórter ofereceu pra cidade.

 

"Um dia, eu não sabia o que era araticum. O fruto que o sanhaçu enfia o bico e só falta morrer de gozo"

 

E sobre as árvores? Há frutíferas lá pra gente comer, imagina para os pássaros e passarinhos! Nos pés de chichá nascem os periquitos-da-caatinga e os periquitos-do-encontro-amarelo. Nas mangueiras também.

A exótica azeitoneira é a estação dos sibites, dos sanhaços, dos beija-flores, dos corrupiões, do vem-vem fêmea e macho. O pé de torém poderia se chamar árvore de todos os pássaros. Suas "espigas" de sementes ou "frutos" dão de comer.            

Um dia, eu não sabia o que era araticum. Na verdade, araticum-do-brejo (Annona glabra). O fruto que o sanhaçu enfia o bico e só falta morrer de gozo.

Tenho fotografias do que escrevo e anotações de 2007 para cá de rotinas em horários diferentes e diários de campo.

Tão bonito o bico do sanhaçu enfiado no doce do araticum! Larguei a câmera, fui lá na lama e comi. Entre azedinhos e doces, um primo da ata, dividido em gominhos e amarelo. Uma delícia.

 

"Elas e eles arrulham, assobiam, chiam, chilreiam, gorjeiam, grasnam, cacarejam, crocitam, piam, trilam, trinam, cantam"

 

Há cajueiros, mangueiras, marizeiras, goiabeiras, jenipapeiros, muricizeiros, mamoeiros, há árvore do coco babão, macaubeira, há o doce da flor do pau-branco.

Há beija-flores-tesouras, beija-flores-de-barriga-branca, beija-flor-vermelho, beija-flor-de-bico-vermelho, beija-flor-de-veste-preta, há mangangá, abelhas e flor de maracujá...

Elas e eles arrulham, assobiam, chiam, chilreiam, gorjeiam, grasnam, cacarejam, crocitam,  piam, trilam, trinam, cantam, pipilam, cantarolam, rasgam, dobram, garganteiam, assopram, silvam, sibilam..  

 

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