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Uma floresta que não desiste
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Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações

Uma floresta que não desiste

Um rio persistir! Dunas não desistirem! Um mar não se ir daqui, apesar de tantos maus-tratos!
Tipo Notícia
2704demitri.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2704demitri.jpg

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Recebi do companheiro Nazareno Albuquerque uma carta-aceite para uma passarinhada no Parque do Cocó. Irei passarinhá-lo com prazer na floresta ressurgente e cheia de bichos alados - passarins, insetos e indizíveis. E outros animais sobreviventes na metrópole insustentável. 

No Cocó também existem diversas espécies da flora! Frutíferas ou não, todas tão importantes quanto a existência de minha mãe ou de pessoas e bichos imprescindíveis à natureza. Independente de serviços ambientais e da "utilidade" capitalista de uma mata. Uma floresta em pé, numa Fortaleza em desconstrução permanente, é parte do gracioso e da ressurgência na Casa Comum. 

Um rio persistir! Dunas não desistirem! Um mangue insisitir! Um mar não se ir daqui, apesar de tantos maus-tratos! É fortuna pra nós que aqui ainda estamos...

A seguir publico a carta de Nazareno, sem aspas, em resposta à crônica "Passarinhá-lo no Araticum":        

Amo pássaros. Talvez pelo fato das gaiolas penduradas no varandão da casa dos meus pais. Aprisionados cantos de sabiás, galos-de-campina, canários-da-terra, corrupião e pintassilgos, todos entregues, a partir do alvorecer até noitinha, a uma batalha de trinados com aroma de milho verde. 

As partituras variavam do molto piano dos pintassilgos ao allegro dos canários; ao intervalo do lírico espetáculo, uma descidinha aos comedouros: bananinhas em rodelas, mamão picotado, goiaba algumas vezes e milho batido com socador no pilão de madeira. 

Não sei se cantavam fazendo festa ou plangendo a prisão na gaiola. Mas os sons eram idênticos aos cantos que eu ouvia quando eles estavam em gorjeios de liberdade nos galhos altos do nosso sítio. 

 

"Em cada cidade, uma sonoridade diferente. Em São Paulo predominam os sabiás"

 

Essa paixão por passarinhos vinha junto comigo por onde andei nesta vida, a passeio ou a trabalho. Nos finais de tarde me aboletava no banco da praça principal, auscultando os trinados ao crepúsculo nos galhos altos das árvores. 

Em cada cidade, uma sonoridade diferente. Em São Paulo predominam os sabiás; no Rio de Janeiro os bem-te-vis; em Teresina o canário-da-terra; em Recife o pintassilgo, os trincas-ferro e curiós.

Eram passarinhos, mas poderiam ser Jobim, Gonzagão, Lennon, Caymmi, João Gilberto ou Trenet. Beethoven, quem sabe.

 

"Os mais frequentes são os galos-de-campina e os bem-te-vis. Os sanhaços são mais desconfiados"

 

Hoje, meu afetuoso irmão Demitri, cultivo esses encantos que Deus nos proporciona alimentando meus "vira-latas" das ruas arborizadas do meu bairro, gorjeando alegremente aos primeiros raios de luz à espera da refeição matinal: bananas em rodelas, milho moído, mamão em pedaços e miolos de pão, todos lançados da janela do meu apartamento, de onde saúdo e afago o novo dia. 

Os mais frequentes são os galos-de-campina e os bem-te-vis. Os sanhaços são mais desconfiados, todavia frequentadores assíduos da ceia. 

Sempre que posso, cumpro outro ritual. O de comprar gaiolas com pássaros vendidos irregularmente para depois devolver-lhes a liberdade roubada por traiçoeiras arapucas armadas nas caatingas ou em pés de cajueiro. Isto me purifica mais a alma do que rezar o terço, confesso. 

 

"no Cocó existem manguezais, restingas, matas de tabuleiro, matas ciliares de carnaúba, dunas e campos salinos"
 

 

"As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá", no Parque do Cocó, meu caro e precioso companheiro Demitri Túlio. Não escuto no parque o Corrupião, nem o sincopado canto dos Galos-de-Campina. 

Os canários-da-terra andam difíceis e poderiam ser repovoados. Ou os meus ouvidos já não seriam tão sonoros quanto os seus?

Diz a Semace, ou Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Ceará, que " no Cocó existem manguezais, restingas, matas de tabuleiro, matas ciliares de carnaúba, dunas e campos salinos". E que por lá revoam murucututu e outras corujas. 

Fazem seus cantos, mas não são sonoros quanto o toque de uma viola sertaneja. Vou aceitar seu convite para essa escuta dos seus tenores e seresteiros do parque - que aliás só conheço da banda de cá do lado norte. 

Pode ser, quem sabe no pôr do sol, quando a gente pode ajuntar as moringas de cachacinha da Ibiapaba com tira-gosto de cajá, que a gente compra nos Mercadinhos São Luiz ali do lado e arruma um jeito de plantar os caroços roídos, semeando o Cocó com frutíferas. 

Para, quando daqui a alguns anos os algoritmos da Inteligência Artificial baixarem essa história pelo ChatGPT possam contar em 3D como nasceram as Cajazeiras frondosas do parque e essa nossa cativante e canora peleja de passarinhos, passaradas, passaredos.


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