Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações
Pai, bom dia. Desculpa a demora pra responder, fui terrível. Esses dias me enrolei demais, foram muitas emoções (e a vovó se indo, foi). Mas saiba que gostei demais de escutar sua mensagem me celebrando, realmente! Não passou batido de forma alguma.
E eu tenho muito orgulho de ser seu filho também! As pessoas ao meu redor, que me acompanham no dia a dia, sabem disso.
Tirando algo sobre as orelhas, gosto quando alguém que nos conhece e fala sobre alguma semelhança entre nós. Mesmo nas coisas supostamente ou parcialmente ruins.
"A cabeça gosta quando fazemos isso sem cair em qualquer pieguice narcisista"
Pelo menos aos olhos da normatividade plena. As inquietações, interesses, certas formas de ver as coisas, algumas adquiridas pela fala e formação (mesmo as que não aconteceram de forma intencional). Outras quase inerentes, que a memória do corpo e da vida devem explicar.
Coisas que também vejo em Pedro e Sarah, em diferentes medidas e proporções, mas sempre presentes. É necessário estar atento para as coisas boas e importantes sobre nós, reconhecer as nossas forças.
A cabeça gosta quando fazemos isso sem cair em qualquer pieguice narcisista, que é muito diferente de nos reconhecermos e tratar bem a gente.
"Antes mesmo de pensar nestes termos, sempre tive orgulho! Há em nós algo que precisa ser cultivado"
Nesse aniversário pensei nisso como um ponto a levar pro ano. Mas só me parece ser possível fazer isso se reconhecemos as pessoas além de nós, e ninguém como nossos próprios pais.
Antes mesmo de pensar nestes termos, sempre tive orgulho! Há em nós algo que precisa ser cultivado. Das nossas forças não podemos abrir mão. Reconheço parte delas em você e mamãe, e o resto é invenção e reorganização do que me deram.
Pois olhe, Saulo, por coincidência estava conversado com seu avô Haroldo - que você pouco convive, por escolhas dele. Narcisista ele? Talvez. Temos também em alguma porção de enfeitiço, mas já não faz muita diferença para mim aos 58 anos.
"Dos judeus marranos e, hoje, nenhum apreço pela cripto vida deles quando foram desterrados para o novo mundo"
Dos judeus marranos e, hoje, nenhum apreço pela cripto vida deles quando foram desterrados para o novo mundo, para Camocim, Aratuba e Maranguape. Não dá para perdoá-los mais por causa de Gaza.
Provável temos, também, sangue deles. Mas tenho a impressão de que não exterminaríamos, não dizimaríamos palestinos. E o mundo somente assiste! Nós mesmos, o papa e o dom Gregório Paixão. O papa poderia entrar numa greve imperfeita de fome. Eu acompanharia. O mundo todo poderia fazer.
"Esses diálogos podem ser cicatrizantes. Entrar numa cacimba é cavar e cavar para beber o que for"
Sim, o que temos um no outro? Muitas coisas, nada e descobertas. Falta saber dos negros que nos atravessaram, e não é reivindicação de cor. É saber o que fomos nas senzalas ou quem matamos. Para constelar.
Esses diálogos podem ser cicatrizantes. Entrar numa cacimba é cavar e cavar para beber o que for. Da água com silicose ou acalmada depois quando se senta.
Acho que me passei na escrita. Talvez porque tenha lido uma carta de Manuel Bandeira para Guimarães Rosa. Sobre o que ele achou de Grande Sertão: Veredas. Uma sonda escavadeira do que há em nós. Segue já já o diálogo impagável dos dois. Eu tenho inveja deles...
"o holocausto foi a primeira vez que se escancarou a barbárie organizada e sistematizada para além dos não-brancos pelo globo"
É triste! Admiro essa revolta, pai. É "justa e necessária" como diria a liturgia bíblica. Lembrei de Fanon que escreveu que o holocausto só incomodou tanto o ocidente porque seria até um orgulho e acabou direcionado para a pele branca.
Porém, nada mais era do que o máximo de refinamento do modo de operar experimetado na colonização europeia. Tudo já havia sido testado e amplamente reproduzido nas guerras das "descobertas" saídas da Europa, mas o holocausto foi a primeira vez que se escancarou a barbárie organizada e sistematizada para além dos não-brancos pelo globo.
Mas penso também que essa barbárie não representa um povo inteiro, talvez eu esteja errado. Mas o "porco de guerra" do Bibi não representa todos os judeus. Vive em prol de uma ideologia atrelada ao interesse econômico colonial. Pensando com Fanon, no final é a mesma coisa que fizeram com os indígenas do Brasil e da América do Norte.
"Todo mundo pode vir a ser a Palestina nas mãos de quem quer e pode tomar o que quiser"
E no final é um teste de ampliar os negócios. Todo mundo pode vir a ser a Palestina nas mãos de quem quer e pode tomar o que quiser.
Mas lembro dos judeus jovens que estão se rebelando contra o alistamento militar, os ortodoxos que são contra o sionismo.
"Como soscreveu Manuel Bandeira ao Guimarães Rosa, em 1957, "o diabo (e Deus) não há! Existe é o homem humano""
Lembro de vovó, que era descendente direta de portugueses. Porque no final o que existem são pessoas. Mas claro, não dá pra não dizer que não existem os efeitos da cultura, e que isso nos molda! Não sei!
Mas tendo a querer acreditar que podemos nos desprender dessa bosta de nação, e olhar o que existe em nós que é imposição desse modelo, pai.
Nem sei mais o que é "nação", "patriota", "cidadão de bem". Talvez, Saulo, seja quem tem privilégio ou se ilude e acha que pode passar a ser um privilegiado. Defende a matança, o golpe, que por nascença é indelicada para as existências.
Política, cotidiano, questões sociais e boemia. Estes e mais temas narrados em crônicas. Acesse minha página
e clique no sino para receber notificações.
Esse conteúdo é de acesso exclusivo aos assinantes do OP+
Filmes, documentários, clube de descontos, reportagens, colunistas, jornal e muito mais
Conteúdo exclusivo para assinantes do OPOVO+. Já é assinante?
Entrar.
Estamos disponibilizando gratuitamente um conteúdo de acesso exclusivo de assinantes. Para mais colunas, vídeos e reportagens especiais como essas assine OPOVO +.