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O riacho como vizinho, mas ele perdeu
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Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações

O riacho como vizinho, mas ele perdeu

O riacho, sem nome, agora é um sem-floresta. E, obrigatoriamente, tem de ser cuidado do tamanho do impacto que sofreu
Tipo Crônica
2906demitri.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2906demitri.jpg

A gente é besta, mas quase nem tudo. Ou não o tanto quanto os babaquaras acham que fomos alheados. "Abestado" talvez seja mesmo um debique, uma mangação, do elucidário da alma debochadora dos corriqueiros no Ceará.

Pois bem, estou rodando para ver se o incômodo entra em ordenação na mente inquieta. Mente. Mas vamos lá. No último fim de semana, não sei por que metafísica, resolvi percorrer um trecho da "inocente" CE-010. De Fortaleza para o Eusébio. Estava atrás de passarinhos.

A CE-010 é aquela que passou a desmanchar a duna mãe do Parque Municipal da Sabiaguaba. É um engodo, mas já escrevi sobre tal por aqui. A rodovia é estadual, administrada pelo governo do Ceará, mas rasga uma Unidade de Conservação de Proteção Integral da Prefeitura de Fortaleza.

 

"Na marra e com o aval do judiciário cearense, fizeram a rodovia "
 

 

Na época, quando foi construída debaixo de protestos de ambientalistas, o então governador Cid Gomes (PDT) e o prefeito Roberto Cláudio (PDT) justificaram que o Ceará precisava escoar caminhões de carga do Porto do Mucuripe ao terminal do Pecém.

Com o aval do judiciário cearense, fizeram a rodovia e, desde então, tentam desqualificar a existência da duna. Num tempo colocaram palhas de coqueiro para sufocar as dinâmicas dos grãos (atlânticos) de areia e compactá-los. Hoje, retiram e descartam a areia que foi invadida pela pista.

O tráfego de caminhões Mucuripe-Pecém e Pecém-Mucuripe até existe, mas não justifica o "imprescindível de uma CE-010" e produzir efeitos colaterais para a galáxia dunar dali. É outro planeta aquele mundo de areia e seus habitats.

Mas vi, quando fui pela CE-010 no rumo do viaduto da Maestro Lisboa, no sentido Pecém, qual seria a serventia real da rodovia.

 

"São três construções pesadas e, lógico, muito "desmatamento legal" e os puxadinhos das compensações ambientais"
 

 

Aquela zona bonita, rasgada pela rodovia nova, virou um "achado" para investidores pesados. Empreendimentos que não apostam baixo. Citarei três no próximo parágrafo, mas há também projetos de shoppings, mais postos de gasolina e explodiu a oferta de terrenos no meio de uma mata.

É exuberante o trecho, o verde. A mata nativa misturada com a interferência humana, mas ainda portentosa. Pois lá, para as incorporadoras BSPAR e Montenegro, virou joia para a construção de "condomínios fechados de alto padrão".

São três construções pesadas e, lógico, muito "desmatamento legal" e os puxadinhos das compensações ambientais para mitigar os danos incalculáveis contra a fauna e a flora. A Montenegro tem o Campo Alto Eusébio e a BSPAR, o BS Grand Parc Eusébio e o BS Botanic.

 

"E por que, eu moraria? No meio dos 22 hectares que alteraram radical (e legalmente) a floresta, há um riacho abundoso"

 

Visitei os três para conferir. Fiz os cálculos, mas não tenho cartas para jogar. Um deles, particularmente, eu habitaria apesar do lucro exagerado e a morte da alma de uma mata extraordinária. O BS Botanic.

E por que, eu moraria? No meio dos 22 hectares que alteraram radical (e legalmente) a floresta, há um riacho abundoso. Não sei o nome dele ainda, mas é uma veia do Pacoti e segue rumo ao rio Cocó e ao Atlântico. Habitaria ali para ser vizinho e cuidar dele. Deve ter mais de 500 anos.

Por causa da existência natural do riacho, ali é uma Área de Preservação Permanente (APP). Imexível, mas nem tanto. Seu derredor foi impactado e, por exemplo, a retirada das árvores consolidadas e de suas raízes já produzem assoreamento por causa do carreamento de areia, agora "solta".

 

"Não há no projeto de negócio um plano ambiental para o riacho"

 

Mas há limites legais "intocáveis" que o Ministério Público precisa fiscalizar para a redução de danos. A BSPAR, provavelmente, está seguindo as regras. Não seria idiota de não as cumprir.

Mas não teve a sensibilidade nem de biografar o riacho. De achar seu nome e registro, sua história e imprescindibilidade para a Terra. De dizer que será hipercuidado e abraçado durante a construção do condomínio e, principalmente, depois.

Não há no projeto de negócio um plano ambiental para o riacho, a fauna e a flora ciliar. Há exigências legais. Os construtores são analfabetos ambientais funcionais. Não há plano de manejo nem uma cláusula no contrato responsabilizando, pelo resto da vida, a construtora e os condôminos a cuidarem da perenidade do riacho.

 

"No máximo, há um "marketing verde" camuflado de uma retórica sobre a "sustentabilidade""

 

É um privilégio viver perto do riacho. Privilégio mesmo. O problema é que não há delicadezas ambientais com o veio d'agua. Apenas se cumprem as formalidades legais para construção de um condomínio onde existia uma floresta. Louvável o transplante de dezenas de árvores, mas há um passivo ambiental desmedido.

No máximo, há um "marketing verde" camuflado de uma retórica sobre a "sustentabilidade". O riacho, sem nome, agora é um sem-floresta. E, obrigatoriamente, tem de ser cuidado do tamanho do impacto que sofreu.

É o que resta, além do privilégio de se ter um riacho como vizinho.

 

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