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"Fichas-sujas" são favorecidos com decisão do TSE
Reportagem

"Fichas-sujas" são favorecidos com decisão do TSE

Entendimento do TSE liberou candidatos que estariam inelegíveis caso a eleição não tivesse sido adiada por conta do novo coronavírus. Impacto da medida no País ainda é incerto
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Fachada do TSE. Brasília-DF, 29/09/2014 (Foto: Divulgação TSE)
Foto: Divulgação TSE Fachada do TSE. Brasília-DF, 29/09/2014

Dez anos após ser aprovada no Congresso, a Lei da Ficha Limpa sofrerá neste ano um de seus maiores baques na Justiça. Em entendimento que rachou o pleno por quatro votos a três, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu que candidatos que estariam inelegíveis caso a eleição deste ano não tivesse sido adiada poderão disputar na nova data do pleito, de 15 de novembro.

Em suma, a Corte decidiu que causas de inelegibilidade que acabariam em 7 de outubro, oito anos após a eleição de 2012, não poderiam ser prorrogadas para 15 de novembro. Como a eleição deste ano ocorreria originalmente em 4 de outubro, a decisão de adiar a disputa por conta do novo coronavírus acabará "presenteando" políticos condenados na Justiça.

A medida beneficia principalmente agentes condenados por abuso de poder político e econômico durante a eleição de 2012. Isso porque, em decisão de junho de 2014, o TSE decidiu que, para estes crimes em específico, o início da contagem da inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa deve ser a data do pleito - no caso, 7 de outubro.

Como a legislação prevê ainda uma série de outros prazos de inelegibilidade para tipos diferentes de irregularidades, não se pode ainda precisar ao certo o número de políticos beneficiados pela medida. Neste sentido, os Tribunais de Contas terão até 26 de setembro para apresentarem à Justiça Eleitoral relações de ministros com contas irregulares nas Cortes.

Fachada do TSE. Brasília-DF, 01/08/2016 Foto: Roberto Jayme/Ascom/TSE
Foto: Divulgação TSE
Fachada do TSE. Brasília-DF, 01/08/2016 Foto: Roberto Jayme/Ascom/TSE

Inicialmente, discussão no TSE começou favorável à extensão do prazo, com voto do relator Edson Fachin. O ministro Alexandre de Moraes, no entanto, apresentou voto divergente que foi acompanhado pelos ministros Luís Roberto Barroso, Mauro Campbell Marques, Tarcísio Vieira de Carvalho Neto e Sérgio Banhos.

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Um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, o ex-juiz Márlon Reis afirma que a decisão do TSE foi "infeliz" e diminuiu o princípio da moralidade previsto na Constituição Federal como um dos norteadores da administração pública. "Ao mudar a legislação para evitar os efeitos da pandemia, o Congresso não queria beneficiar condenados. Era uma questão de saúde", diz.

Autor de consulta ao TSE sobre a questão, o deputado Célio Studart (PV-CE) classificou a medida ainda como um "prêmio" para políticos condenados por corrupção. "Foi uma surpresa, que recebi com muita frustração e decepção, porque quem perde é o povo. A Lei da Ficha Limpa é o maior instrumento que a gente tem para filtrar os candidatos, e vem agora sofrer um baque desses".

Por outro lado, a jurista Raquel Machado, professora da Universidade Federal do Ceará e especialista em Direito Eleitoral, destaca que o TSE apenas aplicou a legislação vigente. "Nós temos que olhar os direitos políticos considerando que eles são direitos fundamentais. As pessoas têm direito de participar da política e só excepcionalmente devem ser afastadas", diz.

Ela destaca que, nesse sentido, a tendência da sociedade em olhar políticos com maus olhos não pode significar aplicação de punições excessivas. "A questão é que existe um prazo de inelegibilidade e esse prazo foi corrido (...) querer que elas continuassem na condição de inelegíveis ainda assim seria querer que elas se sujeitassem a uma sanção ou imposição de restrição de direitos mais longa até do que a prevista em lei".

No voto que abriu divergência no TSE, o ministro Alexandre de Moraes destacou a questão: "Sorte é sorte. No caso aqui, de alguns possíveis candidatos que seriam inelegíveis, não dependeu deles a ocorrência da alteração da data da eleição", afirma.

Para Célio Studart, no entanto, o argumento é "bizarro". "É um descalabro, porque, quando se discutiu mudar a data das eleições, houve um amplo debate com o próprio TSE, que não levantou nenhuma questão acerca dos efeitos disso nas inelegibilidades. TSE pode legislar, porque suas decisões têm valor legal, mas não o fez", diz.

 

Márlon Reis, idealizador da Lei da Ficha Limpa
Márlon Reis, idealizador da Lei da Ficha Limpa

Bate-pronto: Márlon Reis

Idealizador do projeto de iniciativa popular da Lei da Ficha Limpa, o ex-juiz Márlon Reis classificou como "infeliz" a decisão do Tribunal Superior Eleitoral limitando a aplicação da legislação na disputa deste ano.

O POVO: Como você avalia o entendimento do TSE nesse caso?

Márlon Reis: Foi uma decisão infeliz. Essas pessoas foram condenadas e vão se beneficiar de uma pandemia, de uma moléstia global, para se tornarem elegíveis. O Ministério Público Eleitoral concordou conosco na sessão e foi até além, mas infelizmente esse entendimento não prosperou.

OP: A maioria argumenta que o prazo de 7 de outubro já estava previsto na própria lei.

Márlon: Lei é lei, mas Constituição é Constituição, e é muito mais. Existe na nossa Constituição um princípio da moralidade, está lá uma determinação para que os agentes públicos observem isso, além de outros princípios. Uma decisão dessas erra ao não dar efetividade a esse princípio, principalmente porque, quando mudaram a data, os efeitos pretendidos eram outros. Ninguém mudou a data para beneficiar de carona pessoas que cometeram ilícitos. Isso não estava previsto na emenda constitucional.

OP: Qual o impacto que isso terá na Lei da Ficha Limpa?

Márlon: Não temos capacidade de quantificar ainda, mas é incalculável, são inúmeras hipóteses, todos condenados por questões graves como abuso de poder econômico, gente que desviou o aparato estatal se beneficiar em campanha. Isso tudo se partindo de uma mudança que era para beneficiar a saúde da população e nada mais, não liberando condenados.

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