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Em meio a novos desafios, manutenção de conquistas do segmento cineclubista é foco do Ciclo-CE
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Em meio a novos desafios, manutenção de conquistas do segmento cineclubista é foco do Ciclo-CE

Da articulação em busca de apoio via Lei Aldir Blanc às demandas e projetos futuros, Ciclo-CE aposta na manutenção e alargamento da rede
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Registro da exibição do filme 'O Fim do Esquecimento', em dezembro de 2015, no Mausoléu Castello Branco, atividade promovida pelo Cine Molotov (Foto: Cine Molotov / acervo)
Foto: Cine Molotov / acervo Registro da exibição do filme 'O Fim do Esquecimento', em dezembro de 2015, no Mausoléu Castello Branco, atividade promovida pelo Cine Molotov

Seja por velhos ou novos desafios, a manutenção das conquistas do segmento cineclubista é um ponto central para membros da rede Cineclubes Organizados do Ceará (Ciclo-CE). "Tivemos períodos de hiato, muitos pela precarização de políticas de fomento com a crise que se estabeleceu no País, mas, na linha da insurgência, continuamos mobilizados para garantir a permanência das conquistas que tivemos junto ao poder público local", aponta a pesquisadora e ativista cineclubista Carolinne Vieira.

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O Ciclo-CE conta com assento representativo na Câmara Setorial do Audiovisual (CSA), um importante órgão do ecossistema do setor no Ceará, e participa de debates e discussões referentes a políticas públicas do Estado. "O que mantém e o que alarga o Ciclo-CE é a necessidade das trocas de saberes, do apoio mútuo. E, é claro, organizados existimos e podemos reivindicar o acesso aos recursos públicos", define Karla Gomes, professora do IFCE Crateús que integra o Cine Terça Diversa, projeto de extensão ligado à instituição.

"Ter sido somente em 2010 que a modalidade 'cineclubes' entrou no edital Cinema e Vídeo mostra o quanto era um segmento marginalizado", aponta Alex Fedox. "Acredito que não sairá (do edital), mas mesmo com toda a capilaridade que conseguimos durante os anos, se na próxima reunião de edital não estivermos presentes, é capaz de nem incluírem a modalidade ou destinarem parte ínfima dos recursos", critica.

O Cine Terça Diversa é um projeto de extensão do IFCE Cratéus. A professora Karla Gomes é uma das articuladoras do cineclube
Foto: Cine Terça Diversa / acervo
O Cine Terça Diversa é um projeto de extensão do IFCE Cratéus. A professora Karla Gomes é uma das articuladoras do cineclube

"Ainda hoje nos mobilizamos para ocupar reuniões que discutam políticas de fomento em audiovisual no Ceará, no esforço de não encerrar essa pauta no edital de Cinema e Vídeo", ecoa Carolinne. "Sempre foi um exercício de difícil diálogo, já que parte da cadeia produtiva do audiovisual cearense ignora a potência do parque exibidor cineclubista, que também mobiliza economia nas comunidades", avança a pesquisadora.

Depois da mobilização em 2019 por mais recursos no edital estadual, o movimento cineclubista teve que se articular novamente na luta por espaço em 2020, porém no ainda mais delicado contexto da pandemia. O foco foi tentar garantir apoio ao segmento junto à Lei Aldir Blanc, voltada para auxílio e estímulo ao setor cultural. Para demandar a inserção do segmento nos editais da lei, o Ciclo-CE, então, promoveu o movimento virtual #CineclubesExistem.

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A articulação, felizmente, teve êxito. "No Edital de Fomento ao Audiovisual conquistamos a possibilidade de adquirir equipamentos, pauta antiga do nosso movimento", exemplifica Carolinne. "(O apoio) injetou recursos nos cineclubes cearenses e estamos acompanhando os resultados agora em fevereiro e março de 2021. Deu fôlego para muitos coletivos cineclubistas", celebra Virgínia Pinho - do Cine Colônia, ação do Instituto Antônio Justa, realizado em Maracanaú -, "mas também impôs um ritmo super acelerado a todos que acessaram esse recurso", lembra, referindo-se às dificuldades de prazos e burocracias da lei. Uma ação de apoio mútuo para viabilização de projetos aprovados também foi realizada.

 
 
 
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Além de movimentações e demandas referentes aos editais, o segmento de cineclubes tem outros pontos de atenção. Alex destaca uma série de leis por vezes desconhecidas ou ignoradas cujo cumprimento pode fortalecer a prática cineclubista, como a lei 13.006/2014, sancionada pela presidente Dilma Rousseff (PT), que tornou obrigatória a presença nas escolas de no mínimo duas horas mensais de cinema brasileiro.

Já Carolinne ressalta a importância da construção de mecanismos de "aquisição e distribuição de filmes cearenses para a cadeia cineclubista", além de apontar o projeto da Ceará Filmes como um potencial "centro difusor" da produção do Estado e o novo Museu da Imagem e do Som como um "centro de excelência e referência" de memória audiovisual, podendo abrigar ações de conservação e distribuição.

Uma das frentes mais importantes, porém, como coloca Karla, segue sendo a de fazer "os cineclubes serem vistos e reconhecidos como atividade imprescindível para o setor do audiovisual, da arte e da cultura", defende. "Continuamos firmes no debate, fazendo-nos presente com o poder público da melhor forma que podemos, ocupando reuniões e fóruns", reforça Carolinne. "Mas a luta é ainda para que o poder público, principal investidor do cinema nacional, entenda que os cineclubes são parte fundamental dessa chamada 'cadeia audiovisual'", complementa Virgínia.

Atividade realizada pelo Cine Colônia, em Maracanaú, no ano de 2018
Atividade realizada pelo Cine Colônia, em Maracanaú, no ano de 2018

O que pode um cineclube?

Atividade realizada pelo Cine Colônia, em Maracanaú, no ano de 2018
Foto: Cine Colônia / acervo
Atividade realizada pelo Cine Colônia, em Maracanaú, no ano de 2018

Formar público, estimular o acesso democrático, estabelecer coletividades, educar, revolucionar. A ação cineclubista vai muito além do simples encontro para ver um filme. Alex Fedox, Carolinne Vieira, Karla Gomes e Virgínia Pinho atestam, nas falas, o poder da prática cineclubista em diferentes níveis.

O caráter coletivo da experiência, que se diferencia daquele experimentado em uma sala comercial, é destacado por Alex. "O público organizado costuma andar por caminhos contrários do mercado. Pessoas que vão aos cineclubes têm uma procura a mais pela pluralidade inesgotável do processo de formação que ocorre numa sessão. O que se pode construir de forma coletiva é imensurável em números", aponta.

"Os cineclubes são locais de encontros de interesses e identidades, de experiências diversas - coletivas e revolucionárias - com as imagens. São um caminho para democratização e acesso audiovisual", dialoga Virgínia.

A ideia de "revolução" se faz presente, também, na fala de Carolinne. "Sempre compreendi os cineclubes como pequenas células revolucionárias de formação continuada do público. São o nascedouro de um público necessário e insurgente que ressignifica a fruição cultural onde salas comerciais nunca chegaram e talvez nunca cheguem", ressalta, citando experiências cineclubistas no distrito de Salgado dos Mendes, em Forquilha, e na Aldeia dos Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz.

A partir da união das experiências de acesso, reconhecimento e revolução, culmina-se na construção de conhecimento. "O cineclube, para mim, tem papel duplo: ser espaço de fruição e de educação", aponta Karla. "Os cineclubes são pouco valorizados enquanto exibidores e formadores de olhar. Aqui no interior, por exemplo, não existe cinema, apenas as TVs abertas e, para quem pode pagar, canais fechados e streamings", divide a experiência vivida em Crateús.

"Quando a gente leva a telona aos rincões dos sertões ou 'tira' o aluno da sala de aula para ver filme no cineclube, estamos fazendo um serviço à humanidade e dando às pessoas acesso a direitos básicos: à arte, ao lazer, a ser parte-partícipe", define Karla.

O papel dos cineclubes, segundo cineclubistas

Às fontes entrevistadas para este material, dentre outras, foi feita uma pergunta em comum acerca de uma definição possível do papel e da importância dos cineclubes para o ecossistema audiovisual. Alex Fedox (Cine Molotov - Fortaleza/CE), Carolinne Vieira (pesquisadora e ativista cineclubista), Karla Gomes (Cine Terça Diversa - Crateús/CE) e Virgínia Pinho (Cine Colônia - Maracanaú/CE) dividiram respostas que, além de darem conta de potenciais da ação cineclubista, apontam caminhos importantes de ação do setor audiovisual. Por isso, seguem compartilhadas na íntegra abaixo.

O POVO - Os cineclubes são elementos importantes de ajuda para um ponto delicado da cadeia cinematográfica: a exibição, por ser um espaço de formação do público, difusão, reflexão. De que forma você definiria o papel de um cineclube e qual a importância dessa ação para o ecossistema audiovisual?

Alex Fedox - É provável que o cineclube tenha sido o primeiro espaço de estudo do cinema. A indústria cinematográfica, na verdade, não inclui em nada os cineclubes, já que os filmes não são feitos para serem exibidos nessas janelas. O público organizado costuma andar por caminhos contrários do mercado. Geralmente as pessoas que vão aos cineclubes têm uma procura a mais se comparadas àquelas que frequentam as salas de shopping center. Esse a mais, que não se repete, é a pluralidade inesgotável do processo de formação que ocorre numa sessão cineclubista.

A importância dos cineclubes transcendem a experiência do cinema, o que se pode construir de forma coletiva a partir do gatilho de um filme é imensurável em números, dólares ou prêmios. Seu caráter simbólico envolve outras formas de consumo. Se analisarmos o que existe de publicações, investimentos ou estatísticas estatais a respeito do cineclubismo no mundo, não condiz com sua relevância histórica e social.

Como você bem disse, a exibição é um ponto delicado na cadeia do audiovisual. Todos sabem que muito dinheiro, tempo e tecnologia são gastos até o corte final de um filme e que muitas pessoas sobrevivem dele, mas quando ele chega na tela todo esse capital investido se dissolve numa experiência particular que é intermediada pelo ingresso - ou seja, existe uma hierarquia de classes, de quem primeiro terá acesso a essa experiência. Via de regra os cineclubes são os últimos nessa fila, principalmente pelo fato de não termos um modelo de produção e fruição de filmes que contemple os cineclubes como primeira janela, como cadeia produtiva diferenciada e economicamente viável, sem necessariamente precisar substituir o modelo tradicional.

Para isso é preciso avançar no pensamento sobre o fazer cineclubismo para além dos editais, procurar resgatar alguns processos associativos que incorporem as tecnologias e os dispositivos atuais, uma espécie de quinto poder, que supere as amarras institucionais comodistas já gastas, mantendo a organização necessária, onde o público volte a ser protagonista, participativo e solidário ao coletivo.

Carolinne Vieira - Sempre compreendi os cineclubes como pequenas células revolucionárias de formação continuada do público. Um lugar onde seja possível a identificação, construção e aprimoramento da identidade de uma comunidade que luta e resiste para não ser aniquilada diante a tantas forças de opressão e desigualdade. Entendo que no campo do cinema é o cineclube que revela nas pessoas habilidades e expressões em cena cultural jamais pensadas. É no fazer cineclubista que se revelam novos realizadores, professores, sociólogos, curadores, artistas diversos. Em Salgado dos Mendes, distrito de Forquilha, é possível ver uma cena cineclubista combinada à realização de produções locais jamais patrocinadas pelo Estado. Na Aldeia dos Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz, é no movimento cineclubista que se renova a ideia de multiplicação de realizações indígenas, em contato com outras etnias, a vontade de gerar permanência e fortalecer a memória de luta daquele povo.

É no cineclubismo que se torna possível o alcance a filmes invisibilizados pela blindagem das paredes de alguns festivais que exigem ineditismo de obras aos realizadores… É nos cineclubes que se torna possível uma conversa dilatada sobre forma e conteúdo de expressões audiovisuais em uma comunidade localizada distante dos eixos formativos tradicionais e ensino… É, então, nos cineclubes que notamos a prática de um verdadeiro ecossistema de audiovisual, onde se torna possível a realização de obras que refletem de forma mais aproximativa certos retratos de cada comunidade. É também o nascedouro de um público necessário e insurgente que ressignifica fruição cultural onde as salas comerciais nunca chegaram e talvez nunca cheguem, num país cada vez assombrado pelo ressurgimento de um país que caminha para a democratização do horror ao flertar com o militarismo e com recrudescimento de um Brasil que se enoja do próprio Brasil. Que se enoja de toda expressão cultural construída pela grande maioria trabalhadora ao longo de tantos anos de opressão e barbárie.

Karla Gomes - Deixando os conceitos herméticos de lado, o cineclube pra mim tem papel duplo, de ser espaço de fruição e de educação. Os filmes só existem quando assistidos, logo os espaços dos cineclubes são essenciais para que o filme seja visto, se espalhe, depois os cineclubes não estão preocupados com bilheteria, mas sim com formação de plateia, com formação de olhar. Os cineclubes são pouco valorizados enquanto exibidores e formadores de olhar. Nós aqui no interior, por exemplo, não existe cinema, existem apenas as TV’s abertas e pra quem pode pagar os canais fechados e os streamings. As pessoas só gostam daquilo que conhecem, se não têm acesso a filme nacional, se não ver documentário, se não sabe que povos originários produzem, que pessoas negras produzem filmes, logo se interessa, não gosta. Quando a gente leva a telona pros rincões dos sertões ou apaga o poste no meio do bairro ou “tira” o aluno da sala de aula pra ver filme no cineclube, nós estamos fazendo um serviço à humanidade, estamos dando às pessoas acesso a direitos básicos, o direito a arte, ao lazer, a ser parte-partícipe.

Virgínia Pinho - Os cineclubes são locais de encontros de interesses e identidades. Eles são um caminho para democratização e acesso audiovisual. São locais de formação visual, produção de pensamento, educação… São algo necessário numa sociedade que produz, circula e descarta imagens em escala absurda. Os cineclubes são locais de experiências diversas com as imagens, experiências coletivas e revolucionárias. É essencial hoje aprendermos a ler as imagens e os cineclubes têm essa potência.

Do ponto de vista da cadeia econômica devemos considerar que o Estado é o principal investidor do Cinema Nacional. Haja vista os danos que a desestruturação dos sistemas públicos de financiamento causam, estamos vivenciando isso agora. Se o Estado investe nada mais justo que o acesso a esses produtos seja amplo e gratuito.

Cineclubismo no espaço virtual

O cineclubismo, como muitas dimensões das nossas vidas, se adaptou como possível”, aponta Virgínia Pinho, uma das articuladoras do Cine Colônia, de Maracanaú, sobre o momento de impossibilidade de eventos presenciais.

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O cineclube que articula recentemente promoveu a mostra virtual “A Outra Margem, contemplada pela Lei Aldir Blanc no âmbito estadual. Além dela, que teve realização entre os dias 25 e 27 de fevereiro, o cineclube previa a produção de outra mostra, a “Revoada de Pirilampos”, que inicialmente seria presencial, mas acabou suspensa por enquanto.

 
 
 
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A decisão foi tomada, naturalmente, pela dificuldade acentuada do contexto sanitário do Estado. Como lembra Alex Fedox, do Cine Molotov, “os cineclubes são espaços de aglomeração por essência”.

O cineclubista acredita, inclusive, que as práticas remotas permanecerão por algum tempo, ainda que ressalte a “falta” do “contato direto entre o público e o filme”. “Diante dessa tragédia, que só se agrava por mau-caratismo político, vemos as tecnologias se aperfeiçoando e facilitando a realização das sessões mundo afora”, aponta.

 
 
 
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As dificuldades para tanto, porém, não são ignoradas. “Quem tem melhor acesso a internet e equipamentos teve melhores condições para se adaptar, mas boa parte dos cineclubes esbarraram em muitas dificuldades”, afirma Virgínia.

Integrante do Cine Terça Diversa, a professora do IFCE Crateús Karla Gomes conta da decisão do cineclube de não promover atividades virtuais. “Muitos cineclubes escolheram exibir online - o que necessita de equipamentos de excelente qualidade -, outros investiram em ofertar formação. Nós escolhemos não exibir. Entendemos que já havia telas demais, as pessoas estavam sendo solicitadas demais, e nos guardamos”, explica.

“Ainda que tenha sido interessante ampliar o diálogo em lives com pessoas para além do nosso recorte geográfico, não deixamos de também perceber que a realidade do acesso à internet de qualidade, que permite participar e coordenar qualquer tipo de live, é um privilégio de poucos”, corrobora a pesquisadora Carolinne Vieira.

“Muito do nosso público cineclubista hoje se encontra mais vulnerável financeiramente. Os equipamentos de muitos desses públicos ou estão precarizados ou tiveram que ser vendidos como forma de sobrevivência”, adiciona.

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