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"A direita vai chegar forte": Os novos ciclos políticos no Ceará e no Brasil
Reportagem Seriada

"A direita vai chegar forte": Os novos ciclos políticos no Ceará e no Brasil

Eleições Municipais de 2024 mostraram a vitória dos partidos de centro e de direita, apesar de o governo federal estar com o PT. Donald Trump volta à presidência dos EUA. Será o início de um ciclo político mais à direita? Especialistas ajudam a entender o momento atual
Episódio 45

"A direita vai chegar forte": Os novos ciclos políticos no Ceará e no Brasil

Eleições Municipais de 2024 mostraram a vitória dos partidos de centro e de direita, apesar de o governo federal estar com o PT. Donald Trump volta à presidência dos EUA. Será o início de um ciclo político mais à direita? Especialistas ajudam a entender o momento atual
Episódio 45
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Desde o nascimento até a maturidade, cada fase da vida é marcada por adaptações, crescimento e inevitáveis desafios. Assim como em todos os seres vivos, os organismos não são imunes ao desgaste do tempo, o qual expõe vulnerabilidades e evidencia a necessidade de renovação. Esse mesmo processo pode ser aplicado à política, que, ao criar ciclos, vê seus períodos de força, por mais sólidos que sejam em determinado momento, eventualmente desmoronarem e darem lugar a novos grupos e dinâmicas.

Embora atualmente a Presidência da República esteja sob o comando do Partido dos Trabalhadores, com Luiz Inácio Lula da Silva, a esquerda se viu em um papel de coadjuvante nas Eleições Municipais de 2024, tanto no primeiro quanto no segundo turno das grandes, médias e pequenas cidades espalhadas pelo Brasil.

Vale lembrar, ainda assim, que o Ceará continua sendo um forte polo da esquerda brasileira. Mas de modo geral, as Eleições de 2024 revelaram que os partidos de centro e de direita foram os que saíram como grandes vencedores, conquistando o maior número de prefeituras em disputa no Brasil e evidenciando o pensamento do eleitor nesses tempos.

 

Veja o mapa de votação das prefeituras pelo Brasil em 2024

 

Por mais controverso que às vezes possa parecer o espectro ideológico brasileiro, é fato que discursos mais conservadores apresentaram avanços significativos nos ultimos anos, junto com questionamentos sobre o presente e o futuro político do país. Ao mesmo tempo no cenário internacional, a ampla vitória de Donald Trump e sua recondução à Presidência dos Estados Unidos indicam uma tendência de fortalecimento das forças de extrema direita pelo mundo.

Todos esses movimentos, afinal, podem ser interpretados como sinais de que estamos à beira de um novo ciclo político mais inclinado à direita? Há conexões entre eles, ou cada um deve ser analisado isoladamente? Em suma, como entender o momento atual, tanto no Brasil quanto no mundo, e como identificar quando um ciclo político chega ao fim e outro se inicia? 

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Estamos em um novo ciclo político de direita?

Para tentar responder às questões levantadas acima pela reportagem, O POVO+ conversou com especialistas em eleições, teorias políticas e estudos sobre o Estado, com o objetivo de definir o conceito de "ciclo político", compreender suas características e situar o momento atual vivido pela sociedade. Além disso, consultou bibliografias acadêmicas chegando ao entendimento de que ciclo político é um fenômeno no qual gestores públicos utilizam estratégias para se manter no poder ou garantir sua sucessão.

No livro An Economic Theory of Democracy (traduzido como “Uma teoria econômica da democracia”), de 1957, o economista americano Anthony Downs explica que os ciclos políticos são consequência de estratégias adotadas por políticos para maximizar suas chances de vitória. Segundo ele, essa maximização ocorre por meio da indução da população a lembrar dos investimentos realizados durante os períodos eleitorais.

An Economic Theory of Democracy é um tratado de economia escrito por Anthony Downs, publicado em 1957. O livro estabeleceu um modelo com condições precisas sob as quais a teoria econômica poderia ser aplicada à tomada de decisões políticas não relacionadas ao mercado(Foto: Knihobot / Reprodução)
Foto: Knihobot / Reprodução An Economic Theory of Democracy é um tratado de economia escrito por Anthony Downs, publicado em 1957. O livro estabeleceu um modelo com condições precisas sob as quais a teoria econômica poderia ser aplicada à tomada de decisões políticas não relacionadas ao mercado

O autor também observa que, devido à possibilidade de reeleição, gestores públicos costumam adotar medidas que evidenciem sua eficiência na administração. Assim, as despesas feitas em momentos estratégicos, como próximos às eleições, podem aumentar as chances de recondução ao cargo. Em outras palavras, é possível que existam práticas manipulativas no âmbito da administração pública, com o intuito de garantir a permanência no poder.

Conforme aponta a pesquisadora Tânia Marta Maia Fialho, em seu artigo “Ciclos políticos: uma resenha” (1999), esse conceito pode ser caracterizado de várias maneiras na prática. Ela lista os seguintes aspectos: 

Clique e veja as definições de cada aspecto

 

Já a professora de Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor), Mariana Dionísio, aponta que “os ciclos políticos se caracterizam pela alternância na dinâmica política”. “Eles podem ocorrer de forma regular, como em eleições periódicas, ou em momentos de maior crise e reconfiguração do poder, como nos casos mais extremos de impeachment ou golpe”, complementa.

Mariana menciona ainda três fatores objetivos que marcam a mudança de um ciclo político em um contexto democrático: 

Clique e veja as definições de cada aspecto


Deste modo, para Monalisa Torres, professora de Teoria Política da Universidade Estadual do Ceará (Uece), os ciclos políticos são marcados pelo domínio hegemônico de um determinado grupo ou partido por um período de tempo, caracterizado por eleições pouco competitivas e uma imagem de gestão específica. Ela cita o exemplo do ciclo do PMDB (hoje MDB) no Ceará, que se iniciou em 1986 e se estendeu até 2002, tendo como marca a imagem de uma gestão eficiente da máquina pública e das finanças do Estado.

Também professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (PPGPP/Uece), Monalisa destaca ainda o ciclo do grupo Ferreira Gomes, que teve como rastro os avanços na educação e o equilíbrio entre saúde fiscal e investimentos sociais. Ela inclui as gestões de Camilo Santana (PT) nesse ciclo, mas reconhece que ele pode agora buscar o início de seu próprio ciclo, com um projeto político mais autônomo e alinhado com o Partido dos Trabalhadores.

Monalisa Torres, professora de Teoria Política da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (PPGPP/Uece), sendo analista política e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem), na UFC e ao Observatório de Política no Nordeste (Uece)(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Monalisa Torres, professora de Teoria Política da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (PPGPP/Uece), sendo analista política e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem), na UFC e ao Observatório de Política no Nordeste (Uece)

Nas Eleições de 2024, por exemplo, o ex-governador e hoje ministro da Educação viu o PT alcançar um resultado bastante expressivo sob seus direcionamentos no Ceará. Das 184 cidades do Estado, o Partido dos Trabalhadores conseguiu saltar de 18 vitórias em 2020 para 44 neste ano, incluindo na conta a capital Fortaleza – única capital brasileira com vitória do PT. Vale lembrar também que em 2022, o candidato apoiado por Camilo, Elmano de Freitas, foi eleito governador em primeiro turno.

Esses números, portanto, ajudam a credenciar Camilo Santana como provável líder de um novo ciclo que pode se estabelecer em território cearense. Ao mesmo tempo em que essa força é construída, entretanto, ele se ver cercado em um contexto desfavorável, com o crescimento de forças de direita.

Ao aprofundar ainda mais a análise, é possível observar que o campo progressista como um todo (o qual une partidos de esquerda e centro-esquerda) elegeu apenas três prefeitos de capitais neste ano: João Campos (PSB) em Recife; David Almeida (Avante) em Manaus, e Evandro Leitão em Fortaleza. Em 2012, foram 14 prefeitos de capitais; em 2016, oito; e em 2020, seis.

Enquanto isso, o crescimento do campo conservador (direita e centro-direita) e de centro foi progressivo a cada eleição. Os partidos conservadores saíram de 14 prefeitos de capitais em 2012; foram para 12 em 2016 e em 2020; e 13 em 2024. Os partidos unicamente de centro, por sua vez, também cresceram: eram três prefeitos em 2012; seis em 2016; oito em 2020; e dez em 2024.

 

Campos progressistas, conservadores e de centro nas capitais brasileiras

 

Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a professora Mariana Dionísio argumenta que está em curso certa “desidratação de partidos tradicionais”, sobretudo do campo progressista, acompanhada de um sentimento de “decepção com as escolhas de gestão dos partidos de esquerda, o que influencia a resposta nas urnas por parte significativa do eleitorado”.

“Não há nada que consolide mais uma gestão do que o trabalho bem feito. No caso, a percepção de parcela da população é de que a esquerda tem deixado pautas prioritárias por uma agenda mais ideológica”, comenta.

Mariana Dionísio é mestre em Direito Constitucional pela Unifor e doutora em Ciência Política, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)(Foto: Ares Soares / Arquivo pessoal)
Foto: Ares Soares / Arquivo pessoal Mariana Dionísio é mestre em Direito Constitucional pela Unifor e doutora em Ciência Política, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Para a pesquisadora Paula Vieira, do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem) da Universidade Federal do Ceará (UFC), também é evidente um avanço da direita não só no Brasil, como no mundo. Ela aponta a vitória de Donald Trump, eleito pela segunda vez presidente dos Estados Unidos, como exemplo disso. Para ela, o fortalecimento da direita é um fenômeno global, impulsionado por mudanças geracionais, econômicas e de visão de mundo.

A cientista política Paula Vieira é pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem), da Universidade Federal do Ceará (UFC)(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal A cientista política Paula Vieira é pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem), da Universidade Federal do Ceará (UFC)

“A gente pode olhar para Trump, mas também para Javier Milei (na Argentina) e Marine Le Pen (França), como referências do fortalecimento da direita no mundo. No Brasil, estamos exatamente acompanhando esse movimento, por isso as eleições municipais foram reflexo imediato desse cenário”, afirma.

Segundo Paula Vieira, portanto, o centro político no Brasil está se deslocando para a direita há pelo menos dez anos, período em que ocorreram uma série de movimentos importantes na política nacional. Ela aponta que a primeira vez que o resultado das urnas foi questionado de maneira mais dura, em 2014 por Aécio Neves (PSDB); o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016; e a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República, em 2018.

Questionada se o retorno de Lula à Presidência da República não faria com que o rumo do País fosse mais à esquerda, ela diz acreditar que apenas um fator ainda não fez definir o País como em um ciclo totalmente de direita: a falta de constância de líderes conservadores fixos.

“Quem são as lideranças de direita? Já foi João Dória, Sérgio Moro, agora temos Tarcísio de Freitas. Na ala mais radical, temos também os filhos do Bolsonaro, Nikolas Ferreira… Mas só agora que essas lideranças estão se alinhando em torno de um projeto. Ainda é muito cedo para falar o que vai acontecer nas Eleições de 2026. A única coisa que a gente pode falar é que a direita vai chegar forte. Mas se ela vai se fortalecer como início de um novo ciclo de fato, ainda precisamos esperar um pouco mais.”


 

Em contexto desfavorável, Camilo Santana pode iniciar novo ciclo no Ceará

Mesmo em um cenário político desfavorável, as Eleições Municipais de 2024 apresentam um balanço positivo para Camilo Santana. Ex-governador do Ceará e atual ministro da Educação, ele surge como figura central em uma possível renovação do campo progressista cearense. Analista aponta que Santana pode dar início a um novo ciclo, combinando traços da agenda dos Ferreira Gomes com elementos do Partido dos Trabalhadores (PT), e desenhando um projeto político mais autônomo.

Pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Paula Vieira interpreta essa possível transição à luz dos ciclos políticos. Ela menciona a influência de fatores econômicos no desempenho político, argumentando que ciclos de poder no Ceará têm sido moldados por contextos que refletem as prioridades de cada grupo dominante, como também da população.

Após o fim do coronelismo e o ciclo de modernização promovido por Tasso Jereissati, por exemplo, o Ceará viveu quase três décadas sob a influência dos Ferreira Gomes. No entanto, os últimos anos apontam para o enfraquecimento desse grupo. Em meio a esse cenário de transição, Camilo Santana se apresenta como possível líder de uma nova fase.

Segundo a pesquisadora, Camilo mantém traços do ciclo dos Ferreira Gomes, mas, ao mesmo tempo, agrega à sua liderança elementos da agenda do PT, diferenciando-se ao conquistar autonomia e atraindo aliados tradicionais e novos. “Os ciclos mudam quando se modificam as características do projeto político e da forma como se libera”, explica. “Camilo Santana une características da agenda dos Ferreira Gomes com a agenda do Partido dos Trabalhadores, ficando autônomo em relação ao grupo anterior, agrupando forças em torno de si.”

A educação, tema central nas políticas de Camilo Santana, é vista como um dos pilares dessa renovação. Programas como o “Pé de Meia”, voltados para a inclusão social e educacional, exemplificam a integração entre as ações do Governo Federal e o Governo Estadual de Elmano de Freitas, além de inspirarem propostas em nível municipal, como no governo do prefeito eleito de Fortaleza, Evandro Leitão.

Por outro lado, a pesquisadora do Lepem ressalta que a esquerda enfrenta desafios para se reconectar com segmentos da população, especialmente os trabalhadores do setor de serviços, cujas aspirações não se alinham mais plenamente com as políticas de base coletiva. Em contrapartida, lideranças conservadoras têm conseguido dialogar com esses eleitores ao adotar um discurso que valoriza o individualismo, o empreendedorismo e a meritocracia.

Um exemplo dessa narrativa seria o empresário Pablo Marçal, que popularizou em sua campanha para a Prefeitura de São Paulo uma mentalidade de prosperidade e sucesso individual. “Hoje temos pessoas que usaram políticas públicas para acessar o ensino superior, mas que hoje querem outras coisas, querem ganhar dinheiro, querem ser prósperas. Essa ideia de prosperidade, dos investimentos e da forma de obter sucesso vinculado a uma individualidade distancia do que é coletivo. Então os interesses se alteram assim.

 

"E não estamos falando de grandes empresários, mas das pessoas que empreendem em seu cotidiano, em suas comunidades. A direita conseguiu alcançar muito rapidamente a linguagem para falar com essas pessoas, porque era um espaço vazio. Os progressistas não estavam discutindo esses serviços e a direita chegou" Paula Vieira, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia, da UFC.

 

Embora mencione motivos para o crescimento da direita em território nacional, Paula Vieira reconhece que o avançar do conservadorismo é um fenômeno global, complexo e multifacetado, impulsionado por uma série de fatores interligados. Entre os motores dessa ascensão estão a mudança do cenário econômico global, a crescente precarização do trabalho, o aumento da desigualdade social, discursos religiosos e muitos outros.

Para a especialista, portanto, a esquerda precisaria se adaptar a essa nova realidade e desenvolver estratégias de comunicação mais eficientes para contrapor as narrativas da direita, com intuito de se reconectar com a população.

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