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Cortes na ciência: as incertezas na pesquisa paleotológica no Brasil pandêmico
Reportagem Seriada

Cortes na ciência: as incertezas na pesquisa paleotológica no Brasil pandêmico

Paleontólogos comentam as dificuldades de pesquisar durante a pandemia e as incertezas sobre os anos que virão, dado o cenário de cortes na Ciência
Episódio 21

Cortes na ciência: as incertezas na pesquisa paleotológica no Brasil pandêmico

Paleontólogos comentam as dificuldades de pesquisar durante a pandemia e as incertezas sobre os anos que virão, dado o cenário de cortes na Ciência
Episódio 21
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Insetos, plantas, dinossauros e pterossauros. As novidades paleontológicas brasileiras de 2020 e 2021 cativaram o público com novas espécies desvendadas e o enriquecimento da compreensão de como o Brasil e o mundo eram há milhões de anos. No entanto, nem sempre se compreendem as dificuldades de se fazer pesquisa durante uma pandemia e, especialmente, durante o governo Bolsonaro.

Nos últimos dois anos, os paleontólogos brasileiros precisaram suspender os trabalhos de campo, reformular projetos de pesquisa e explorar o universo de fósseis nos acervos de faculdades e museus para manter a produção científica durante o caos pandêmico. Nessa dinâmica, mais de 80 pesquisas do Brasil foram publicadas, de acordo com os indicadores do Scopus, uma base de dados bibliográfica.

“A produção caiu pela metade no mundo”, comenta Renato Ghilardi, presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP). “Já no Brasil não houve diminuição. Em 2019, o Scopus dá conta de 25 publicações. Em 2020, 42. E em 2021, 39 (até o mês de novembro, época da entrevista)”, revê. Várias das descobertas divulgadas nesse período ganharam espaço no O POVO+. Clique nas imagens para acessar as matérias:

 

 

Apesar de os dados indicarem uma média considerável de publicações, vai depender de cada laboratório a percepção de vacas gordas ou magras. Para a paleontóloga Taissa Rodrigues, coordenadora de Paleontologia no Departamento de Ciências Biológicas na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), houve muita variação na produção científica.

“A impressão é que diminuiu. Até hoje (final de 2021), está muito difícil conseguir algumas análises”, lamenta. Segundo ela, os mais afetados são os pesquisadores em início de carreira com projetos de pesquisa em andamento. Afinal, muitos ficam dependentes de resultados de análises geoquímicas, interrompidas durante a crise sanitária, seja pelo isolamento, seja pelos consequentes cortes em pesquisa pelo governo Bolsonaro.

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A opção foi trabalhar com dados já coletados em campo. Na Universidade Regional do Cariri (Urca), por exemplo, o acervo de fósseis é vasto; mas tem limite. “A gente gastou praticamente o que tinha. Para 2022 tem, mas para 2023 está escasso”, prevê o professor Álamo Saraiva, da Urca. Ainda, o paleontólogo descreve os últimos dois anos como “uma desgraça” para os alunos. O curso de Biologia envolve muitas práticas, especialmente nas aulas de campo, e o prejuízo dos períodos afastados foi “irreparável”, na opinião de Álamo.

Em geral, é justamente a falta de atividades de escavação e o acesso restrito a equipamentos para análises mais detalhadas que preocupam os pesquisadores para os anos que se seguem. Em 2022, percebem, há retomada, mas 2023 deve ser o ano que refletirá a escassez da pandemia.

 

 

Futuro de incertezas para o pesquisador científico

Mas o maior problema mesmo são os cortes na Ciência. Verdade seja dita, o Brasil sempre fez muita pesquisa barata com equipamentos mais “simples”, mas de qualidade — fruto da dedicação constante dos cientistas e o alto nível técnico deles. Isso, no entanto, é reflexo de uma área com pouco investimento do País e, mais ainda, uma valorização cada vez menor ao trabalho do pesquisador.

Fato é que ninguém deveria trabalhar (pois fazer ciência é trabalho, em todos os sentidos) sem receber o adequado para tal. Ninguém deveria precisar de um “jeitinho brasileiro” para desenvolver pesquisa. E nenhum dos pesquisadores brasileiros deveriam ver os quase 90% de cortes nas bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Principalmente para os alunos, os cortes na Ciência significam insegurança e falta de perspectiva, já que é menos gente podendo receber o pouco que se oferece para pesquisar, e esse pouco podendo piorar. Para se ter uma ideia, o valor indicado pelo site do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) da bolsa CNPq para mestrado é de R$1.500,00; para o doutorado (incluindo o doutorado sanduíche, ou seja, em outro país), R$2.200,00.

Com tão pouco, toda a comunidade científica se preocupou com quais áreas e quais pesquisadores seriam os mais afetados. A solução que muitos jovens cientistas têm encontrado é sair do Brasil para estudar em outros países, fenômeno chamado de fuga de cérebros. “Mas fora do país não quer dizer que vai ter perspectiva. E mais, a nossa ciência (no Brasil) não vai ser renovada”, preocupa-se Taissa.

 

 

Outra incerteza está na liberação de verbas para novos campos. “A demanda é alta, não sei se todos vão conseguir verba para isso. Você não sabe o que vai acontecer, você não tem segurança”, comenta Renato Ghilardi, presidente da SBP. O dinheiro para trabalhos de escavação envolve, além de equipamentos e locomoção, o pagamento de trabalhos secundários.

Ou seja, a pessoa que mora no local e vai acompanhar os pesquisadores, os trabalhadores que irão abrir buracos e executar outras funções manuais mais pesadas… “Aí no Ceará é pior, porque tem gente que vive disso, de ajudar em campo”, afirma o paleontólogo.

CRATO, CE, BRASIL, 28.07.2019: José Roberto pereira de sousa, funcionario da mina de pedra Cariri que separa fosseis para universidade.  Geositio Pedra Cariri.  (Fotos: Fabio Lima/O POVO)(Foto: Fabio Lima)
Foto: Fabio Lima CRATO, CE, BRASIL, 28.07.2019: José Roberto pereira de sousa, funcionario da mina de pedra Cariri que separa fosseis para universidade. Geositio Pedra Cariri. (Fotos: Fabio Lima/O POVO)

Por outro lado, o professor Álamo Saraiva reconhece que a Urca, por ser uma instituição estadual financiada pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), está com mais perspectivas que as federais. “A Funcap deu o suporte necessário. Até abriu um edital para dez pesquisadores na Urca. Então, acho que houve essa compreensão do governo do Estado”, diz.

Para os próximos três anos, o plano orçamentário do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens (Urca) é investir R$ 11 milhões em bolsas para professores e pesquisadores visitantes, além de destinar 450 mil reais para a aquisição de armários e equipamentos para a melhoria da conservação do acervo.

A informação é do professor Allysson Pinheiro, diretor do museu, para a Rádio CBN Cariri - após publicação de uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo, em 12 de fevereiro, acerca da falta de estrutura do local ser um fator que dificulta a pesquisa de fósseis.

Ao que tange investimentos federais para a Ciência, Álamo diz não ver “nada no horizonte”. “A gente aqui na Bacia do Araripe, no Ceará, a seca vai ser menor. Tá garantido. Mas lá em Maranhão (onde esteve dias antes da entrevista), o pessoal não vai a campo há dois anos”, entristece-se.

 

 

Produção científica resistindo, divulgação coexistindo

Apesar das dificuldades, muitos paleontólogos têm investido tempo e conhecimento para divulgar a ciência pelas redes sociais. Twitter, YouTube, Instagram e TikTok têm comunidades diversas de pesquisadores dedicados em falar sobre Paleontologia, incluindo os aspectos sociais e políticos de se fazer ciência no Brasil.

Foi principalmente no Twitter que o movimento #UbirajaraBelongsToBr, um pedido pela repatriação do fóssil de dinossauro cearense, ganhou força. Nas redes, os cientistas compartilham a experiência de ser de grupos minoritários — como mulheres, negros, indígenas e outros — e fazer pesquisa, ademais de discutir a importância da diversidade na Ciência.

Todos esses movimentos são uma força política pela luta por mais inclusão e investimento para a pesquisa. Não à toa, a paleontóloga Taissa Rodrigues vê um futuro esperançoso: “Eu acho que tem perspectiva, sim. A gente tem que lutar por isso. E a gente tá acordando para essa força política”, assegura.

 

Conheça seis divulgadores científicos da Paleontologia

 

Os museus também têm procurado novas maneiras de divulgar a ciência. O Museu de Paleontologia Irajá Damiani Pinto, do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), conseguiu criar um passeio virtual imersivo após a chegada da pandemia. No site do tour virtual, é possível ver a exposição em 360º e ser guiada por áudios, textos, imagens e vídeos complementares.

Em entrevista para o web stories sobre pareiassauros, o paleontólogo Heitor Francischini, professor na UFRGS, chegou a comentar que a equipe só conseguiu recolher depoimentos da experiência com a plataforma no começo de 2022, mas que o retorno já tem sido muito gratificante.

 

Qual o museu de paleontologia mais próximo de você?

 

 

Um robô paleontólogo em Marte

Você pode se perguntar: com tanta área precisando de recursos, porque investir em Paleontologia? O que ela retribui para a sociedade? Essa é uma pergunta pertinente, e para entender bem a resposta precisamos falar sobre ciência básica e ciência aplicada.

A dita ciência básica ou ciência pura aborda todas as pesquisas que focam em ampliar o conhecimento. Na Paleontologia, por exemplo, entender como os pterossauros voavam ou como os animais foram fossilizados entra nesse conceito.

Já a ciência aplicada envolve as pesquisas científicas focadas em solucionar um problema mais imediato ou, então, desenvolver novas tecnologias.

Mas aí é que está: não existe ciência aplicada sem ciência base. Afinal, desenvolver novas tecnologias e inovar depende estritamente de conhecer como o mundo já funciona. É impossível desenvolver uma vacina eficaz, por exemplo, sem antes compreender como o sistema imunológico atua. E esse entendimento veio muito antes da vacina, por pesquisadores dedicados a acumular informações de qualidade ano após ano.

Aliás, antes de falar da Paleontologia em si, o exemplo dos prêmios Nobéis de Medicina de 2021 é ótimo! Os biólogos moleculares David Julius e Ardem Patapoutian receberam o maior prêmio da área por descobrirem, respectivamente, a proteína responsável pela sensação de ardência e o gene que dá a sensação de toque. Atualmente, essas descobertas são base para estudos sobre o desenvolvimento de fármacos contra a dor e doenças crônicas.

Já a Paleontologia é um “retrato do passado”, como define Renato. Na Terra, tudo funciona em ciclos; até a datação geológica é geralmente definida por eventos que vão se repetindo, como as extinções em massa.

Então tudo que os paleontólogos estudam entra na caixinha de conhecimento sobre como o mundo era no passado, como os organismos dessa época viviam e evoluíram e também como eles foram extintos. Para isso, eles desenvolvem técnicas específicas que são usadas até pelo robô Perseverance - da Nasa, coletando amostras de Marte. “O Perseverance está procurando evidências de vida em termos moleculares. E isso é procurar por evidências de fósseis”, ri Taissa.

O rover Perseverance, da Nasa.(Foto: Nasa/JPL-Caltech)
Foto: Nasa/JPL-Caltech O rover Perseverance, da Nasa.

Se você gosta de Astronomia, aí está a importância da Paleontologia. Caso contrário, a área de pesquisa segue super relevante para o debate mais importante das últimas década: a crise climática e os efeitos de mudanças extremas na sobrevivência dos organismos na Terra.

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