O icônico fóssil do dinossauro cearense Ubirajara jubatus, porta-estandarte da luta pela decolonização científica e do combate ao tráfico de fósseis, será repatriado para o Brasil. A notícia foi oficializada nesta terça-feira, 19 de julho, pelo Ministério da Ciência, Pesquisa e Arte Baden-Württemberg, da Alemanha, onde o material esteve guardado por décadas no Museu Estadual de História Natural Karlsruhe (SMNK).
O anúncio já é um marco histórico, principalmente considerando as fortes palavras da ministra alemã da Ciência, Theresia Bauer: “Quem faz declarações falsas no contexto de uma publicação científica prejudica sua própria reputação e a reputação de sua instituição. Esta é uma das razões pelas quais é necessário corrigir este processo infeliz.”
Ela faz menção às versões desencontradas sobre a aquisição do fóssil cearense concedidas pelos pesquisadores do SMNK, em especial o alemão Eberhard Frey, ex-diretor do museu, agora aposentado. Aos veículos brasileiros e à revista científica Cretaceous Research, na qual foi publicado o estudo descrevendo o Ubirajara, ele e outros paleontólogos apresentaram um documento de 1995 que autoriza o transporte de materiais do Cariri.
No entanto, o documento expedido em 1º de fevereiro de 1995 por um agente do escritório regional do Crato do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) era vago e não confirmava a presença do holótipo do Ubirajara.
"Olá, eu sou a Catalina Leite, repórter do OP+. Você tem acompanhado o caso Ubirajara? Vamos conversar nos comentários!"
Já em 2021, eles deram outra versão sobre a aquisição do material, afirmando que o fóssil foi adquirido por um “comerciante privado de fósseis” ― na Alemanha, a venda de fósseis é legal, diferente do que ocorre no Brasil ― em 2006, e então em 2009 o museu o teria comprado da empresa.
“Baden-Württemberg assumiu uma posição clara sobre questões relacionadas à proveniência dos bens culturais e tem cumprido sistematicamente suas responsabilidades nos últimos anos. Por isso, temos promovido consistentemente o esclarecimento dos eventos que cercam o fóssil de Ubirajara. É importante que com o retorno enviemos um sinal claro sobre o correto manuseio dos itens de coleção, sua procedência e honestidade científica”, reforça a ministra Bauer.
O Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens (MPPCN), representado pelo diretor Allysson Pinheiro, está há mais de um ano discutindo formalmente com a Alemanha os pormenores da repatriação. De acordo com Allysson, houve várias reuniões com o grupo dos museus públicos alemães, com o lado brasileiro apoiado pelo Ministério Público Federal (MPF). “É um assunto delicado. A opção é ir dialogando, construindo e confiando”, define o diretor.
Desde o começo, o museu de Santana do Cariri (CE) se colocou publicamente interessado em receber o fóssil do Ubirajara jubatus, já que o material foi escavado no Cariri. Apesar disso, a nota oficial da Alemanha, lançada nesta terça-feira, indica que o Museu Nacional do Rio de Janeiro foi nomeado pelo Itamaraty como “interlocutor oficialmente legítimo”, colocando o museu carioca como uma possibilidade de acolhimento do fóssil.
Pela lei brasileira, qualquer instituição pública pode admitir os fósseis repatriados. No entanto, a preferência na maioria dos casos tem sido para os museus dos locais de origem dos materiais ― como foi o caso do MPPCN no recebimento da aranha fóssil Cretapalpus vittari e dos ainda por chegar fósseis repatriados da França.
Em nota à imprensa, o Museu Nacional afirmou que "até o momento não houve uma confirmação" sobre o Ubirajara integrar o acervo do museu carioca. A instituição comemora a "enorme vitória da comunidade científica brasileira" e destaca que "qualquer situação que envolva este ou outros materiais será discutida entre os parceiros", como é o caso do Museu Nacional com o de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens.
Ao O POVO, o professor Allysson reforça que nada impede que o Ubirajara seja fixado no museu em Santana do Cariri, conhecida como a capital cearense da paleontologia, já que as instituições são parceiras.
Vários paleontólogos defendem o retorno do “Bira” para o Cariri. A justificativa é que a presença do fóssil na região é motivadora de turismo cultural e científico, garantindo o desenvolvimento sustentável da região.
"Qual sua opinião sobre o assunto? O Ubirajara deveria voltar para o Cariri?"
As minúcias da devolução ainda estão sendo discutidas, afirma o professor Allysson. Existe a possibilidade de a Alemanha arcar com todas as despesas, como foi o caso da devolução da Cretapalpus vittari pela Universidade do Kansas; mas também há a chance de o custeio da viagem ser dividido entre os dois países. “Dinheiro tem. O problema é a burocracia”, diz o diretor.
A repatriação do Ubirajara ainda culminou na decisão de todos os museus alemães envolvidos nas tratativas revisarem seus acervos e devolverem os fósseis brasileiros em condições suspeitas. Ainda que o Ubirajara possivelmente retorne ao Brasil ainda em 2022, os outros fósseis com certeza levarão mais tempo para serem despachados.
Vale destacar que a Alemanha é o principal destino de fósseis traficados do Cariri, quando se analisam os estudos publicados nas últimas três décadas, como destacado na reportagem Quem são e o que pensam os países que mais traficam fósseis do Cariri.
“Parece final de Copa do Mundo, aguardando o desfecho realmente”, comenta Allysson. Apesar do cansaço e da ressalva de que o processo todo só estará realmente finalizado quando o Ubirajara chegar ao Brasil, o diretor do museu caririense já define a conquista como “emblemática”.
Para o curador do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, Renan Bantim, a oficialização é “uma pontinha de esperança”. É claro que o Cariri já venceu diversos outros pedidos de repatriação, mas o Ubirajara é um símbolo e a origem de um movimento que pede pelo retorno de fósseis não só da Alemanha, mas também de países como Japão e Estados Unidos.
Leia mais
“A gente mandou uma mensagem muito poderosa para o mundo”, comemora Aline Ghilardi, paleontóloga que liderou o movimento #UbirajaraBelongsToBR nas redes sociais e professora na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A adesão da sociedade geral no grito pela devolução do dinossauro cearense conseguiu assustar a Alemanha e o museu que retinha o Ubirajara.
Em determinado momento, o SMNK teve a conta no Instagram e de outras redes sociais derrubadas após uma força-tarefa de brasileiros ocuparem os comentários questionando a origem do fóssil. A instituição chegou a apagar diversos comentários e a bloquear contas dos manifestantes, mas não foi suficiente para impedir a ação.
Mais do que a reconquista de um patrimônio, a confirmação de repatriar o Ubirajara é um sinal da força da mobilização social e da insatisfação com uma ciência antiética.
De acordo com Aline, o fato do caso Ubirajara ter surgido durante uma pandemia, quando todos estavam em casa, foi um dos muitos fatores que garantiram essa vitória parcial. Ela também atribui a conquista à comunicação e divulgação assertiva de pesquisadores, que “souberam contar a história, conquistar, sensibilizar e conscientizar o público”, além das várias vitórias pontuais que deram fôlego ao movimento.
Além das “condições eticamente inaceitáveis”, como descreve a ministra alemã Theresia Bauer, a descrição do fóssil do Ubirajara é questionada por diversos paleontólogos. Por isso, o material deve ser reestudado ao chegar ao Brasil, até porque o artigo que primeiro o analisou foi
Renan Bantim explica que existem várias falhas de análise envolvendo aspectos anatômicos e morfológicos, principalmente no que tange às ditas penas do dinossauro. Na época de publicação do estudo, um grupo de pesquisadores redigiu uma carta apontando esses erros, mas que não foi publicada porque a pesquisa foi removida.
O estudo, por exemplo, não compara a espécie com outras do mesmo depósito fossilífero, o que é de praxe em estudos paleontológicos, afirma Aline. Além disso, faltaram análises químicas e a aplicação de paleontologia moderna, como a inspeção do material por meio de tomografias computadorizadas. “Parece um artigo do século passado. Dá a impressão de que foi publicado às pressas”, define a paleontóloga.
Ponto de vista
por Catalina Leite*
Em dezembro de 2020, quando começaram a surgir os primeiros questionamentos sobre a origem do Ubirajara jubatus, enviei um e-mail para o co-autor David Martill solicitando uma entrevista sobre o assunto.
Após pedir para eu tomar cuidado ao falar com ele porque ele “respira fogo e come bebês”, Martill desejou que eu fosse uma “jornalista honesta” que não o mal representasse como em outros jornais brasileiros. Acompanhando as respostas em tom jocoso quanto ao incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, ele finalizou o e-mail: “Desejo sorte nos esforços para repatriar seus fósseis. Feliz Natal também.”
Mais do que uma certa insensibilidade com tragédias que similarmente ocorreram em países europeus (como o incêndio de Notre Dame, em Paris) e a falta de decoro, o posicionamento irônico de Martill é só uma das várias facetas do colonialismo científico. E portanto a notícia de repatriação do Ubirajara é muito mais do que a recuperação de um fóssil: é a palavra final de que o Brasil e qualquer outro país do sul global não aceitará mais uma ciência antiética e colonizadora.
O tráfico de fósseis, na verdade, é só um dos muitos males que contaminam a ferida causada pelo colonialismo. O subdesenvolvimento social, o sucateamento das instituições de pesquisa, a dificuldade no acesso de recursos financeiros e de conhecimento, a desvalorização da pesquisa latino americana… Tudo é sustentado pelo grande peso histórico colonial.
Comemorar a repatriação do Ubirajara vai muito além de um fóssil. É sobre direito, respeito, dignidade e empoderamento. Principalmente para regiões fora do eixo sul-sudeste, como é o caso do Cariri. Nossos olhares precisam se voltar para o potencial de desenvolvimento sustentável que o turismo científico ― e fortemente cultural ― no Cariri tem a oferecer. Não só por pesquisadores, mas também pelos guias turísticos, pelas lojinhas de lembranças, pelas pousadas familiares, pelos restaurantes de comida típica e toda a vida que cerca um museu.
E para garantir esses direitos, é preciso mobilização social e política. Bater o pé e exigir que o patrimônio volte para casa e dê frutos por aqui. Cruzar os braços e garantir com orgulho que há mais do que estrutura adequada para estudar o Ubirajara, para acolhê-lo e para acessá-lo. E mais: que o Cariri é grande suficiente para receber turistas e fazer a viagem valer muito a pena.
Bom. Devemos agradecer as boas intenções de David Martill ao nos desejar sorte na empreitada. Tem dado certo, apesar dos percalços no meio do caminho. Agora é nos prepararmos para o segundo tempo.
"Catalina Leite é repórter e escreve sobre tráfico de fósseis e paleontologia desde 2020 no O POVO e no O POVO+"
Reportagens do O POVO exploram o universo dos fósseis do Brasil e do mundo