A escritora Roseana Murray, de 73 anos, chega ao fim de 2024 atravessada por tragédias particulares. Está com dores físicas e emocionais intensas. Mas, em vez de mergulhar em suas tristezas, se dispôs a reaprender. Está em recomeços. Será o mote do seu 2025.
No dia 5 de abril, perdeu o braço direito, dilacerado por mordidas num ataque de três pitbulls em Saquarema (RJ), perto de sua casa do mar. Ela é destra, era a sua base para o escrever. Foi salva por um maratonista que passava na rua. Ficou num fio de vida. A orelha dela ficou dependurada, foi recolocada. Usado na sua defesa, o braço esquerdo quase foi, precisou ser reconstruído. Seu rosto e perna ganharam cicatrizes grandes. Após 13 dias internada, seguiu.
No dia 22 de novembro, Roseana perdeu Juan Arias, 92 anos, após uma década acometido de problemas renais. Espanhol, jornalista e escritor, foi seu companheiro por 27 anos.
"Depois do que aconteceu comigo, ele foi muito rápido. Ah, sei lá, pesou muito para ele. Ele me viu, chegou do meu lado quando eu estava no chão". Ainda está recente. "O mais difícil é saber que ele não volta". Está nos primeiros dias de sua saudade em sua casa da montanha, em Visconde de Mauá (RJ), região serrana.
Roseana é resiliente, corajosa. Apenas quatro meses depois do episódio dos cães, em agosto lançou dois novos títulos, O Braço Mágico e A Morte sobre o Corpo.
Um é para crianças, sobre uma avó colorida e um braço superpoderoso em uma viagem com seus netos; o outro é um ebook para adultos, de poesias, experiências e pensamentos desde o leito hospitalar ao que está por vir.
Os escritos pós-ataque foram sua terapia. É sua coerência. O que sempre entregou em seus mais de 100 livros publicados não poderia ser diferente do que faz na vida.
Roseana é inspiradora, imensa. Decidiu não lamentar a perda de um braço, quer aprender a viver sem ele. Havia nele uma tatuagem de um ramo de flores, "às vezes acariciava o braço como se fosse um jardim". No início de dezembro, a Justiça determinou que a Prefeitura de Saquarema e o governo fluminense paguem o custo de seu braço biônico, R$ 350 mil.
Não tem ideia de quando voltará aos movimentos mais simples: segurar uma xícara, cozinhar, acenar, abraçar completamente. Passará por testes, moldes, adaptações. Está na expectativa. Já definiu que será um braço azul, como uma nova tatuagem. "Terá nome: Blue".
Roseana será ainda mais colorida, como seus cabelos vermelhos, como as aquarelas de seus livros. Ela sempre recomeça, como uma poeta.
O POVO - É uma pergunta até óbvia, mas queria lhe ouvir: como é que você define o seu 2024?
Roseana Murray - É um ano de muitas tragédias. Eu acabei de perder meu marido, dia 22 último (de novembro), meu companheiro durante 27 anos. Não é nada fácil depois de perder o braço.
OP - Você lidou com essa dor física e está lidando com a dor da saudade. Não sei como você está fazendo distinção disso. O que está sendo mais difícil, a questão física ou a mental nesse momento?
Roseana - A gente sabe que a morte, ela está aí do nosso lado, mas a gente não experimenta a morte. Então, quando o Juan morreu, o mais difícil é saber que ele não volta. Ele não volta quando eu quiser vê-lo.
A gente estava sempre junto ou eu voltava de alguma viagem e ele estava lá. Ele não está mais, ele não existe mais fisicamente. Vira memória ou sabe-se lá o quê. Mas ele, aquele corpo, aquele cheiro, aquela pessoa nunca mais vai voltar.
Essa é que é a grande tragédia da morte. Não é fácil, mas eu tô levando a minha vida, tô arrumando muitas coisas. Tem muita burocracia quando alguém morre. Eu tô lidando com isso.
OP - Você falou que não se experimenta a morte. A morte é um gole só.
Roseana - É, exato. Ele estava muito doente. Então, é alguma coisa que veio vindo, não foi de repente. Ele não teve um infarto fulminante, ele veio vindo com essa perda renal há dez anos, mas ele ficava equilibrado.
De vez em quando dava uma queda nas coisas do laboratório e ele depois se reequilibrava. Mas depois do que aconteceu comigo, ele foi muito rápido. Ah, sei lá, pesou muito para ele. Ele me viu, né? Ele chegou do meu lado quando eu estava no chão.
Foi muito duro para ele e ele decaiu muito rápido. Foi muito rápido. Mas ele era imenso e fez coisas belíssimas e teve uma vida belíssima. Então, não é para chorar, é para celebrar a vida dele.
OP - Você nunca evitou falar do assunto, do seu incidente, acidente, do crime, não sei como é que você nomina. Mas como é que você lida com a sua lembrança daquele momento?
Roseana - Aquele momento passou, eu não me lembro daquele momento. Eu prefiro fazer tudo para me acostumar a viver sem um braço. É difícil, mas é possível. Então assim, aquele momento era aquele momento.
Não guardo rancor dos donos do cachorro. Eles foram displicentes e eu também. Porque eu vi os cachorros soltos, então eu fui desatenta. Eu calculei mal, eu tenho uma parcela aí também. Eu os vi na calçada latindo e pensei "ah, eles não vão me atacar”, mas me atacaram.
Eu não vou ficar relembrando um momento tão doloroso, tão terrível assim, né? Isso não vem espontaneamente, essa lembrança, e mais ou menos está tá bloqueada porque passou. Agora é outra etapa, é outra.
E agora é outra ainda com a partida do Juan. E a gente vai lidando como a gente consegue. Eu não paro o meu trabalho, não paro nada que eu faço.
OP - Vou perguntar uma coisa muito pontual: você chorou para além da dor física? Como é que foi isso? Você lidou com o choro de que forma?
Roseana - Eu não choro, eu choro por dentro. (Pequena pausa) E eu não fiquei lamentando que eu perdi um braço. O meu braço não ia voltar. Eu fiquei aprendendo a não ter um braço. É mais útil do que lamentar a perda do braço.
OP - Saquarema, onde aconteceu o episódio com os cães, foi o refúgio que você buscou desde 2002, quando fez uma cirurgia de coluna. Você pensa em permanecer aí? Você fala que tem o mar e a montanha (da outra casa, em Visconde de Mauá, região serrana do Rio de Janeiro) como suas moradas. Como é que está sendo dividir o espaço de uma tragédia e que era seu ambiente de morada, refúgio?
Roseana - O espaço da tragédia não existe, não existe. Saquarema é belíssima. Por que é que eu vou ficar pensando na tragédia? Saquarema é um absurdo de bela, é um paraíso. É linda, me dá tanto, me deu tanto. Eu vou dividir como eu achar.
Ah, tô com vontade de ir para lá, vou. Tem meu projeto lá. Eu tenho um projeto com crianças de escola pública. Então eu vou. Por enquanto vou manter minha casa, onde eu tenho os meus projetos, meu clube de leitura e receber as crianças.
E também daqui de Visconde de Mauá até lá (Saquarema) é uma viagem e eu vou fazer essa viagem a hora que eu tiver que fazer, que eu tiver vontade. Mas Saquarema não ficou marcada pelo ataque que eu sofri. Saquarema está separada disso.
Ela é de uma beleza que você grita de beleza. Então, por que é que esse ataque ao lado da minha casa iria comprometer Saquarema ou a minha casa? Não tem nenhum motivo.
OP - Você estava em Saquarema até então?
Roseana - Eu custei muito para vir aqui (em Visconde de Mauá), porque eu não podia vir aqui. O hospital onde eu fiquei internada, onde eu fui operada, onde depois eu operei a minha mão novamente, porque fiquei com sequelas, é perto. É uma hora e meia de casa lá de Saquarema e é muito longe da montanha, eu não podia ficar aqui.
Agora que eu posso ficar aqui. Eu moro aqui. Aqui eu tenho a minha casinha há 50 anos e é uma mata maravilhosa. A minha casa é dentro da floresta. Eu não posso viver numa cidade grande. Detesto. Eu tenho que ficar dentro da natureza realmente. E estar aqui ou estar lá são duas sensações incríveis mesmo. Eu sou uma pessoa muito recolhida.
OP - Você já escreveu dois livros que registram o episódio do seu acidente. Um livro de poesias para crianças, “O Braço Mágico”, e um de poesias para adultos, “A Morte sobre o Corpo”. Um é uma história de uma avó com seus netos e o outro é quase um diário sobre a sua experiência com o momento. Os livros foram a sua terapia?
Roseana - Foram, exatamente. É porque escrever é a minha vida. Eu escrevo como eu vivo. Não posso ficar sem escrever.
Então, onde não tinha braço eu fiz um trabalho que acho bem bonito para criança, incluí meus netos. E quis falar daquela experiência terrível de uma outra maneira para gente grande. Então eu fiz um ebook que eu acho que ficou muito contundente, muito bom, e é isso.
Me salvou, sim, claro que me salvou. Os livros, a literatura salva. A arte salva e a minha arte é a literatura.
OP - Em O Braço Mágico, você fala dos superpoderes do seu braço, que vai poder usá-los com seus netos e outras pessoas, fala da avó do cabelo colorido. E em A Morte sobre o Corpo, descreve que não vai mais poder abraçar um buquê, mas vai ter um girassol na sua mão para levar. Você reviu conceitos e convicções? E com a partida do Juan, está tirando ensinamentos?
Roseana - Eu acho que a gente vai vivendo e acumulando experiências que nos fazem mais sábios com as vivências, não é? Eu acho que a vida é o ensinamento maior.
Você lidar com tudo que a vida te oferece de bom ou de terrível, esse é o verdadeiro ensinamento. A vida é o próprio ensinamento. Você vai vivendo e vai se tornando sempre melhor ou pior. A escolha é tua, né?
OP - Saiu a decisão judicial para a Prefeitura de Saquarema e o Governo do Rio custearem sua prótese. Como está isso? Já foram feitos testes, foi tirado algum tipo de molde?
Roseana - Agora que saiu de verdade. Eu fiz muita fisioterapia, fortalecimento, em casa até agora com o coto do braço, o pedaço que sobrou. Tudo que me ensinaram lá na clínica da prótese, foi passado tudo para a fisioterapeuta que eu tenho em Saquarema.
Mas agora que realmente a prótese chegará, a gente vai intensificar muito a fisioterapia. Vou ter que estar no Rio de Janeiro, na clínica, duas vezes por semana. E até chegar a hora de fazer o molde, porque aonde eles botam um eletrodo, eles não podem errar. E tem que ser onde há o melhor sinal muscular.
Eles não me dizem, não conseguem prever quanto tempo isso vai demorar. Duas vezes por semana, onde eu estiver, eu tenho que ir ao Rio de Janeiro.
OP - Então esse tempo de começar a usar o braço biônico você ainda não sabe?
Roseana - É, eu imagino, tô falando falando para mim mesmo, né? Imagino daqui a três meses, porque a hora que ele tirar o molde, logo a prótese já está pronta. Ele tem que tirar o molde para colocar, mas ele já tem os componentes da prótese.
Ela não é mecânica, ela é biônica. Ela custou 350 mil reais, é o preço de uma boa casa. Então a minha responsabilidade com a prótese é monumental. Não é difícil imaginar o quanto eu me sinto responsável com o bom funcionamento dessa prótese para ela melhorar muito a minha vida, pelo preço que ela custa.
E a imprensa noticiou um valor absurdo (veículos chegaram a divulgar que valor seria de quase R$ 900 mil), que é a prótese mais cara que existe, que todos os dedos se mexem, acho que é movida com o pensamento, mas não é o meu caso. A imprensa, ela viaja na maionese, inventa pra caramba.
OP - Como foi a orientação para você entrar na Justiça, para buscar o direito à prótese? Para o seu caso servir como um exemplo por alguém que tenha passado situação semelhante?
Roseana - Eu achava que como já havia quatro boletins de ocorrência, que a Prefeitura deveria me dar uma prótese. Porque se não tivesse sido eu e tivesse passado uma criança, eles teriam matado. E eles só não me mataram porque passou um maratonista correndo e teve a coragem, e foi desesperador conseguir tirar os cachorros de cima de mim sem ser atacado.
Então, eu acho que é uma coisa justa, acho que esses cachorros oferecem um perigo absoluto para as pessoas, para os humanos, até para os donos. E não é o caso de dizer que depende do dono, porque tem muitos casos em que esses cachorros ferocíssimos matam o dono. E no Brasil nenhuma lei é obedecida.
Ninguém anda com mordaça, coleira, soltam cachorros ferozes na praia. Eu não sei, a partir do que aconteceu comigo, outros muitos casos aconteceram na minha região. Então, penso que nenhuma prefeitura de outros lugares está tomando providências.
OP - Você é tutora também de cães? Tem algum em casa?
Roseana - Não, não. Não tenho. Eu adoro cachorro, mas eu adoro cachorro manso, porque eu sou pacifista. Não posso imaginar um cachorro que vai usar os seus dentes e a sua força para matar uma pessoa. É inadmissível para mim. Inadmissível.
OP - Com o tipo de prótese, o braço novo poderá ser escritor?
Roseana - Não, não vai. Eu tenho que fazer muita caligrafia com o braço esquerdo, que a minha letra ficou horrível. Porque eu operei a mão e fiquei um tempão sem usar e tá ruim de novo. Eu tenho que fazer caligrafia. E não vai.
A mão vai girar, abrir, fechar, voltar a palma para baixo e para cima. É isso. Mas já vai ser magnífico. Pense que eu vou pegar a minha xícara do café, que eu vou poder segurar um legume para cortar. Eu vou poder cozinhar outra vez. Então vai ser de muita serventia.
Eu queria fazer uma observação. A Prefeitura de Saquarema foi maravilhosa comigo, porque eles poderiam ter recorrido e não recorreram. Então, eu agradeço muito essa prótese.
OP - Também atualizando: os tutores dos cães chegaram a ser presos. Como é que está o caso na esfera penal?
Roseana - Eles logo foram soltos. Eles são réus por maus tratos aos cachorros. Eu não quis que colocasse nada em relação a mim. Não quero que ninguém seja criminalizado por minha causa.Não vai adiantar. O meu braço não vai voltar.
OP - O seu episódio remete muito a coragem, resiliência, recomeço. Você também distingue dessa forma? Como é que esses conceitos cruzam a sua cabeça?
Roseana - Olha, é um recomeço mesmo. Desde as coisas mais simples que você tem que reaprender a fazer apenas com a mão esquerda, e eu era destra, até o fato de saber que eu cheguei no hospital, com um fio de vida e eu consegui ficar viva.
Eu fui completamente atacada. Perna, rosto, meu braço esquerdo foi reconstruído. Ele não é um braço comum, é um braço esquisito, estranho, porque do cotovelo para cima ele não sente as coisas.
OP - Você quase perdeu os dois braços?
Roseana - É, quase perdi. Quase. A minha orelha, eu não perdi. Ela ficou pendurada e eles conseguiram, que é uma coisa muito difícil, costurar e ela ficar direitinha no lugar. Igualzinha. Só tem um pedacinho, deu um pico no lado de cima da orelha que os cachorros cortaram. Eles fizeram um estrago em mim muito grande, muito grande. É recomeço.
OP - Recomeçar é mais difícil do que continuar?
Roseana - Não, é outra experiência, completamente diferente do continuar. Eu estava indo toda feliz pra academia, que eu saio super feliz pra academia, e de repente eu estava em outra situação terrível, terrível, terrível, e a minha vida mudou demais.
E de repente era o Brasil inteiro rezando por mim. Era o Brasil inteiro me amando, me mandando amor, uma coisa que eu também nunca tinha vivido nessa dimensão. Tudo é diferente. Então não adianta porque é diferente, é um recomeço.
Aquela pessoa que estava indo toda feliz pra academia foi quase destroçada, perdeu a metade do sangue do corpo. Eles me reconstruíram como puderam e eu tô viva. É muito diferente do que continuar, porque a gente nem lembra, né, que a gente tá vivo e que cada dia é um milagre.
OP - E você está buscando coisas básicas, simples.
Roseana - É, vou poder pegar a caneca do café, poder apoiar meu braço na mesa, essas coisas que são a tua vida, teu cotidiano. Eu acho que vai ser muito bom para mim. Vamos ver.
OP - Você também descreve no seu livro A Morte sobre o Corpo que tinha uma tatuagem no seu braço.
Roseana - Era linda, era linda. E no outro braço eu tenho uma tatuagem da pomba da paz, do Picasso. E tem duas ou três cicatrizes bem no meio da pomba, que simboliza muito claramente esse momento que o mundo está vivendo agora, de extrema violência. A pomba da paz está ferida.
OP - Aquela tatuagem perdida pode reaparecer no seu corpo novamente?
Roseana - Eu não sei. Aquela tatuagem era tão linda, a pessoa que fez não copiou de nenhum lugar. Era um ramo de flores que ele desenhou assim na hora. Eu não sei se eu vou fazer outra tatuagem. Resta pouco espaço.
Queria fazer no braço, mas o meu braço esquerdo está todo operado. De certa maneira, eu tô pensando agora, a prótese é uma tatuagem. E a minha prótese vai ter um pedaço azul, que eu pedi. Então ela vai ficar uma prótese diferente, bonita.
OP - Por que você pediu para ser azul?
Roseana - Eu pedi. Você pode deixar ela da cor da pele ou você pode botar o que você quiser, a estampa que você quiser. Pode ser estampada de flores, pode ser o que você quiser. Se as crianças quiserem botar algum personagem, uma cena de quadrinhos.
Tem que ter um tecido, eles me explicaram. Aí o tecido vai passar por uma série de situações, não guardei os nomes, e ele cola na prótese, no titânio, e nunca mais ele sai, não desbota, não acontece nada. É como se ele fosse se fundisse com o próprio titânio. Ah, e minha prótese vai ter nome.
OP - E qual será?
Roseana - Blue. Ela vai se chamar Blue, porque era um cavalinho que a minha neta teve e não tem mais.
OP - Você tem uma neta e um neto?
Roseana - É, uma neta e um neto.
OP - São os mesmos nomes que você usa no livro “O Braço Mágico”?
Roseana - É, Luís e Gabi.
OP - Qual a idade deles?
Roseana - Luís tá com 15 e Gabi tá com 11. No livro eles são mais novos. Ele passa pro leitor a ideia de que são mais novos.
OP - Você é procurada diretamente por pessoas nas suas redes sociais, que lhe pedem alguma manifestação de resiliência, de ajuda, orientação?
Roseana - Não, elas fazem declarações. Elas declaram que eu sou de grande inspiração.
Estava no banco e uma senhora de 85 anos, eu acho, com aquela bengala de três pés, com dificuldade de caminhar, ela falou assim: "Você me deu uma lição de vida. Eu não saía mais de casa, não saía mais da cama. E eu achei que com a tua vivência eu tenho mais é que viver. E aí eu queria te agradecer”. Esse tipo de coisa, sabe?
OP - Para você como é que isso chega? Como é que você cheira esse perfume?
Roseana - Olha só, para mim tudo que eu faço é natural. Eu não programei nada disso. Quando eu dei a primeira entrevista pro Fantástico, eu estava ainda recém-operada na UTI. O hospital me pediu que eu desse a entrevista, eu dei.
E eles me perguntaram: “E agora, sem a mão direita, como é que você vai escrever?”. Eu falei: Ué, com a esquerda? E logo que eu cheguei em casa, pedi para comprarem caderno de caligrafia para mim. Mas isso é natural para mim.
Assim como a minha poesia inspira muito as pessoas, porque ela fala de amor e de valores humanos que a gente está perdendo no meio de tanta violência, valores básicos para a convivência entre humanos. Não é?
A minha poesia faz alguma coisa com as pessoas, a minha postura nessa tragédia inspira as pessoas. Eu não posso te dizer que eu fiz nada para inspirar ninguém. É o meu jeito de viver. Aí fico feliz, né, que eu tenha inspirado as pessoas para o bem. Maravilhoso. Fico emocionada, emocionadíssima, mas é natural para mim.
OP - Na verdade, a sua linha está sendo coerente.
Roseana - Totalmente coerente, totalmente. A minha vida e a minha poesia, elas se juntam. Não vejo separação.
OP - Então como você acha que vai ser 2025, a partir dessa sua experiência de recomeçar?
Roseana - Você conhece o Oráculo de Delfos, na Grécia Antiga? Havia uma cidade chamada Delfos e havia um oráculo que dizia que o futuro era uma pitonisa. E realmente ninguém fazia nada sem consultar o Oráculo de Delfos.
Todas as guerras, tudo que se fazia de grande ou de pequeno, se pudesse seria consultado no Oráculo de Delfos. Na verdade, eu não tenho um oráculo. Eu não sei. Eu vou vivendo o que vai aparecendo.
Eu espero que 2025 seja um ano sem tragédias para mim, porque já vivi bastante esses dois eventos terríveis, que é a partida de uma pessoa que estava do meu lado há 27 anos e a perda do meu braço e meu corpo todo desmantelado. Então eu acho que chega.
Se eu não tiver nenhuma tragédia, já tá de bom tamanho. Se o mundo não tiver guerra nuclear, também já tá de bom tamanho. Se a paz for encontrada no Oriente Médio, tá magnífico. Se no Brasil as coisas melhorarem, fico muito feliz.
Se os donos do poder lá no parlamento caírem em si, que se a gente continuar destruindo tudo, não vai sobrar nada e não vai sobrar a gente também. Então, se 2025 me trouxer uma partícula dessas coisas todas e nenhuma tragédia, a minha felicidade será monumental.
Nascimento
Roseana Kligerman Murray nasceu em 27 de dezembro de 1950, no Rio de Janeiro. É filha de imigrantes poloneses. É graduada em Língua e Literatura Francesa pela Universidade de Nancy, através da Aliança Francesa.
Livros
São mais de 100 livros publicados, várias premiações importantes do segmento. Ela mantém projetos sociais com crianças de escolas públicas, incluindo visitações e cafés literários em sua casa de mar, em Saquarema.
Entrevista
A entrevista foi feita no dia 8 de dezembro, por videochamada. Ela estava na casa da montanha. Na semana anterior havia saído a ordem judicial para os governos do Rio e de Saquarema pagarem seu braço biônico. Depois do ataque dos cães, Roseana ficou internada por 13 dias.
Família
Seu marido, Juan Arias, foi colunista no Brasil do periódico espanhol El País. André, o filho mais velho, é chef de cozinha do Restaurante Babel, em Mauá. Guga, o mais novo, é dono de uma escola de música em Rezende.
Grandes entrevistas