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Do colapso à colaboração: Ladislau Dowbor e o futuro da economia compartilhada
Reportagem Seriada

Do colapso à colaboração: Ladislau Dowbor e o futuro da economia compartilhada

Crítico da financeirização global, o economista propõe alternativas baseadas em governança participativa, redes colaborativas e novas formas de medir riqueza para transformar o sistema de forma sustentável.

Do colapso à colaboração: Ladislau Dowbor e o futuro da economia compartilhada

Crítico da financeirização global, o economista propõe alternativas baseadas em governança participativa, redes colaborativas e novas formas de medir riqueza para transformar o sistema de forma sustentável.
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Aos 84 anos, o professor Ladislau Dowdor segue mostrando afiada veia crítica ao sistema financeiro global. Para ele, resgatar a função social da economia é uma questão de dignidade humana.

O professor mantém um site (dowbor.org) que é uma biblioteca científica online, destinada aos que se interessam pelo que ele chama de "visão progressista e renovadora sobre o desenvolvimento econômico, social, cultural e ambiental". Lá está disponível toda a produção intelectual da qual é autor ou coautor, com mais de 45 livros.

Ladislau Dowbor é economista, consultor da ONU e professor titular de pós-graduação da PUC-SP(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Ladislau Dowbor é economista, consultor da ONU e professor titular de pós-graduação da PUC-SP

Ladislau Dowbor é formado em economia política pela Universidade de Lausanne, na Suiça, doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, na Polônia. É professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), nas áreas de economia e administração. 

É consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de organizações do sistema "S". Para os governos de Costa Rica, Equador, África do Sul, foi consultor para a organização de sistemas descentralizados de gestão econômica e social. É também conselheiro no Instituto Polis, Idec, Instituto Paulo Freire, Conselho da Cidade de São Paulo e outros.

Ele conversou com O POVO sobre o cenário socioeconômico global e as transformações trazidas pela tecnologia digital. Destacou ainda a dramática desigualdade social crescente e a calamidade ambiental, ambas impulsionadas por um sistema financeiro globalizado e concentrado em poucas corporações. O impacto das novas tecnologias e a importância de iniciativas colaborativas para emponderar comunidades e resgatar a utilidade social da tecnologia.

 

 

O POVO - Qual sua avaliação sobre os rumos da economia global hoje em tempos de taxações internacionais de Donald Trump?

Ladislau Dowbor - Olha,  primeira coisa é que ninguém sabe ao certo para onde vamos. Há uma situação de insegurança. Pode dar um novo 1929, por que não? Tem um personagem, chamemos assim, muito estranho, dirigindo um país com essa potência, teoricamente democrático. E falar de anexar um país vizinho, de tomar...

Você sabe, eu sou de uma idade que eu conversei com o meu pai, que tinha 80 anos na época, engenheiro polonês, eu perguntei para ele como eram as declarações do Hitler, que ia tomar, invadir, fazer não sei o quê. Ele dizia que eles abriam o jornal e diziam: “Mas o que que esse cara vai inventar?" Isso é anos 1930!

'Na realidade, eu acho que estamos enfrentando, todos nós, um sentimento de insegurança.'(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE 'Na realidade, eu acho que estamos enfrentando, todos nós, um sentimento de insegurança.'

Na realidade, não era só a Alemanha, era Itália, era Espanha, era, enfim, um conjunto. Se falar do Japão, enfim… Na realidade, eu acho que estamos enfrentando, todos nós, um sentimento de insegurança. Como é que você pode jogar, sem consultar, digamos, a comunidade planetária, os outros países. Isso é catastrófico.

É caótico, não tem como definir de outra maneira. Eu trabalhei por sete anos na África, por exemplo, na ONU. A gente tinha de prever quanta divisa a gente precisaria para importar petróleo, para essas coisas. Você tem de se organizar.

Ele está usando tarifas como um porrete, punindo sem nenhuma análise econômica. Isso gera, com toda razão, imensa insegurança. Como é que você responde? Você não tá dialogando! Como vai funcionar o Fundo Monetário, o Banco Mundial etc? Até aqui não. “Sou o rei do planeta e faço, eu vou dar, vou punir fulano, vou punir sicrano”. É insegurança, não tem como.

'Empresas que iriam investir em determinadas atividades, elas seguram tudo. Porque eu não sei quais são as regras do jogo que eu vou enfrentar. '(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE 'Empresas que iriam investir em determinadas atividades, elas seguram tudo. Porque eu não sei quais são as regras do jogo que eu vou enfrentar. '

OP - Diante desse cenário, há como fazer alguma previsão?

Dowbor - Eu não vou fazer previsões, porque inclusive não se tem muitas informações. Tudo jogado sem muita explicação, porque não há nenhum cálculo na base. De repente ele tem um pouco de simpatia ou está interessado em comprar alguma coisa, aí ele vai mudar para para tal país, não é?

O comportamento em relação ao México, ao Canadá, é dramático. E também relativo à Dinamarca, com a Groenlândia. Eu acho que a questão chave aqui é o fato de que é um país que decide fazer o que quer com o resto do mundo sem consultar. Não há diplomacia, não há negociação, não há construção, não há equilíbrio entre os diversos interesses em jogo.

Quando você não tem isso, simplesmente está desarticulando. Empresas que iriam investir em determinadas atividades, elas seguram tudo. Porque eu não sei quais são as regras do jogo que eu vou enfrentar. Bolsas caíram no mundo todo, cria uma expectativa e cria o que o Trump adora, que é estar no centro do mundo.

'O resto do mundo está querendo reequilibrar os processos.'(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE 'O resto do mundo está querendo reequilibrar os processos.'

OP - Podemos imaginar a influência do cenário econômico nos Brics, no qual o Brasil está inserido?

Dowbor - Isso dá para prever. Se você pega o nosso pequeno planeta hoje, os 15% da população, que é o norte global. América do Norte, Europa, Japão, Nova Zelândia, Austrália, Coreia do Sul, isso aí são 15% da população, estão 3/4 da riqueza, 75%. Bom, este sistema está em um quadro de um aprofundamento de desigualdade.

O resto do mundo está querendo reequilibrar os processos. Com esse comportamento norte-americano, é óbvio que a capacidade do resto do mundo de se articular e de existir de maneira organizada é vital, porque senão é país por país e isso aí simplesmente não funciona. Isso aprofunda, digamos, essa fratura entre o que se chama hoje de norte global e o sul global, e tem o papel fundamental da China.

China, só lembrando, que a gente usa dólares de poder de compra com o dólar americano, não é? O PIB da China é US$ 37 trilhões, dos Estados Unidos US$ 29 trilhões. A China tem o poder, digamos, de compensar a parte internacional de apoio aos diversos países, que é imenso. A China está no centro do Brics.

Tem uma rearticulação internacional que está ocorrendo naturalmente, inclusive na Europa, que passou décadas dizendo "sim, senhor" para tudo que os americanos diziam, e que de repente "temos que ter caminhos próprios". São novos desenhos, mas que a gente está vendo o movimento.

Eu acompanho um bocado das discussões internacionais, eu não encontro caminhos do que se desenha durante essa modificação. Ainda é difícil de prever para que lado o barco vai tendendo, mas essa força da China explica muito também os movimentos do Trump, corretos ou não.

'Ainda é difícil de prever para que lado o barco vai tendendo, mas essa força da China explica muito também os movimentos do Trump, corretos ou não'(Foto: SAUL LOEB / AFP)
Foto: SAUL LOEB / AFP 'Ainda é difícil de prever para que lado o barco vai tendendo, mas essa força da China explica muito também os movimentos do Trump, corretos ou não'

OP - A imprevisibilidade pode contribuir para uma crise econômica global?

Dowbor - Se você lembra da crise de 2007 e 2008, como grande parte da economia está pendente hoje dos sistemas financeiros, o que a gente chama de financeirização, essas coisas podem ser bastante bruscas, e de ruptura.

Porque quando um começa a vender, vê aquelas ações caindo, vende mais, o outro vem, que vende mais, você tem um chamado comportamento de manada, que se forma muito facilmente, entende? Daí a imprevisibilidade. Agora, a burrice é gerar um sistema de imprevisibilidade em vez de regras do jogo negociadas.

 

Sem nenhum exagero, tá? Não sou pessimista também de lançar grandes ideias no ar, mas nós estamos enfrentando uma calamidade dramática em termos ambientais

 

OP - Os EUA mudaram recentemente as políticas em relação ao meio ambiente. Como o senhor analisa a questão ambiental hoje, em termos globais?

Dowbor - Sem nenhum exagero, tá? Não sou pessimista também de lançar grandes ideias no ar, mas nós estamos enfrentando uma calamidade dramática em termos ambientais.

Porque não é só o clima, é a biodiversidade, é a contaminação dos mares, é o plástico em tudo, enfim, o conjunto de sistema da área ambiental, a perda de cobertura florestal, a perda de solo agrícola por excesso de monocultivo e química.

Quer dizer, a gente acompanha o conjunto desses processos. Eu participei da organização, inclusive da Cúpula da Terra, que é de 1992, no Rio, a Rio-92. Todos os números que a gente tinha contado estão batendo todos hoje. Não sabemos o que está acontecendo. Isso na área ambiental.

 

A desigualdade está explodindo no mundo, que até nos anos 1990 ainda a tendência era de redução da pobreza crítica. De lá para cá, a desigualdade aumenta dramaticamente

 

OP - Em meio a isso, temos a questão da desigualdade.

Dowbor - Isso. A segunda área de dramas é a área social. A desigualdade está explodindo no mundo, que até nos anos 1990 ainda a tendência era de redução da pobreza crítica. De lá para cá, a desigualdade aumenta dramaticamente.

Isso aqui é uma mudança sistêmica, porque quem ganha dinheiro é porque está produzindo coisas e tem de estar gerando emprego. Hoje, o grande dinheiro se faz através do sistema financeiro. Sistema de controle da comunicação, enfim, é tudo a economia imaterial.

Eu tenho os dados da Suíça, que tem US$ 230 trilhões de fortunas pessoais. A metade mais pobre da população mundial, 4 bilhões de pessoas, tem US$ 5 trilhões. Está entendendo? Se você tirar 2%, 2,5%, do 1% mais ricos, dá para dobrar e melhorar radicalmente a condição de vida da metade mais pobre da população.

'Quer dizer, se você soma essa tendência trágica do ambiente, nós estamos destruindo o planeta por benefício de 1%.'(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE 'Quer dizer, se você soma essa tendência trágica do ambiente, nós estamos destruindo o planeta por benefício de 1%.'

Quer dizer, se você soma essa tendência trágica do ambiente, nós estamos destruindo o planeta por benefício de 1%. É tão simples assim. E a gente não consegue resgatar o controle do seu processo, porque as grandes corporações que manejam isso. Para você ter uma ideia, as dez maiores empresas controlam US$ 50 trilhões. O PIB mundial em 2022 foi US$ 100 trilhões. Ou seja, dez grupos financeiros têm esse grau de controle.

Então, tem o drama ambiental, o drama social e isso é criado por um sistema que age em espaços globais. Porque eles estão carregando máquinas para cá, vendendo aquilo. É só sistema financeiro. Eu ainda tenho no meu bolso, na minha idade uso notas de R$ 20, R$ 50. Isso é 5% da riqueza do mundo. 95% é apenas imaterial.

Ou seja, você tem um espaço que se tornou global, onde funcionam as grandes corporações, e os governos são nacionais. Você perdeu o controle. Só a BlackRock administra US$ 10 trilhões, cinco vezes o PIB do Brasil. O orçamento federal dos Estados Unidos é US$ 6 trilhões. Larry Fink (fundador, presidente e CEO da BlackRock) administra US$ 10 trilhões! Esse é o nível.

Eu estou trazendo coisas, digamos, que são pontos de referência, que eu chamo de nova arquitetura socioeconômica. O problema é a nossa incapacidade enfrentada, ou seja, o problema central é de governança.

Agora, o segundo ponto que eu acho que toca diretamente nessa governança é que se você gera um Donald Trump aqui, gera um Milei ali, uma (Giorgia) Meloni lá na Itália. Ninguém se elege em torno só do que tem. Se você for ver a posse do Trump, tem 13 bilionários ali juntos.

Em 2010, os Estados Unidos aprovaram o financiamento corporativo das campanhas políticas, certo? Eles comentam "temos o melhor Congresso que o dinheiro pode comprar". Nós privatizamos a política, de certa maneira. Eu estou puxando pro central, que é o seguinte: a nossa capacidade de intervir sobre os processos aqui se deteriora.

'A política está no século passado, a Europa está dando os primeiros passos para regular o sistema de comunicação.'(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE 'A política está no século passado, a Europa está dando os primeiros passos para regular o sistema de comunicação.'

OP - O avanço de novas tecnologias, de inteligência artificial, tem influenciado economicamente a vida das pessoas? De que forma?

Dowbor - As tecnologias explodiram. Daí a importância de a gente trazer essa inteligência artificial, todos esses novos desafios, porque toda a parte econômica, em particular financeira, sistema de controle das populações, o acesso à informação privada das pessoas, todo um universo que surgiu através da tecnologia.

A política está no século passado, a Europa está dando os primeiros passos para regular o sistema de comunicação, sistema de informação etc. Aí vem o Zuckerberg e diz: "Não, eu quero liberar, a liberdade".

OP - Como fica o controle da comunicação pelas plataformas e o papel dos governos em meio a isso tudo?

Dowbor - A gente trabalha com o que a gente chama de monopólio de demanda. Eu posso não querer dar apoio especial ao Facebook, mas eu coloco minha produção científica no Facebook, porque eu tenho de usar o que os outros usam.

Então, todo sistema de comunicação, como todo sistema financeiro, tende para sistemas oligopolizados ou monopolizados. Isso torna extremamente difícil você usar todas essas novas tecnologias, no imenso potencial que elas têm.

Agora, como relacionar as novas tecnologias com o interesse social? Pega um negócio prático, Araraquara, em São Paulo. Você sabe que no Uber, o motorista recebe mais ou menos 70% do que o cliente paga. A cidade de Araraquara fez um "Uberzinho", digamos assim, da Prefeitura. É uma merreca você fazer uma plataforma local, não precisa passar pelo Uber e transferir dinheiro para Estados Unidos. O motorista lá recebe 95% do que o cliente paga.

Mark Zuckerberg, CEO da Meta, observa durante a audiência do Comitê Judiciário do Senado dos EUA 'Big Tech e a crise da exploração sexual infantil on-line' em Washington, DC, em 31 de janeiro de 2024 (Foto: Brendan SMIALOWSKI/AFP)
Foto: Brendan SMIALOWSKI/AFP Mark Zuckerberg, CEO da Meta, observa durante a audiência do Comitê Judiciário do Senado dos EUA 'Big Tech e a crise da exploração sexual infantil on-line' em Washington, DC, em 31 de janeiro de 2024

Nós temos exemplos de municípios que criam plataforma colaborativa. Eu pego o exemplo Casa Verde, um bairro de 85 mil habitantes em São Paulo. Puseram todo mundo em contato, o pessoal tem a rede do bairro. Então, uma senhora aposentada que gosta de fazer bolo, ela faz bolo para a vizinhança. Estão em contato.

Se você entrar no Google e precisar construir, fazer uma reforma na casa, ele vai te mostrar Telha Norte, enfim, os gigantes. Ali não, vai aparecer que um cara no bairro tem o produto. Ou que alguém está procurando costureiras, várias costureiras.

Não tinham onde trabalhar para produzir. Puseram no site, apareceu um empresário, que tem um galpão parado, ofereceu para elas. Elas agora fizeram um contrato com a Prefeitura para costurar uniformes. O que você está fazendo? Você está usando a conectividade que essas novas tecnologias permitem, em vez de ser usado para explorar as pessoas através das taxas de juros, diversos sistemas, dinheiro também imaterial.

Não sei se você acompanha o que chamamos de "a geração ansiosa". A manipulação dos jovens, dos adolescentes em particular, através do smartphones, de toda porcaria que se empurra toda essa coisa. São dramas.

É de você pensar que todo esse processo desses avanços tecnológicos, as instituições, as regras do jogo não acompanhavam, então virou uma zona realmente. Você tem, por exemplo, a "Máquina do Caos", do (Max) Fisher, não é? Mostra como isso gera, como as religiões se jogam umas contra as outras. Polarizações políticas.

OP - Como fica a questão da difusão de conhecimento em meio às novas tecnologias?

Dowbor - Veja bem. 25 anos atrás, quando poucas pessoas ouviam falar da coisa, eu fiz um blog e eu passei a minha produção científica online. Hoje todos os meus livros estão de graça, online no meu site. Você veja que interessante, eu não estou substituindo, meus livros continuam vendendo.

Meu site tem mais ou menos 100 títulos hoje. Um professor de colégio não vai dizer pros alunos: "Compre o livro do Ladislau". Não é realista, mas ele diz: "Olha, na próxima semana, a gente discute o capítulo dois do livro, está online". Está me entendendo? A universidade, por exemplo, pode ir além de eu dar aula para aquele grupinho.

'Na China, avanços científicos são repassados. O cara recebe um bônus e é repassado a todas as instituições de pesquisa.'(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE 'Na China, avanços científicos são repassados. O cara recebe um bônus e é repassado a todas as instituições de pesquisa.'

Eu publiquei 15 minutos sobre como funciona o ciclo econômico e, em dois meses, tive meio milhão de visualizações. O que é isso aí? A universidade não é só para o cara individualmente subir pela escadinha. Escala social, mas para enriquecer cientificamente a sociedade.

A China já generalizou isso. Tem também em Harvard, que se chama Archives. Na China, avanços científicos são repassados. O cara recebe um bônus e é repassado a todas as instituições de pesquisa. Ninguém na China trabalha reinventando a roda. Eu estou trazendo isso com força porque essas novas tecnologias mudam as regras do jogo no tempo. E as regras do jogo que a gente tem são da era anológica, entende? E os potenciais são imensos, são muito interessantes.

 

A China é imensa. O governo central é muito pequeno, politicamente forte, faz todo o processo de implementação, grandes infraestruturas, ferrovias etc. Isso é o governo central. Agora, o desenvolvimento se exercita todo em nível local

 

OP - E como o senhor analisa o papel dos governos locais na economia globalizada?

Dowbor - Eu estive várias vezes na China, eles mesmo se chamam de "Mayor Economy", economia de prefeito. A China é imensa. O governo central é muito pequeno, politicamente forte, faz todo o processo de implementação, grandes infraestruturas, ferrovias etc. Isso é o governo central. Agora, o desenvolvimento se exercita todo em nível local.

Hoje você pode centralizar radicalmente a política sem perder o controle, porque você está online. Aprovar uma vez o orçamento e depois analisar os resultados da aplicação do orçamento uma vez por ano e coisa do gênero. A política pode passar a existir online e se organizar de maneira horizontal, entende? E colaborativa, de maneira muito mais fácil.

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante coletiva de imprensa em Pequim, na China(Foto: Ricardo Stuckert/PR)
Foto: Ricardo Stuckert/PR Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante coletiva de imprensa em Pequim, na China

Isso funciona na China, mas eu vi isso funcionar também na Suécia. Eu estive lá com a ministra do Planejamento da Suécia, ela disse: "Na Suécia, 72% dos recursos públicos são repassados diretamente para o local". No Brasil não chega a 30%. No Brasil, o prefeito vai para Brasília puxar o saco de um deputado, do senador, para ver se pega uma lasca da emenda parlamentar.

Não funciona nem a prefeitura, nem o governo central, que esses caras estão em micro negociação preparando a eleição próxima. Ou seja, a inteligência artificial, a conectividade, o fato de que grande parte da economia é imaterial, isso permite um sistema de gestão horizontal em rede e colaborativo, que muda profundamente o conceito tradicional que a gente tem das burocracias que vêm lá de cima, passa pelos diversos escalões, até que chega lá embaixo.

Curiosamente, os recursos se evaporam no caminho. Isso funciona na China, na Suécia, na Alemanha. O alemão não coloca seu dinheiro em grandes bancos. O dinheiro é imaterial hoje, sinal magnético. Ou seja, você tem o dinheiro da comunidade, fica na comunidade e grande parte do recurso tributário é repassado diretamente também para o local.

Resultado: a comunidade, a cidade articulada. Eu estou dando fragmentos. Mas, na realidade, o sistema está mudando. E grande parte do que a gente chama de direita, esquerda, em grande parte são diversas formas de buscar privilegiados ou estruturas preexistentes, sem ver a transformação estrutural que está em curso.

'A gente tem os relatórios, na Johnson ENTITY_amp_ENTITY Johnson, por exemplo, 27% do que você paga é publicidade.'(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE 'A gente tem os relatórios, na Johnson ENTITY_amp_ENTITY Johnson, por exemplo, 27% do que você paga é publicidade.'

OP - Nesse sentido, como está o Brasil?

Dowbor - Nós estamos muito atrasados. Iniciativas como pegar a transformação devido à inteligência artificial e ver os impactos sociais, ou seja, o resgate da utilidade disso, nós temos. Do lado acadêmico, há grandes avanços, mas as pessoas não se dão conta.

Caramba, eu pego meu celular, se eu quiser puxar um artigo de um colega em Kyoto, no Japão, eu pego, está aqui. A conectividade planetária gera potenciais imensos, de consulta, como por exemplo, de maneira muito modesta, o meu site com 2.500 títulos, mas que atinge um monte de gente em diversas línguas.

Os chineses traduziram meu livro "A era do capital improdutivo". Eu brinco com os alunos que se 0,01% dos chineses lerem o meu livro, já vai ser muita gente, está me entendendo?

OP - Sabemos explorar a grandiosidade em potencial de tudo isso?

Dowbor - De certa maneira, é uma gigantesca subutilização de potenciais. A gente deixou isso com os grandes da comunicação. É natural que esses avanços tecnológicos inicialmente estejam na mão dos grandes e dos ricos, até porque eles são, não é? Agora, a recuperação está em curso.

Ah, o exemplo que eu dei da Casa Verde, que gerou um sistema colaborativo online, você não precisa convocar a comunidade para uma reunião sábado à noite, um saco! Não, as pessoas colaboram, trocam coisas, discutem sobre clubes de futebol, escolas de samba…

Enfim, essa conectividade generalizada e gratuita permite sistemas colaborativos radicalmente inovadores. Ela permite também escapar do que hoje a gente ainda chama de marketing, de publicidade. Mas, na realidade, hoje se chama de "attention industry", indústria da atenção.

Eu não consigo seguir no meu celular ou no computador sem que entrem coisas. Enfim, quem é que paga tudo isso? É muito dinheiro, não é? Está tudo nos preços, gerando uma parte da inflação. Pessoas não se dão conta.

A gente tem os relatórios, na Johnson & Johnson, por exemplo, 27% do que você paga é publicidade. Então, quando interrompem o teu filme para dizer que é graças a eles que estamos vendo, gentil oferta, mas na verdade a gente assina hoje o streaming para assistir sem publicidade. Agora já está botando, se você não pagar a conta mais cara, você também tem alguma publicidade e as coisas vão evoluindo.

 

 

OP - O senhor trata da perda de controle diante das tecnologias. Há como retomar esse controle?

Dowbor - Olha, eu vejo iniciativas como um resgate de autocontrole. Essa tecnologia permite a um monte de gente ter acesso à ciência de graça. E não estou fazendo sacrifício, não me tira pedaço o que os chinês leem. O conhecimento é diferente dos produtos.

Se me encomendam mais copos, eu tenho que comprar matéria, os custos. Se eu produzir uma ideia que mais gente utiliza, a gente chama isso de custo marginal zero.

É muito poderoso, como no centro do desenvolvimento hoje, não é mais a máquina e o cara, o operário, e sim o conhecimento, o sistema que maneja a máquina.

Então, e o conhecimento tem isso, se eu te passo meu relógio, eu deixo ter meu relógio. Isso é passar. Se eu te passo uma ideia, continuo com ela. Ou seja, dá para generalizar acesso à tecnologia, conhecimento, cultura, sem custos adicionados. Dá para democratizar esse negócio. Isso significa a gente ir além de um Google, de um Zuckerberg da vida. 

 

 

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