Maria Madalena Correia do Nascimento nasceu no município pernambucano de Itamaracá, em 12 de janeiro de 1944. Filha de agricultores, ela sonhava ser cantora, embora não soubesse o que fazer para chegar a essa realização nem em que implicaria realiza-lo.
“Muita luta, muita garra”, é como ela explica o fato de ter chegado onde queria, se tornado uma estrela que viaja o mundo e cantado com astros internacionais. Para isso, ela também se muniu daquilo que guardava na memória interiorana: a ciranda, o coco, as rimas simples, o ritmo das palmas.
Sem nunca deixar de carregar seu pedaço de terra natal, Lia de Itamaracá tornou-se mais que cantora. Virou rainha, com joias, cetro, coroa e seu castelo é a mesma casa em que morou com a família desde muito anos.
A seguir, ela relembra fatos dessa história que já conta 81 anos e é motivo de orgulho para ela e para quem se deixa banhar por sua arte.
O POVO – A nossa ideia é falar da sua história com música, saber das suas viagens, da sua ciranda.
Lia de Itamaracá - Olha, eu comecei a me interessar pela música com 12 anos de idade. Com 19 anos para 20, assumi a responsabilidade de cantar, de gravar, de compor e ser atriz. É mole? Porque foi aí eu estava madura, estava sabendo o que ia fazer. Gravei um LP em 1977, gravei o primeiro CD, gravei o segundo e o terceiro CD.
O POVO – Qual sua primeira lembrança com música?
Lia de Itamaracá – Minha primeira lembrança com música foi com o sonho que eu tive de ser cantora. Eu queria cantar. Na minha família ninguém canta, ninguém dança, não sabe nem para onde é que vai. Eu venho de uma família de 18 irmãos comigo, mas nenhum interessou-se pela música. Só eu. Eu nasci com esse dom de cantar.
O POVO – Mas na sua casa tinha muita música? Seus pais ouviam música?
Lia de Itamaracá – Não, não. Nada, nada, nada, nada! Eu, se quisesse ver música, eu ia para Recife, para São Pedro. Ia até o foco da brincadeira, ia lá ver o andamento como era. Eu já estava no ato de querer ser cantora mesmo. Aí ia ver como era para eu poder entrar na linha.
O POVO – Já nasceu com isso na veia?
Lia de Itamaracá – Já nasci com isso, com esse dom de cantar e de querer seguir a minha carreira. Mas me dei muito bem, graças a Deus. Hoje sou cantora, não é? Mais menino!
O POVO – Eu queria saber como é que era a sua casa, dona Lia. Era muita gente, né? Era uma casa grande?
Lia de Itamaracá – Era uma casa de palha, de taipa. Pobre não podia morar em palacete. Pobre morava no que podia. E assim se vivia. E era assim que a minha família também convivia. Depois de 10 anos, eu fui para a casa de uma família que acabou de me criar.
Meu pai era casado, tinha 11 filhos. Juntou-se com a minha mãe, que tinha sete filhos, agora faz as contas. Para sustentar tudo na agricultura. Era macaxeira no mato e macaxeira em casa, macaxeira no mato e macaxeira em casa (gargalha). Tome macaxeira!
Eu sei que aí minha mãe veio de um lugar chamado Sossego (Pernambuco), arrastando sete filhos. Meu pai já tinha deixado ela. Também em Pernambuco? Foi Pernambuco. Meu pai já tinha deixado ela. E ela: “Sim, agora o que é que eu vou fazer?”.
Quando ela veio, encontrou com uma família. Eu acho que a família teve pena de vê-la arrastando sete filhos pela saia sem saber o que fazer. Aí perguntou se ela queria trabalhar. Ela disse: "Quem quer trabalhar está aqui, que eu quero acabar de criar meus filhos. O homem que morava comigo me deixou e eu estou sem sossego, sem saber o que eu vou fazer”.
Aí a família disse para ela: “olhe, eu tenho um sítio. Nesse sítio, eu tenho uma casinha. Nessa casinha eu vou botar você com seus filhos e você vem trabalhar”. Ela disse: "É, tudo bem. Só que eu venho de Sossego, não conheço nada, meus filhos são pequenos e eu tenho medo de deixar eles sozinhos em casa. O que é que eu faço?”.
Não mediram distância: “Pegue seus filhos e traga”. Agora eu pergunto, quem quer hoje uma mulher, uma empregada arrastando sete filhos para trabalhar na casa de família? Ninguém! Um já é muito. E sete? Mas ele acolheu ela. Acabou de criar tudinho na casa deles. Tá tudo criado. Lia tá aqui, sã e salva, cantando, cantarolando.
O POVO – Essa história já foi depois do seu pai partir com os 11 filhos dele.
Lia de Itamaracá – Quando ele deixou minha mãe que já tinha sete filhos, foi embora morar com a mulher com quem ele era casado. Minha mãe ficou com os sete filhos, sem ter sossego.
O POVO – A senhora voltou a ter contato com ele em algum momento?
Lia de Itamaracá – Tenho, tenho. Não ficou ninguém rival, não. É tudo criado, a diferença é só das mães. O pai é o mesmo. Que só tem uma macaxeira, mesmo! (Gargalha).
O POVO – E como é essa sua relação com os seus irmãos, já que eles não são da música, né? E sua casa não era uma casa preenchida pela música. Como que é a relação de vocês até hoje?
Lia de Itamaracá – Isso é maravilhoso. Cada qual no seu quadrado. Cada um nas suas casas. Eu na minha casa fiquei com a minha mãe. E depois passei para ser criada de outra casa. Mas a gente se dá muito bem. A diferença só das mães, o pai é o mesmo. A gente se fala, graças a Deus. Não somos desunidos, não.
O POVO – E como eles se relacionam com a sua carreira? O que que eles acham na sua vida de cantora?
Lia de Itamaracá – Apoiam, gostam. Adoram. Só que não quiseram entrar na linha. Na linha de ser cantor.
O POVO – Eu queria que você falasse mais dos seus pais. Como é que era sua relação com eles?
Lia de Itamaracá – A minha mãe chamava-se Matilde Maria da Conceição. O meu pai é Severino Nicolau. Mas era um casal de neguinho assim amada, aconchegante. Era um casalzinho da macaxeira mesmo. Que ele agricultor, né? E não podia sustentar esses filhos todos na agricultura. Na agricultura você planta e espera colher, né?
O POVO – Mas eles eram rígidos com a senhora?
Lia de Itamaracá – Não, não, nunca foram. Nunca, nunca.
O POVO – A sua mãe lhe incentivou em relação à música, à vida de artista?
Lia de Itamaracá – A minha mãe não chegou a ver meu sucesso, não. Ela morreu logo. Teve derrame cerebral. E ela se foi. Não chegou nem ver meu sucesso. Mas onde ela está, tenho certeza que ela está dando glória à filha dela. De ter construído, feito uma artista, neguinha da roça.
O POVO – A senhora tem esse sonho desde muito pequena de ser cantora, lutou e conseguiu. Mas eu queria saber como foi esse primeiro momento. Por exemplo, gravar disco, ainda mais em 1977, não era fácil.
Lia de Itamaracá – Era tudo difícil, difícil. Muita luta, muita garra. Até eu encontrar com o Beto (Hees), que é meu produtor, demorou muito. Até me encontrar com ele, para me tirar do buraco.
A prefeitura não incentiva nada. Não chegava ninguém que dissesse: "Vem por aqui que tu te lasca, vem por aqui que tu te fode”. Nada! É para mim sozinha me virar.
E quem me fez de Lia fui eu mesmo. E estou no mundo. E apoiando Itamaracá, justo o lugar que nasci, me criei, que era para eles valorizarem, mas não valorizam.
O POVO – A senhora sente que não é valorizada lá?
Lia de Itamaracá – Pelo que eu já fiz e que ainda faço, neguinho, tá pouco. Tá pouco. Meu sucesso é todo de fora. Meu trabalho é reconhecido fora.
Quando eles me procuram em Itamaracá: “Cadê Lia?” A Lia tá aqui não, tá viajando. O pessoal passava lá por casa e dizia: “Essa é a casa de Lia da Ciranda?”. Aí meu esposo diz: “Não, ela não mora aqui. Ela mora no avião”. Por que ela viaja muito.
O POVO – E como foi essa primeira experiência de gravar? Escolher um repertório, montar um grupo para lhe acompanhar e ir para o estúdio.
Lia de Itamaracá – Encontrei um produtor, um outro. Ele me incentivou, viu as partituras das músicas, e vamos ensaiar e vamos gravar. Eles ganharam tudo e deixaram Lia a ver navio.
O POVO – Você nem recebeu dinheiro?
Lia de Itamaracá – Não, não recebi nada. Mas também eu digo: “olha, um dia tu vai me pagar. Tu vai me pagar um dia. “Por que você disse que eu vou lhe pagar?” Porque você vai pagar. Sua cara não é de inocência não.
Você não tem inocência não. Você tem muita é ladroice, safadeza e muita. Você me pegou no mato sem cachorro, com pouca experiência, fez do que fez, pegou o dinheiro do LP, comeu junto com a sua família e me deixou a ver navio.
Mas não vai pensar que eu vou morrer afogada não, eu nem vou pegar o navio não. Agora você vai se foder todinho. Quem é que tá morto? É eu? É ele!
O POVO – Mas, então, você deixou na mão do divino ou chegou a processar?
Lia de Itamaracá – Eu entreguei a Deus! Eu ia fazer o que num mato sem cachorro? Além de você não ter capital de giro, no mato sem cachorro, sem experiência de nada. Eu digo, sabe o que eu vou fazer? Eu entrego a Deus, mais tarde eu vejo o resultado.
Tô aqui! E ele se lascou todinho já. O dinheiro que era para pagar os direitos autorais de Lia serviu para eles mesmo. Adoeceram, os médicos tiraram uns pedaços do couro dele. Te fode para lá, não quero nem saber.
O POVO – E as músicas são suas, né?
Lia de Itamaracá – “Quem me deu foi Lia” justamente é minha. Tem música minha, tem música de compositores, o antigo Baracho, lá de Abreu. Mas, com tudo isso, será que essa neguinha não tem direito de nada, não? Dar 25 discos para quem gravou comigo ele achou que foi suficiente.
O POVO – E a senhora ainda tem esse disco em casa, guardado?
Lia de Itamaracá – Tenho. Muita gente que comprou nem dá, nem vende, nem empresta. Nem troca, que é de Maroca. Quem tem, não dá fim, não.
E está caro. Onde ele está é caro. Eu já vi ele no Rio de Janeiro por R$200. Faz as contas, neguinha. Eu digo: rapaz, tu estás com Lia guardadinho, né? “Tô, dona Lia”. Duzentinho! E Lia ganhou quanto? Um pacote de sebo.
O POVO – Você falou que em Itamaracá não é reconhecida devidamente e que vive viajando. Como é essa sua relação com o exterior?
Lia de Itamaracá – Maravilha. Por onde eu ando é “Lia chegou”. Não tem aperreio, não tem nada, nada. Me apresento, faço meu showzinho. Faço participação em shows de cantores. Tem um cantor agora, que é americano. Como é o nome dele?
O POVO – Jon Batiste?
Lia de Itamaracá – Hummm... Ah, bichim gostoso (gargalhada geral). Ele tá ali tocando comigo. Você viu? Ali foi uma participação de um show que eu vim fazer com ele no Rio e fiz outra participação com ele em São Paulo.
No Rio, ele tirou o pessoal todinho do palco para eu cantar, gravar uma música com ele. “Minha ciranda não é minha só”, ele solando e eu cantando. Muito bacana. O bichinho é molinho, é gostosinho, é fofinho, é gente boa.
O POVO – E para onde a sua música já lhe levou? Eu sei que a senhora já foi para França, Nova York. Algum desses lugares foi especial?
Lia de Itamaracá – Pro mundo todo! Foi porque eu não sonhava em encontrar esses lugares. Mas, quando cheguei, que me encontrei para mim foi glória. Miami! Eu sonhava nunca ir em Miami? Só ver o inhame.
O POVO – A senhora fez um show ano passado em Fortaleza com a Daúde, que é uma pessoa do pop. E a senhora faz essa música que chamamos de tradicional, que é o coco e outros ritmos. Como é esse encontro, essa mistura de linguagens?
Lia de Itamaracá – É uma menina muito boa. Nós duas juntas é sucesso. O pop dela serviu com a ciranda de Lia. Não teve “quiquiqui”, nem teve “cácácá”, nem atrapalho, não teve jeito. Me dei muito bem.
Eu a conheci no Rio. Muito amiga, muito amiga. Ficamos conversando, vendo o que vai interessar para a gente fazer depois. A gente vai se juntar para gravar um CD, eu junto com ela. E espero que esse ano já saia.
Eu vou ter que vir de Itamaracá para me encontrar com ela, para a gente gravar em São Paulo. É mistura de carimbó.
O POVO – E dessas parcerias, shows que você já fez com outros artistas, qual foi o mais marcante?
Lia de Itamaracá – Os mais marcantes que eu senti, de Pernambuco, Reginaldo Rossi. Tem o Agnaldo Timóteo. Aquele era gostoso. Pense num criolinho arretadinho. As músicas dele são deliciosas.
O POVO – Além desses, quais outros artistas você gosta de ouvir? Você ouve música em casa?
Lia de Itamaracá – Eu ouço. Meu esposo tem uma coleção de músicas de Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, Valdick Soriano. É tanto, é tanto que quando ele liga aquela radiola que bota para o povo escutar na rua, os caranguejo saem do buraco.
O POVO – Quem é seu esposo? O que que ele faz? Como vocês se conheceram?
Lia de Itamaracá – Ele toca comigo. É percussionista. Olha (pisca o olho), é na manteiga (ri). O nome dele é José Antônio. Eu conheci ele no Rio de Janeiro. Vim fazer um show, ele tocava numa banda de Recife. E nesse grupo que eu vim, ele tocava.
Aí, ele disse: “Lia, tu vai tocar com quem?”. Primeiro ele me viu pelo Fantástico. Viu a cena do sujeito, né? Ele disse: "Eu queria me encontrar com essa mulher. Eu ainda me encontro com essa mulher. Eu quero encontrar com essa mulher. Eu quero”. Lutou até que encontrou.
Vimos todos junto, fazer um show no Rio. A produção me bota num quarto sozinha, numa distância do cacete e mais três seguranças na porta. Vê a cena. E a produção disse: “Olha, não deixe ninguém entrar nesse quarto para conversar com ela. Não deixe. Não é para entrar em ninguém”.
Aí nós fizemos o show e viemos embora para o hotel. Eu entro e ele ficou de bombeando, bombeando, eu entrei. Aí ele cegou os seguranças! Que segurança do cacete é esse? Minha amiga, ó “os braço” do homem.
Esse sujeito entrou no quarto e o homem deixou? Menino, tu tava aonde? “Eu entrei aí agora”. E cadê os seguranças? “Tá tudo aí na porta”. Eu disse: é segurança, que caralho é esse? Aí ficou, conversa vai, conversa vem. “Olhe, você está conversando muito e eu vou tomar banho".
Aí eu tinha que sair para pegar uma toalha que eu tinha deixado dentro da minha mala. Eu gosto de levar minha toalha sempre. Ele entra! Eu digo: “Filho da puta! Você veio fazer o quê aqui dentro? Eu gritar pelos seguranças".
E ele: “Não, não, não! Todos homens não, mas sabe que tem uns que tem três cu e um de quebra”. E de conversa vai e conversa vem, eu, que nem uma “quenga véa”, besta, caí no lance do safado. Leva, pronto. Leva. Até hoje, 40 anos juntos.
O POVO – Quarenta anos juntos? Tem filhos?
Lia de Itamaracá – Não. Eu tive, mas não chegou a nascer não. Morreram logo, quiseram nascer não. Mas tá bom, tá melhor do que eu, né? Deus me disse: "É meu, deixa comigo".
Aí, também fui pro médico, o médico disse: "Esse doutor, eu não quero ficar de aborto não, visse? O que eu vou fazer com isso?”. Ele disse: "Eu vou lhe dar um remédio e se um dia a senhora embuchar e vir aqui, eu jogo meu anel (de formatura) fora”.
Depende do anel, né? Aí ele disse: “A senhora é muito audaciosa”. Você tá dizendo que joga seu anel fora? Que anel é esse? E ele disse: “É o anel que você bota no dedo”. Que mulherzinha engraçada.
O POVO – Mas você não tem vontade de adotar?
Lia de Itamaracá – Não porque não paro em casa. Quem vai criar essas crianças? Entenda meu lado. Deus está vendo.
O POVO – A senhora falou muito da cor do vestido ser para Iemanjá. A senhora falou agora que o seu filho que gostaria de ter foi do céu, né? Deus levou. Tô vendo que a senhora tem uma forte ligação com a religião. Qual é a importância da fé para a senhora? Em que a senhora acredita?
Lia de Itamaracá – Olhe, primeiramente Deus. Eu sou católica apostólica romana. Mas eu ser católica, não me empata em canto nenhum. E sou filha de Iemanjá, forte, fortíssima. Todo meu aperreio vou à praia e questiono a mãe. Pego um bocado de água (do mar), sacudo a cara e digo “mãe, tô pronta”.
O POVO – Mas você frequenta algum terreiro?
Lia de Itamaracá – Nada, nada, nada. A minha crença é dentro do peito. Vou à missa, vou, com certeza. Missa sim. A minha crença não empata em encanto nenhum, não empata em candomblé, em crente, não, não, não. Vou e respeito todas elas. E quero que respeite a gente também.
O POVO – Outra coisa que é impossível não perceber: seu vestido, seus colares, essa coroa na sua cabeça. Faz parte de quem é Lia de Itamaracá. Quero saber quem faz seus vestidos, o que você gosta de vestir.
Lia de Itamaracá – Só basta olhar para mim, o vestido está pronto. No Rio tem costureira que faz, tem Júlio César, de Natal. Tem Jane, do Rio.
Esse aqui (mostrando o que está vestindo) foi o irmão de Beto, meu produtor. O Milton Hees, de São Paulo. Eu gosto de roupa estampada, muitos babados, colares, aneis, perfume. Tu quer me dar um presente? Dá uma caixa de perfume bom.
O POVO – E quem está na nossa frente é a artista ou a mulher Lia de Itamaracá? A senhora se veste assim normalmente?
Lia de Itamaracá – Em casa é roupa normal. Roupa de show é roupa de show. Roupa de casa é roupa de casa. Roupa de praia é roupa de praia.
O POVO – A senhora falou que em Itamaracá não se sente tão valorizada, mas a senhora mora lá até hoje. Como é a sua relação com essa cidade?
Lia de Itamaracá – Tenho um amor muito grande e eles têm um respeito muito grande. De homem a mulher e criança, sai debaixo que é a rainha Lia. Falta é interesse dos gestores. Não é?
Não tem prefeitura? E por que que essa prefeitura, esses prefeitos que se elegem ou se reelegem, não olha para o meu lado? Eu tenho que me fazer sozinha.
Minha produção é muito boa, que me ajuda a fazer meu trabalho no mundo. E, com licença da palavra, mas, puta que pariu para quem não gosta de mim. E levando Itamaracá nas costas. Para onde eu vou é com Itamaracá. Um peso da porra, mas levo e trago.
O POVO – Você é carnavalesca?
Lia de Itamaracá – Não era não, mas meu esposo me fez. Quando o homem engana três seguranças na porta de um quarto... Esse homem tem poder, viu? Ai, mamãe, arroxe o nó.
O POVO – E, ainda sobre esses vestidos, a senhora é uma mulher vaidosa? Quantos vestidos a senhora tem em casa? Quantos vestidos a senhora tem em casa?
Lia de Itamaracá – Demais, demais. Guardo uns 100 vestidos em casa. Sim, cada show tem um vestido diferente. E eu me sinto muito bem, me mostro tanto, mas tanto. Eu gosto de todos, porque todos são bonitos e eu gosto.
O POVO – O texto que apresenta sua exposição chama a senhora de “símbolo da cultura popular brasileira” e fala que a ciranda é um “ato de tradição e resistência”. A senhora se vê assim, como esse símbolo da cultura brasileira e de resistência?
Lia de Itamaracá – Com certeza. Eu sustento ela até hoje. É uma resistência. É um símbolo de amor, de carinho, dignidade, respeito. E muito respeito.
O POVO – Ainda há esse interesse genuíno no ato de fazer ciranda?
Lia de Itamaracá – Minha amiga, se eu vou fazer uma oficina de ciranda, eu vou cantar. A gente tem os instrumentos, vai tocar, eles vão dançar e vão gostar. Eles vão ver como é que se faz uma ciranda. Você quer mais o quê?
O POVO – Quem mais faz ciranda assim que a senhora gosta?
Lia de Itamaracá – As filhas de (mestre) Baracho em Abreu Lima. Elas são filhas de cirandeiros. Mas ela faz o show também, canta, parece uma cigarra, canta bem para cacete, né? Os muitos que tinha pouco a pouco desistem. Tem uns que vão morrendo.
Quem fica não sustenta, deixa cair. Dona Selma do Coco tem as netas que eram para ser umas conquistas boas, danada, da cultura, levar o legado da mulher. Mas são todas “atabacadas” (equivalente a abestalhada), esperando acontecer o que não vai acontecer nunca.
Te vira, carai! Não é não? Tem tudo. A mulher faleceu, mas elas têm tudo. As músicas são muito boas e porque não se interessam? Eu não tenho para quem deixar.
O POVO – E sua sobrinha (Maria Salete do Nascimento), que está acompanhando a entrevista?
Lia de Itamaracá – Essa daí não canta mais, não. Se estivesse a filha dela já estava encaminhada, ainda mais comigo perto dela. Tinha dado para aprender uma letrinha. Agora a menina dela é uma capetinha danada, canta tudo.
O POVO – Qual seu sonho hoje?
Lia de Itamaracá – Eu já sou feliz. Gosto de ser feliz. E todo o meu sonho antes de eu morrer é conhecer a África. Minhas origens todas estão lá.
Ator da Globo
Quando a equipe do O POVO entrou no camarim onde aconteceria a entrevista, Lia olhou para o repórter e disse que ele parecia um ator da Globo, mas ela não lembrava o nome. Ao longo da entrevista, a questão voltou algumas vezes. No dia seguinte, por ocasião do show, foi aberto um encontro de dona Lia com a imprensa. Ao ver o repórter do O POVO, ela disse desapontada: “Rapaz, eu ainda não lembro o nome do ator”.
Vestido emprestado
Antes da entrevista, Lia de Itamaracá contou de uma certa feita em que uma Miss Pernambuco iria fazer um trabalho em homenagem a ela e pediu um de seus vestidos emprestados. “Primeiro ela vestiu, mas parecia que a roupa tinha sido feita para ela”, relembra a também pernambucana. A cirandeira, que emprestou a contragosto, detalha que a personalidade quase não devolveu o vestido. “Foi fazer o trabalho dela. Que trabalho é esse que a mulher demorou para devolver a roupa?. Aí eu fiquei: ‘Puta que pariu, essa mulher não vai dar minha roupa não’”, relembra Lia, com risadas. Por fim, a moça devolveu o vestido, segundo Lia “porque o cachorro foi atrás”.
Ciúmes
O ciúme com os vestidos é tamanho que a artista quase não cedeu os vestidos para a exposição “Lia de Itamaracá - Cirandar é resistir”, que ficou em exibição na Caixa Cultural até 11 de maio.
Grandes entrevistas