O cantor Daniel Peixoto fez da experimentação de si um hábito. Desde que fisgou o olhar público com fisionomia andrógina e vocal irreverente, em meados de 2005, se desdobrou em versões que seguem sendo descobertas e revisitadas. O cabelo loiro permaneceu e os figurinos foram utilizados como catarse de uma personalidade que desafia as normas.
Após finalizar trilogia solo ("Mastigando Humanos", "Massa" e "Tropiqueer") em 2023 com o arquétipo de marinheiro, ele reveste a faceta electro-punk para celebrar as duas décadas do duo Montage. Em um sentimento de deja vú, o artista reencontra um lado - mais rebelde, como considera - próprio em conjunto com Leco (sintetizadores) e a geração que ficou marcada pela sonoridade eletrizante alçada no início dos anos 2000.
Ouça ao álbum Tropiqueer, de Daniel Peixoto
Estes "personagens" pincelados ao longo da entrevista com O POVO formaram o menino que cresceu entre Crato, Fortaleza, São Paulo e Rio de Janeiro. Uma criança sonhadora, inspirada pelas músicas do universo pop, que acabou se tornando um jovem equiparado a David Bowie pelo jornal inglês The Guardian.
"Morderam a língua", afirma ao relembrar daqueles que chegaram a duvidar da carreira, que também abrange os ofícios de compositor, produtor e DJ. Com o traço da ambição, conquistou espaço na arte com ritmos que vão desde o eletrônico ao forró, sem, claro, deixar de utilizar o deboche para curar.
Hoje, celebra o encontro com o que já foi feito e garante seguir com olhos de paixão para o que virá: "Enquanto ainda tiver gente interessada, eu vou dizer".
O POVO - O Montage surgiu com uma sonoridade muito diferente para a época. Como foi desbravar o cenário musical como a primeira banda electro-punk do Nordeste?
Daniel Peixoto - Ká tocava como DJ na noite e queria fazer algo parecido com o Montage, mas não sabia exatamente o que era, porque o Montage foi se construindo muito sozinho. Queria fazer um projeto de música eletrônica, que fosse próximo da discoteca, algo que fugisse dos moldes de música ao vivo daqui.
A ideia era que fosse mais pop e, quando a gente foi fazer o primeiro show, entrou o rock e virou o que virou. Ficou mais pesado, mais agressivo, no ao vivo, de uma forma mais espontânea. A gente viu que funcionou e ficou reproduzindo aquele formato.
OP - Quais foram as casas que abriram as portas para vocês e como vocês conseguiram conquistar outros espaços numa época que não tinha rede sociais?
Daniel - As casas todas abriram, foi tipo um fenômeno. A rua José Avelino era cheia de clubs, nós tocamos em todos e fomos começando a desbravar para outros lugares. Foi aí que a gente furou a bolha do pop, do rock. Começamos a tocar em eventos institucionais, em festas de firma, em aniversários. Foi tudo muito rápido, sei lá, seis meses. Depois fomos embora e nunca mais voltamos.
OP - A ida para outras cidades foi uma escolha estratégica por ter mais o que explorar na música em comparação com Fortaleza?
Daniel - É, mas assim, a gente está falando de 20 anos atrás. A gente tinha essa necessidade de sair porque, nesses seis meses, a gente fez tudo que tinha para fazer e já estava se repetindo. Mas tinha demanda, ainda não tinha ficado sacal.
Percebi que a gente tinha que ir embora para conquistar novos espaços e, toda vez que a gente voltasse, pudesse ser recebido com essa grandiosidade, essa catarse. Fomos primeiro para o Rio, porque a minha família paterna é de lá e eu conhecia mais pessoas.
Foram surgindo convites para São Paulo, fizemos uma turnê longa, a gente voltou só para pegar as nossas coisas e nos mudamos para lá. Hoje eu não sei se existiria (a necessidade de mudança).
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A última vez que encontrei com o Silvero Pereira, ele começou a falar sobre isso, me dizendo que faz esse tanto de projeto e que escolheu morar aqui, porque não vê mais essa necessidade de ter que ir embora, abrir mão da sua vida, como era naquela época. De fato, era outra situação.
As redes sociais encurtam as distâncias, né? Naquela época, a gente tinha o Fotolog e o Orkut, que era um ensaio sobre o que a gente vive hoje em dia. Não tem comparação a escala e a demanda.
Ao mesmo tempo, converso com amigos daqui, que nunca tiveram essa experiência do morar fora, que parecem que continuam empenhados. Não sei se tem mais essa necessidade, acho é muito de querer ou não. Fui ver o show do Matheus Fazeno Rock em São Paulo, estava lotado, as pessoas estavam cantando e ele continua morando aqui.
OP - O atual cenário do eletrônico em Fortaleza é muito interessante, de uma música mais experimental, tem sido grande tendência na Cidade...
Daniel - Tem muita gente boa, acho que até de duas gerações já depois do Montage. Esse ano a gente fez muitos shows em Fortaleza e tive a oportunidade de conhecer e trocar com essa galera. Tem uma galera de 16 anos fazendo música na Cidade e fazendo direito, sabe? Arrasando.
Tem um menino que chama Gabriel, ele tem um projeto chamado BLOODYHE4VEN. Toca um hard techno, todo melado de sangue, super pesado, fora da curva. Acho incrível, sabe? Entre tantos outros. Fortaleza tem essa coisa da experimentação nesse universo. O mais interessante, olhando de cima, era algo que eu já observava lá quando comecei, mas que agora, apesar de ter uma conexão, não existe necessariamente um molde.
O Manguebeat, por exemplo, eram muitas bandas e todas tinham uma semelhança, ou um diálogo sonoro, visual, estético. E aqui não tem. Isso é muito legal. Tem um menino que eu acho maravilhoso, que a gente lançou um remix, chamado Dante. Ele é experimental, mais para um lado da MPB. Tem a galera do Berlim Tropical, uma pegada mais rock. Não é homogêneo, ninguém escorado no outro, sabe? Cada um brilha pelo seu próprio prestígio.
OP - Quando você fala sobre a experiência inicial com o Montage por Rio e São Paulo, o que vocês levaram de sonoridade para esses lugares ?
Daniel - Tem uma entrevista que fizemos num programa do Multishow com o jornalista Alex Antunes, e ele fala que, na época - ele usa o termo GLS, hoje a gente não usa mais - , a Montage era a banda GLS que Rio e São Paulo prometia há 20 anos e nunca tinha entregado.
Quando a gente chegou lá, tiveram as pessoas que abraçaram e acharam incrível o fato de nós estarmos descentralizados desse eixo obrigatório Rio-São Paulo-BH, e Brasília, no máximo. E teve uma galera que torceu o nariz. Como assim vai ser a galera do Ceará vai ser referência?
Na época, a gente tinha um boom das bandas de electro indie e electro rock. O Cansei de Ser Sexy já tinha acontecido, só que deu certo e foi para fora muito rápido assim.Ficou esse espaço no Brasil que poderia ter sido ocupado pelo Cansei, mas que eles estavam fazendo em outros países; A gente fez todo o circuito nacional, rodou quase todos os estados, conseguiu penetrar no Interior, era muito mais complexo.
Morderam a própria língua, porque fomos nós mesmo. Até hoje, sem querer parecer arrogante ou pedante, mas existem muitos outros projetos de música eletrônica, pessoas que saem da curva, mas não naquele molde do eletro punk.
OP - E o que foi feito há 20 anos continua muito atual…
Daniel - Quando a gente decidiu comemorar essas duas décadas, era para ter sido dois shows. Mas a gente continuou fazendo porque viu que tinha gente que estava afim, que tinha essa nova geração que nunca tinha visto. Começamos a revisitar o que tinha parado lá em 2009 e estava muito atual. É legal porque a música tem muito de releitura. O movimento de contracultura, onde a gente sempre se encaixou, ganhou outro papel de um tempo para cá.
Quando a gente começou, a gente achava que as pessoas iam achar mais natural. Mas pelo contrário, as pessoas ficaram mais caretas, mais conservadoras. O nosso discurso hoje é mil vezes mais pesado, mais agressivo. Isso é surpreendente, negativamente. A gente achava que o mundo ia andar para frente e demos alguns passos para atrás.
OP - De que maneira essa acensão da extrema-direita na política afeta artistas, principalmente LGBTs, no sentido de produção da arte, da recepção de público e circulação do material?
Daniel - Nossa, essa pauta é gigante. Quando a gente fala em direito, sistema de direito, a gente fala em quem financia a cultura. Você vai ver o top 50 dos aplicativos de streaming. Quem está lá? Por esse ranking você já consegue entender quem financia isso, qual é o campo político onde aquela pessoa está.
Dando um exemplo bem claro: aqui a gente está num governo de esquerda, da Prefeitura e governo do Estado aliado com o governo federal. Em São Paulo, onde vivo metade do meu tempo, é exatamente o oposto, né?
As eleições para prefeitura e governo do Estado eram os candidatos da direita que flertam com a extrema-direita, são apoiadores diretos do bolsonarismo. Isso se reflete no que está acontecendo. Os aparelhos de São Paulo estão sucateados, os eventos incríveis que existiam de Cultura foram descontinuados.
A Virada Cultural virou uma coisa completamente diferente do que era antigamente, mais violenta, mais segregada. Aqui, por exemplo, é outro aspecto, as pessoas tratam a cultura de outra maneira. Você viu o tanto de aparelhos novos que abriram nessas últimas gestões e como eles funcionam muito bem na Capital e no Interior. A diferença é bem nítida.
Quando você fala dessa segregação, não tem um meio-termo. A gente começa a sentir na imprensa, você consegue entender quais são os veículos que estão mais propensos a um diálogo com a esquerda ou com a direita. Se você não está dentro daquilo, você é limado. Os investimentos privados estão muito mais alinhados com à direita do que com a esquerda.
Então, a gente chega nesse Top 50 do Spotify. As pessoas que estão lá, são aliadas ao agronegócio, que é muito mais enveredado para a direita. Até nisso a gente tá jogando desigual assim.
Acho que o Ceará está anos-luz à frente de Rio e São Paulo com relação a como lidar com a arte, como tratar os artistas. Você vê que a cultura é tratada de uma forma para igual para independente de qual é o ramo.
Vejo muita gente nas periferias, nos aparelhos que são descentralizados desse circuito Aldeota - Praia de Iracema - Centro, como era há 20 anos. Onde está chegando, acho que fala muito sobre a política local que está sendo realizada.
OP - É uma diferença muito grande de 10 anos atrás?
Daniel - Olha, acho que sim. Os aparelhos tem coisas que foram muito legais nas gestões mais recentes. Sair da exclusividade da Capital e entrar no Interior, sou do Cariri, vou muito lá, e vejo que o Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo funciona como um catalisador de oportunidades.
E não só o Centro, mas a Beatos, fomos a Sobral. Também os editais, me inscrevo, nunca ganho (ri), mas vejo que tem, e eu acho certo, uma cota para o Interior, justamente para fomentar.
OP - Você começou a ter um contato com arte muito novo. Imaginava que estaria produzindo sonoridades como as que você produziu ao longo da carreira?
Daniel - Acho que em algum momento passou. Eu tô vivendo um deja vu artístico muito forte, assim. Uma revista foda de música elegeu “Ray of Lights”, da Madonna, o disco mais influente de 2005. É um disco de 1998, que eu ouvia muito quando tinha 13, 14 anos. Naquela época, eu já ouvia Prodigy, Chemical Brothers, Bjork. Imagina um disco de 1998 ser considerado o mais influente em 2005.
Por mais que eu morasse no Interior e o acesso fosse muito mais difícil do que hoje, que está na palma da mão, eu era muito antenado. Já tinha um direcionamento que procurei seguir e de, alguma maneira, acabei me encaixando naquilo. É muito louco, né? Essa coisa de você se permitir sonhar… As pessoas riam quando eu contava dos meus sonhos. Coisas que eram completamente impossíveis na minha cabeça e na das outras pessoas se materializaram.
OP - Tem uma valorização muito grande do "chegar no exterior". Fechar turnês foras e ser citado em veículos internacionais foi uma "revidada" também?
Daniel - Isso é massa também, quando a ambição deixa de ser algo pejorativo. Sempre fui apontado como alguém muito ambicioso e sempre via uma negatividade nesse adjetivo. Nunca achei que isso fosse um defeito, foi essa ambição que me levou a lugares tão longe.
Demos certo em Fortaleza, vamos dar certo em São Paulo, agora quero fazer uma turnê na gringa. Por mais megalomaníacos que possam parecer, são sonhos possíveis.
OP - Como reviver esses momentos faz você refletir sobre quando estava começando a se profissionalizar na música, saindo da adolescência?
Daniel - Uma das características mais massas que vejo em mim é a coragem. Quando você tem medo, automaticamente você começa a se bloquear. E o medo gera várias outras coisas que não são legais. Sempre fui muito destemido, as chances das coisas acontecerem são mais prováveis.
Eu e o Leco, nunca em um milhão de anos a gente imaginou que, depois de 20 anos, ainda tivesse pessoas que se interessassem por aquilo que a gente começou a fazer lá em janeiro de 2005 e mantendo um público fiel. As pessoas que envelheceram com a gente, mas também conseguindo dialogar com essa novíssima geração.
Também tem algo de olhar pelo retrovisor. Prego muito isso, dar os créditos a quem teve o pioneirismo, reconhecer quem veio antes.
Tem uma parte das pessoas que fazem cultura que estão começando a valorizar, entender que o novo é massa e que a gente precisa de uma história para ser contada. Atualmente, a gente tem trabalhado na independência, mas tentando procurar recursos para fazer isso dar certo, para fazer um documentário do Montage.
A gente acha que através desse documentário, a gente pode resgatar essa memória. Ao mesmo tempo, é uma maneira incrível de apresentar o que a gente fez, o nosso legado para novas gerações. Fizemos um roteiro, um esboço, e agora a gente está correndo atrás dos recursos públicos e privados para ver se a gente tira esse sonho do papel.
OP - Vocês chegaram a falar na entrevista que fizeram com O POVO em janeiro sobre novas músicas. Como está o andamento?
Daniel - A gente tem um monte de coisa nova pronta, só que a gente tem um disco perdido. O Montage passou numa transição da mídia física do MP3 para o streaming. Quando a era do streaming chegou, a gente tava num hiato. Os nossos discos só começaram a entrar no iTunes, no Spotify, nessas plataformas contemporâneas, lá em 2019.
Tem um álbum de 2008, a gente não queria lançar nada inédito sem antes colocar ele nas plataformas. A gente tinha esses arquivos, mas queria ver se achava uma qualidade melhor. Estamos tentando entender esse formato. A prioridade é seguir uma linha do tempo e lançar primeiro esse disco, que a gente quer que seja quanto antes.
Ouça ao álbum Mastingando humanos, de Daniel Peixoto
OP - Estar no meio do streaming é uma luta?
Daniel - São desafios. Quando a gente começou, a gente produzia material e jogava para download. A gente nunca gastou um real de impulsionamento, de marketing, era muito orgânico. Hoje é completamente impossível você competir. A internet foi nichando mais, essas bolhas já existiam e agora estão cada vez mais segmentadas.
O artista tem duas opções: entrar nessa briga de faca com o capital para disputar, aí o talento, o carisma, perde força. Ou você entende que você pode dialogar com aquela bolha e com as novas pessoas que podem vir a se interessar.
Tentar chegar ao top 1, 2 ou 10 como a gente conseguia lá em 2005, de uma forma orgânica, isso não existe mais. Ou você tem grana ou você está fora do jogo. Não é a minha prioridade estar no Top 50 do Spotify. Caguei, entendeu?
Prefiro muito mais fazer os meus shows, produzir as minhas músicas, dialogar com essa bolha que é fiel, do que estar tentando disputar com essa galera para se tornar uma artista gigante ou entrar no mainstream.
OP - Seus discos solos são uma trilogia. Como você analisa essa narrativa e o que cada disco representa?
Daniel - É legal essa pergunta. Quando a gente deu essa primeira pausa no Montage, em 2009, eu queria continuar fazendo música, mas alguma coisa que fosse o oposto do Montage. Não queria ficar rotulado como se eu só soubesse fazer aquilo ou como se eu estivesse à sombra da banda para o resto da vida. Poderia ter continuado com a marca sozinho, mas é um coletivo e representa aquela ideia.
A gente tinha entre nós, não era uma regra, mas não tinha a obrigação, de dialogar com a MPB. E quando comecei (no duo), tinha uma revolta, acho que natural da adolescência, que eu queria ser na contramão, não achava interessante as minhas raízes, as minhas referências. A trilogia do tropical bass foi por aí.
Depois que eu me distanciei, fui entender quão rico era o Cariri, o reisado, o maracatu, o frevo, o baião, o xote. É tão rico e tem tanta gente que se apropria, eu poderia fazer de uma forma genuína, porque bebi daquilo, cresci no meio daquilo.
Desde o primeiro disco eu já sabia que iria lançar três. E coincidência ou não, o ciclo fechou justamente na beira do Montage completar 20 anos. Eu já estava um pouco cansado, passei muito tempo fidelizando essa sonoridade e esse compromisso que eu tinha assumido comigo mesmo.
Quando comecei a fazer o primeiro disco, estava prestes a me tornar pai. São dois personagens diferentes: o Montage é tipo o diabinho e o solo é o anjo (ri). Tem isso do discurso mesmo. Eu estava mais preocupado com o que eu ia dizer para essa pessoa que eu estava colocando no mundo.
Se você presta atenção por essa lógica, o que lancei como Daniel tem um discurso muito mais humano, mais preocupado de falar sobre as coisas que ninguém quer falar.
OP - Mais sentimental.
Daniel - Total, mais sentimental e mais amoroso. Me permitindo sair desse personagem, da magnitude de estar sempre no topo. Tem uma vulnerabilidade maior e um recado.
Muitas músicas desse trabalho, eu fiz para o meu filho e tem umas que eu me orgulho demais, umas canetadas muito boas. “Permitida”, acho uma música foda, “Vivo Louco”. Olhando para trás assim, é um ciclo que se fechou. Agora que o meu filho já virou um rapaz, posso voltar ao que era antes.
OP - Tem uma discussão sobre a lacuna do pop brasileiro. Queria que você falasse um pouco da sua visão sobre o que está sendo produzido do gênero.
Daniel - É engraçado, essa pergunta é interessantíssima porque existem muitas discussões sobre isso, inclusive aqui no Ceará. Tem uma menina é muito talentosa, Camaleoa, a gente tocou na Estação e ela tem um discurso quase como se fosse uma bandeira: no Ceará tem pop.
Eu entendo de onde vem porque é de reafirmação. A gente sabe que as pessoas não têm memória muito boa e, para quem ela está contando isso, já não sabe quem é o Montage, que antes tinha a Karine Alexandrino, que lá nos anos 1970, na época da disco music, a gente tinha Miss Lene.
As pessoas falam que a Anitta trouxe o pop. A gente tinha a Gretchen, que é o suco do pop, Patrícia Marx, Débora Blando, Kelly Key, Patofu, Fernanda Abreu. Isso tudo é pop music, nos moldes que a gente tinha.
Com essa geração do pop da internet, as pessoas acham que tudo foi criado em 2009, que tem tudo no digital também. Por isso falo da importância de dar créditos a pessoas que foram pioneiras. Edson Cordeiro, Sandy e Júnior, são artistas pop.
Tem, agora, uma desassociação do gênero. O pop virou MPB. Marina Sena, Duda Beat, Juliette, são consideradas cantoras pop. Se elas fossem lançadas há 30 anos com a mesma sonoridade, elas seriam MPB. Virou uma bagunça, uma bagunça boa.
Eu acho massa, porque quanto mais você rotula, mais você segrega. A diversidade é legal, mas acho que as pessoas aplicavam a nomenclatura errado e algumas pessoas que são o pilar do pop que a gente tem hoje acabavam sendo esquecidas. Isso me incomoda como artista e como consumidor também.
OP - Tem uma série de obras e artistas consagrados que estão sendo relembrados de outra maneira, com cinebiografias e releituras, por exemplo.
Daniel - A releitura é interessante nesse sentido de poder apresentar (um trabalho) a um novo público. Estou muito feliz que a gente vai tocar no dia 23 com Faust Faust, a pessoa que inventou o eletro funk. Foi ele que pegou o funk carioca e botou uma guitarra em cima. Gerou tantos filhotes e tomou proporções internacionais.
A cultura e as artes, ao meu ver, têm muito do educar. Sempre achei que a arte é como uma cadeira de faculdade, aquilo sempre me interessou como política ou geografia. Tem que ser passado como uma informação valiosa e eu trabalho em cima disso, de mostrar para as pessoas o que eu faço, o que as pessoas que admiro fazem, e sigo muito nesse caminho.
OP - Hoje o que mais está te interessando explorar, dentro da produção e da performance?
Daniel - Estou numa fase criativa muito boa. É muito legal conversar com o Leco e o Paulinho, que são os meninos que tocam comigo, sobre essas referências e o que a gente tem para dizer hoje.
Estou muito entusiasmado para lançar porque são trabalhos que tem um amadurecimento por causa do tempo. Por isso me interesso em dialogar com as novas gerações, ainda tenho muita coisa a dizer e, enquanto tiver gente interessado, eu vou dizer.
OP - Você vem falando muito sobre facetas. Como a chegada do seu filho te transformou?
Daniel - Todo aquele clichê de paternidade, é tudo verdade. Eu e a mãe dele, a gente optou por ter esse filho. Quando você deseja e faz por onde, tem uma criação completamente diferente. Eu tinha um cuidado e uma preocupação de que ser humano vou colocar nesse mundo, já tá tão conturbado. E no que esse mundo o vai transformar, porque a gente sabe que não tem controle sobre tudo.
Eu e a mãe dele fizemos um trabalho muito massa. Meu filho tem 16 anos, é um cara massa, super inteligente, tira notas boas, é culto, um cara sensível. Esse meu medo de algo corromper, hoje já tenho uma tranquilidade muito maior, porque, enfim, deu tudo certo. Mas foi incrível, me mudou como pessoa e me tirou de lugares obscuros.
Eu vivia muito sobre o dia de hoje, não pensava no amanhã. Fui disciplinando ele e, ao mesmo tempo, eu também. Me tornei uma pessoa melhor, mais disciplinado, correto, responsável, para me tornar um pai massa assim como os meus. Fui criado com tanto amor, com tanto acolhimento, que consegui reproduzir como uma forma de educação .
OP - Em 2019 você deu uma entrevista para O POVO falando sobre o diagnóstico de artrofia cerebral. Como o diagnóstico moldou seus hábitos e como você lida com a condição atualmente?
Daniel - Quando eu recebi o diagnóstico, o médico falou assim: “O seu cérebro é, pelo menos, 20 ou 30 anos mais velho do que o restante do seu corpo”. O que isso quer dizer? Que eu poderia caducar a qualquer momento. Tive que dar uma atenção a isso.
A gente chegou no diagnóstico por uma série de convulsões que eu tava tendo sem explicação plausível. Quando você tem a convulsão, você perde alguns neurônios que nunca mais vão se recompor.
Fazia esse monitoramento a cada seis meses. Com o tempo, fui conseguindo evitar essas crises. Passei todos esses anos sem ter uma crise. Ano passado eu tive uma crise, justamente numa janela que comecei a descumprir as recomendações médicas: malhar todos os dias, ter leitura, fazer xadrez, palavra cruzadas, tudo isso que estimule o cérebro e a memória.
Ano passado a Madonna veio ao Brasil e eu passei uma semana sem conseguir dormir. Tive uma crise de convulsão e ainda bem que estava na casa da minha família no Rio.
É um minuto que eu não durmo bem ou não como bem, já começo a sentir que o corpo dá sinais, não é de uma hora para a outra. É muito ruim, o retorno à consciência depois de uma convulsão é muito ruim.
Noto que a minha memória não é mais a mesma, mas diante do que foi dito para mim na primeira pessoa, eu achei que ia estar completamente gagá, e não aconteceu. Eu estou bem, não perdi as memórias de infância, da minha juventude.
Sigo monitorando, não tem cura. Tenho que aprender a conviver com isso, mas não tem como voltar. O tratamento é para estagnar. Enfim, estamos aqui, até quando eu conseguir lembrar das minhas próprias músicas.
OP - E fora a recomendação médica padrão, o que você considera essencial para se manter bem?
Daniel - Sou capricorniano, amo trabalhar. Quando não estou focado show, estou atuando como DJ, trabalho com outros artistas produzindo. Mas trabalhar é o que me dá tesão, independente do que seja, seja tocando.
OP - Dentro dessa esfera de sonhos que você mencionou no começo da entrevista, o que mais tem dentro?
Daniel - Sou tão confortável dentro dos sonhos que já realizei. Eram coisas tão intocáveis para aquele meninozinho lá do Crato que tudo o que faço hoje é pelo meu mais absoluto prazer. Não sou preguiçoso, mas estou deixando muito mais a vida me levar do que aquela ambição que mencionei.
Não preciso mais ter essa obsessão de chegar em lugares, porque já fiz as coisas que queria, já dei o recado que tinha para dar. O que quero é perpetuar esse legado dentro das minhas possibilidades.
Depois de 20 anos dentro do pop, que é o mais descartável de todos os estilos musicais, eu ainda estar aqui, ter espaço num veículo tão importante, já estou vitorioso. Não preciso mais estar disputando um lugar como quando comecei. Estou relaxando e gozando do que já fiz. O que faço hoje é para quem quiser. E se não quiser, tudo bem, pode ir lá no Top 10 do Spotify.
OP - É um ótimo lugar para estar, não?
Daniel - Vejo alguns colegas contemporâneos meus que estão nessa disputa e eu não quero disputar mais nada com ninguém. Quem quiser que acompanhe, quem não quiser que siga o baile. E tem quem queira.
As pessoas ainda se interessam e isso sempre foi meu foco: fazer meu trabalho, mesmo que seja para três milhões de pessoas, como já tocamos na Avenida Paulista, como num clube para 60 pessoas.
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