Seca histórica no Amazonas, enchentes trágicas no Rio Grande do Sul, seca nos páramos colombianos e o desabastecimento de água em Bogotá, ondas de calor fatais na Europa, refugiados climáticos das ilhas Carteret, na Papua-Nova Guiné. O que interliga todos os locais desta lista (muito maior) de extremos climáticos? Os combustíveis fósseis.
Pensou que a resposta era mudanças climáticas, certo? Com toda razão. Mas a crise climática é justamente uma consequência da exploração e uso desenfreado de combustíveis fósseis, aliada a outras atividades humanas que emitem toneladas de gás carbônico (CO2) e gases equivalentes (CO2eq) na atmosfera.
Principalmente após a Revolução Industrial, com o uso das máquinas a vapor, o planeta viu a sua temperatura aumentar em uma rapidez inédita. Já atingimos pelo menos
“A transição energética não é nada mais do que mudar sua matriz de energia”, resume a física Marina M. Mendonça, professora e divulgadora científica. O termo surgiu nos anos 1970 com a crise do petróleo, quando as nações mundiais se viram na necessidade de ter alternativas para a produção e consumo de energia que não dependessem apenas da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep).
No entanto, foi com os acordos internacionais pelo clima das últimas décadas, promovidos pelas Conferências das Partes (COPs), que a transição energética encontrou a sua real demanda. Mudar as matrizes energéticas vai muito além da finitude do petróleo e das relações econômicas entre os países: ela é a única maneira de frear a escalada da ebulição global.
É uma tarefa difícil que já deveria estar bem planejada para dar frutos satisfatórios. “A gente tinha que ter resolvido já, ou pelo menos estar vislumbrando o caminho”, pondera Marina. “Nós já estamos atrasados. Mas cada centésimo de grau importa e não dá para pensar na transição energética isoladamente.”
Enquanto isso, há o desafio de garantir a transição energética justa: aquela em que os impactos socioambientais são reduzidos e a implementação das usinas de energia é feita com transparência e com participação constante e íntegra das comunidades envolvidas.
A transição energética envolve pelo menos quatro aspectos:
Produção de energia elétrica
As usinas eólica e solar são as mais aceitas como energias verdes. Outros tipos de matrizes energéticas, discutidas durante o especial, são: hidrelétrica, termelétrica, nuclear e biomassa. A física Marina Mendonça reforça que nenhuma energia é totalmente limpa, mas há aquelas “menos sujas”, com impactos ambientais ou riscos/danos de acidente menores.
Uso de energia no transporte e em indústrias
Outro ponto de discussão é o uso de combustíveis fósseis no transporte. Alternativas como carros elétricos, ou biocombustíveis e o etanol entram nas discussões sobre transição energética. O uso de energia nas indústrias também é sério: mesmo as usinas verdes (eólicas e solares) precisam do petróleo no processo de construção dos materiais.
Eficiência do consumo de energia
É preciso desenvolver tecnologias e máquinas que consumam energia com mais eficiência, usando menos para trabalhar mais. Isso vale para todos os tipos de maquinário, desde os domésticos aos industriais.
Diminuição do consumo de energia
Mesmo com a transição para energias com menor impacto ambiental, ainda é necessária uma mudança de hábitos da sociedade (principalmente empresas e indústrias) para consumir menos energia no cotidiano.
Em geral, as usinas eólica e solar são as mais aceitas como energias “limpas”. O uso das aspas é porque, como reforça a física Marina Mendonça, nenhuma energia é totalmente limpa, mas há aquelas “menos sujas”, com impactos ambientais ou riscos/danos de acidentes menores.
A energia nuclear é um ótimo exemplo dos limites de “limpeza” da produção energética. O engenheiro elétrico Paulo Carvalho, professor na Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que a fonte de energia do empreendimento é a fissão nuclear (a quebra do átomo). “É um processo controlado de fissão que libera calor, aquece a água e aí produz vapor”, descreve.
“O grande problema é que, com a operação normal, todo o material que entra em contato fica radioativo e dura 50 mil anos para perder a radioatividade. Então os resíduos radioativos precisam ser depositados em algum lugar, e isso envolve muito dinheiro”, reflete. Além disso, os danos causados por acidentes com energias nucleares são enormes — mesmo que o risco do acidente ocorrer seja baixo, a consequência caso ocorra é gigantesca.
No Brasil, apenas o Rio de Janeiro tem usinas nucleares em funcionamento, em Angra dos Reis. Há, no entanto, interesse em explorar o urânio no Ceará, com as usinas de Santa Quitéria. Na opinião do professor Paulo, o uso das energias nucleares deveria ser considerado apenas como última opção. “O potencial solar e eólico do Ceará é muito maior que a demanda. Não justifica usar nuclear”, defende.
Eólica
Beneficiam-se em regiões litorâneas e serranas (onshore), assim como no oceano (offshore). No entanto, há desafios técnicos no armazenamento de eletricidade, dependente da intensidade e constância dos ventos. Os impactos ambientais são preocupantes, tanto pelo barulho, quanto pela fragmentação do habitat.
Solar
As placas solares funcionam muito bem na produção própria de energia, estando nos telhados das casas ou em pequenas usinas. No entanto, são caras e demandam ampla mineração para serem produzidas. As chamadas fazendas solares também têm impacto ambiental, por desmatar grandes áreas.
Biomassa
A biomassa pode ser uma boa opção para auxiliar a transição em si. Usa o bagaço de cana de açúcar como combustível para máquinas à vapor. O ato da queima emite CO2, mas há estudos indicando que a quantidade emitida seria a mesma absorvida pela cana de açúcar em vida, equilibrando a conta de emissão/absorção.
Nuclear
No Brasil, poderia ser uma das últimas opções de energia, mas é uma aliada para outros países, A fissão nuclear pode até ser limpa, mas os resíduos radioativos são um problema logístico e ambiental. Além disso, preocupa os riscos e danos de possíveis acidentes nucleares. Também exige mineração.
A transição energética não deveria ser um grande desafio para o Brasil. O País tem produção de energia diversificada e autossuficiente, com parcelas consideráveis de energias renováveis.
O setor elétrico brasileiro foi construído por meio das hidrelétricas ao longo do século XX. Elas são responsáveis por 54% da potência energética produzida no País, mesmo sem superar, em número de empreendimentos instalados, as usinas à base de combustíveis fósseis e as solares.
Os dados são do Sistema de Informações de Geração da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel/Siga), atualizados em 1º de maio de 2024, e consideram apenas os empreendimentos em operação.
A energia hídrica tem vários poréns. Apesar de o Brasil ser rico em fontes de água, agora entende-se que o recurso é finito, pondo em cheque o funcionamento constante das usinas. Além disso, as hidrelétricas causam muitos impactos ambientais ao barrar o fluxo natural dos rios.
No entanto, o que realmente forçou o País a expandir a matriz foi a crise do apagão dos anos 2001 e 2002, quando 89,6% da energia elétrica brasileira vinha das hidrelétricas. Os anos 2000 foram de poucas chuvas e poucos investimentos em produção, armazenamento e distribuição de energia. Os fatores culminaram na escassez elétrica entre 1º de julho de 2001 e 19 de fevereiro de 2002, que só não afetou a região Sul e parte da região Norte.
Para garantir a segurança elétrica, o presidente Fernando Henrique Cardoso aprovou, por meio do Ministério de Minas e Energia (MME), o Programa Prioritário de Termelétricas (PPT). Foi assim que o Brasil ganhou mais uma matriz energética, à base de combustíveis fósseis.
O intuito inicial, explica Cristina Amorim, coordenadora do Plano Nordeste Potência, era que as termelétricas fossem ativadas apenas em épocas de escassez hídrica. Com o passar dos anos, no entanto, o funcionamento virou constante, o que caracterizou uma "regressão energética" em relação à decarbonização da energia elétrica brasileira, analisa Cristina.
Já as fontes renováveis esticaram-se pelo mapa brasileiro apenas nos últimos 15 anos, com a consolidação das eólicas e das usinas solares. Enquanto a primeira usina eólica a entrar em operação no Brasil o fez em 1994, na cidade de Gouveia (MG), a primeira usina solar foi instalada em solo cearense em 2011, no município de Tauá.
Porém, a exploração de combustíveis fósseis ainda é um interesse econômico brasileiro, apesar dos discursos pró-climáticos em púlpitos internacionais. O próprio ministro de Minas e Energias do Brasil, Alexandre Silveira, defende a exploração do petróleo (inclusive na Foz do Amazonas) até alcançar o “IDH dos países industrializados” e para financiar a transição energética.
A ideia de explorar mais petróleo para investir na transição é contraditória. “Ele está ignorando que a gente tem pressa para fazer a transição energética. E essa necessidade da transição não é pela finitude do petróleo, mas pela quantidade de gases de efeito estufa que a gente tem jogado na atmosfera e como é justamente isso que está aquecendo o planeta”, reforça a física Marina Mendonça.
Ou seja, abrir novos poços de petróleo, inclusive em áreas sensíveis como a Margem Equatorial, vai na contramão dos esforços para frear a crise climática. Ainda que seja inviável — até em termos contratuais — parar imediatamente o funcionamento de todas as usinas à base de combustíveis fósseis, o fato é que nenhum desses empreendimentos deveriam continuar sendo inaugurados.
“Essa é uma das tensões da transição energética no Brasil”, explica Cássio Carvalho, engenheiro eletricista e assessor político. “Os governos ainda entendem que a exploração de combustível fóssil é fonte de renda pro País, mas daí a gente olha pro Rio de Janeiro, todas as cidades que recebem royalties do pré-sal, e sabe-se que as coisas não funcionam exatamente como se desenha”, comenta.
Cássio lembra que o pré-sal vinha com a promessa de desenvolver o Rio de Janeiro, usando os lucros para investir na educação do estado. “Nada disso se concretizou, o lucro do pré-sal vai para acionista e não para o desenvolvimento do País. O pré-sal não transformou o Rio de Janeiro nas mil maravilhas, muito pelo contrário, eu acho que ele trouxe mais problemas sociais.”
Cássio é assessor político no Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e participou de um estudo que indicou o crescimento dos subsídios aos combustíveis fósseis em 2022, último ano do governo Bolsonaro. “Não há transparência dos estados brasileiros sobre os incentivos fiscais para as matrizes energéticas”, comenta.
Por isso, o instituto solicitou por Lei de Acesso à Informação (LAI) os dados relacionados e criou a estimativa de subsídios. “O governo brasileiro que deveria fazer essas estimativas”, aponta. Os anos analisados foram de 2018 a 2022, pois ainda faltavam dados sobre 2023.
Os pesquisadores identificaram que os combustíveis fósseis brasileiros receberam cinco vezes mais subsídios que a transição energética. É dizer que os contribuintes brasileiros estão pagando pela exploração de combustível fóssil tanto para a produção de energia, quanto para o consumo dela.
“Em 2022, R$ 80,9 bilhões deixaram de entrar ou saíram dos cofres públicos na forma de subsídios aos fósseis concedidos pelo governo federal – valor 20% maior em relação a 2021 (R$ 67,7 bilhões) –, enquanto o montante para financiar a energia renovável foi de R$ 15,5 bilhões em 2022”, diz o estudo.
Entre 2018 e 2022, os incentivos às fontes renováveis cresceram de R$ 10 bilhões para R$ 15 bilhões no mesmo período. O maior subsídio às fontes renováveis é o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfra). No total, as fontes renováveis receberam R$ 60 bilhões em subsídios, maior parte (R$ 57,9 bi) destinada à produção.
Ocorre que 48% dos subsídios às renováveis são financiados pela conta de energia paga pelos consumidores. “Isso significa que a energia renovável, além de desfrutar de subsídios cinco vezes menores que os de origem fóssil, ainda tem uma parte importante (46,4% do total) custeada pelos consumidores”, aponta o Inesc.
O instituto também lançou um relatório em 2024 apontando como o governo federal também beneficia os combustíveis fósseis no orçamento público. Ao analisar o Plano Plurianual (PPA) do governo Lula 3, os pesquisadores identificaram a destinação de R$ 0,5 trilhão para os combustíveis fósseis, enquanto para a transição energética, apenas R$ 937 milhões.
“Acontece que esse meio trilhão vem de um programa com dinheiro em caixa, enquanto os 900 milhões da transição são recursos não orçamentários”, descreve Cássio Carvalho. A previsão é que as eólicas serão subsidiadas pelos bancos, o que não significa que o MME terá dinheiro para projetos.
De acordo com Cássio, para realmente implementar uma transição climática justa, encaixada com os objetivos globais de reduzir a emissão de gases de efeito estufa, alguns subsídios para os combustíveis fósseis não deveriam existir. “Por exemplo, as termelétricas a carvão mineral no Sul. Nós contribuintes que pagamos os subsídios para isso ser produzido”, critica.
Já no Planejamento Orçamentário Anual de 2023, o governo considerou 500 mil reais para a distribuição de paineis solares para produção própria; mas, segundo Cássio, o dinheiro não foi gasto. “A fonte solar está crescendo apenas em uma camada da sociedade. As pessoas pobres não têm condições para fazer isso”, pontua o pesquisador, indicando como a aplicação do orçamento previsto ajudaria a reduzir a
Fato é que imaginar um mundo sem energia parece impossível. Rodeados por equipamentos eletrônicos e inseridos quase obrigatoriamente em uma vida digital, não ter acesso à eletricidade é estar aquém do mundo, é viver em pobreza energética.
O Brasil carece de dados sobre o cenário nacional de pobreza energética, o que torna difícil estabelecer quantos cidadãos em áreas urbanas e rurais têm vivido sem acesso básico à luz. A expectativa é que até setembro de 2024 a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o Ministério de Minas e Energia (MME) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) conclua o projeto Tecendo conexões, uma ferramenta para integrar dados sobre pobreza energética no Brasil e subsidiar ações de combate à desigualdade no acesso à energia.
A mineira Cecília Mendes se deparou com a pobreza energética em 1996, quando se mudou para o sertão do Piauí com o marido em uma comunidade ainda sem luz. A energia era provida por um motor que desligava às 21h em ponto; à noite, o lampião alumiava a casa, e só havia telefone fixo em um posto, usado para vez em quando conversar com a família de Minas Gerais.
“Era complicado porque a gente não podia ver uma televisão, não tinha como saber notícia direito da vida”, relembra Cecília, professora do ensino fundamental. “Teve uma época que minha mãe ficou doente e eu não tinha como saber notícia (sic). O telefone tinha dias que não funcionava, eu fiquei dois meses assim, sem saber notícia da minha mãe. Foi a época que eu fiquei muito doida, sabe?”
Desde a chegada ao Piauí, Cecília morou em três municípios diferentes, todos sem energia elétrica — coincidentemente, toda vez que ela se mudava, a comunidade antiga era abastecida com luz. Atualmente, ela mora na comunidade Olho d’Água, no município de Buriti dos Montes (PI), próximo ao Parque Estadual Cânion do Rio Poti, fronteira entre Ceará e Piauí.
Foi somente em 2011, quando um colega deu ao casal uma placa solar e uma bateria, que Cecília voltou a ter luz em casa. De lá para cá, conseguiu energia suficiente para as lâmpadas, para a televisão e também para instalar internet. O objetivo agora é economizar dinheiro para adquirir uma nova placa solar e, finalmente, ter uma geladeira.
“A gente compra geralmente carne salgada, coisas assim. Quando precisa, a gente deixa na casa da família. E a água é de filtro de barro; essa eu acho bom, já acostumei”, comenta sobre o manejo com a alimentação. Ela mora em uma fazenda com três casas, a dela, a do cunhado e a do sogro; todas funcionando à base de energia solar.
O preço de cada placa solar está por volta de R$ 1.200, enquanto a bateria vale cerca de R$ 900. “A última placa que eu comprei foi com um amigo da gente, então foi esse preço. Aí tem que comprar outra bateria, que dura só dois anos. Às vezes dura mais, às vezes menos; depende da bateria.”
A família também está dedicada a demandar da Equatorial Energia, responsável pela distribuição de energia no Piauí, a celeridade na expansão energética na comunidade. Porém, mesmo que a eletricidade chegue, Cecília reforça que continuará com as placas solares: “Eu sou satisfeita com o que eu tenho, mas a gente precisa de energia para os alimentos, precisa de energia para tudo, né?”
Há 13 anos vivendo graças à energia solar, a família de Cecília também representa um momento singular para o Nordeste na história brasileira. Se antes a região foi talhada em preconceito como um problema para o Brasil, hoje ela é a menina dos olhos de um País que almeja liderar a transição energética mundialmente.
>> o próximo episódio, a ser lançado dia 21 de junho de 2024, vamos explorar o Nordeste de sol e vento e entender porque a região é um hub latinoamericano na transição energética, sem deixar de questionar as tensões socioambientais por trás do desenvolvimentismo energético.
A reportagem usou dados disponibilizados pelo Sistema de Informações de Geração da Agência Nacional de Energia Elétrica (Siga/Aneel), atualizados em 1º de maio de 2024. Os dados apresentados nesta reportagem consideram apenas o filtro “Em operação”. É possível baixar os dados em planilha no Siga/Aneel.
Nesta série de reportagens especiais, O POVO+ explora a transição energética no Brasil, Nordeste e Ceará a partir dos potenciais climáticos e econômicos e, principalmente, a partir das tensões socioambientais na implementação de matrizes energéticas renováveis