Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações
Farão saudades e se derem ousadia, cantarei carnavais para o "moço bateau", doutor Pinho, dona Pipi e dona Anália. Desejo rebrota na existência de vocês
O mar tem saudades, o amar também. Do rapaz que deslizava em seu barco atrás de ventaneiras e nos ventos chuvosos de fevereiro, dos inexplicáveis, partiu. Um silêncio tão estranho quanto se faltarem pássaros todos, um possível, na Fortaleza malcuidada. Sebastião também era mar.
Antes do fim de fevereiro não navegava mais. Nunca foi um afogado, mas a respiração deu sinais de ausências. E o mar tão cheio de pulmões!
Foi um assombro! Feito se arrepiar ao ser observado por um peixe-lua, bem encostado. Bicho mais diferente do que a baleia, digo da manifestação do desconhecido. De não se saber sobre o que pode existir. Talvez não valha a comparação, queria apenas definir a estranheza com o inescrutável.
"Tudo daquele planeta, o mar não é da Terra, é alienígena"
Tudo daquele planeta, o mar não é da Terra, é alienígena. O rapaz barco que, calmo, tinha quintal no mar, terreiro de criaturas de água e sal, sereias inimagináveis e medonhos verdadeiros... Por acaso, o "moço bateau" se despediu um dia depois de completar aniversário.
Uma falta de respiração insistente, dias amuados, rotinas em looping e léguas e léguas do mar. Um câncer no abissal do incompreensível, 50 e poucos anos. Um medo! Semelhante se padecessem famílias inteiras de árvores na Cidade oxigenada pelo Atlântico.
É covardia escrever depois das partidas, nunca mais havíamos cruzado no continente. Por último, a despedida de sua mãe, dona Marilza. Leitora da coluna. E antes, quando até as pedras se encontram nos percursos, minha Sarah namorou Guilherme - filho de Ana, irmã de Sebastião, e que se foi também moça há alguns anos com câncer.
"O amor também mora no tempo dele"
O amor é habitat dos mistérios. Talvez. Cheio de constelações indecifráveis e criaturas sem nomes. O amor... quando encontramos, você sabe as profundezas e, mesmo assim, arriscamos perder o fôlego para vivê-lo. O amor também mora no tempo dele.
Sobre as despedidas, fui à outra na última semana. E imagino o tamanho da saudade por doutor Pinho. Um ser vivo do bem e que teve, talvez, o privilégio de se retirar nas biqueiras de inteirar 107 anos de existência.
Despediu-se numa lucidez assustante. Claro, o corpo centenário já o desobedecia, mas a conversa tinha prumos e memórias preservadas. Contou-me, numa entrevista nas Páginas Azuis do O POVO, que, provavelmente, havia recebido sopros de quem teve a vida salva por ele, um farmacêutico-médico de Viçosa do Ceará.
"Por mim, imaginei uma grande festa para o desenredo de doutor Pinho"
Filho de família endinheirada, de farmacêuticos pioneiros nos longes de Ibiapaba, abriu em um dos casarões dos Pinho um hospital de campanha para tratar do "mau do buchão" e atalhar a morte.
Por mim, imaginei uma grande festa para o desenredo de doutor Pinho. Merecia por sua persistência em viver 107 carnavais, mas ele anunciou que não passaria do dia 22 deste fevereiro mais que chuvoso em Viçosa. O corpo já era seu conforto.
"Quase levo um vinho (e um caju verde do Mulungu) para colocá-los entre as flores de monsenhor de seu barco"
Não sei se doutor Pinho era chegado ao carnavalesco, mas um samba enredo merecia homenageá-lo pelo que fez por aqui. Descobriu o calazar e o enfrentou manipulando fórmulas e alimentando miseráveis. Não é pouco.
Tenho quase a compreensão de que o desenlace de doutor Pinho foi leve. Semelhante à dona Pipi, uma amiga de 97 anos com uma poupança rendosa de risos e alegrias. Quase levo um vinho (e um caju verde do Mulungu) para colocá-los entre as flores de monsenhor de seu barco. Ela iria rir.
Imagino, tenha sido suave também o descanso de dona Anália Ribeiro, uma leitora generosa (e elegante) da coluna. Foi-se há alguns dias. Falei com ela quando completou 100 carnavais, ano passado.
Farão saudades e se derem ousadia, cantarei marchinhas para o "moço bateau", doutor Pinho, dona Pipi e dona Anália. Desejo rebrota na reexistência de vocês.
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