Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações
Não é exagero dizer que a maior parte das escolas particulares e públicas não consegue desconstruir a fábrica de machistas urdidas na família e na rua. Difícil desfazer meninos que, com o passar do tempo, se transformam em machos abusivos. Há escolas que nem tentam trabalhar com desaprendizado assim.
Vivi, feito milhões de alunos e alunas, muitos anos de minha existência em três escolas. Duas católicas e uma militar. Há o que elogiar, sim, nas duas religiosas. Na militar, não. Mas no resumo do enredo, as três formaram, na constância, indivíduos machistas. Mulheres também.
É uma fábrica de machismo, mas há exceções preciosas de professoras, padres, irmãs e funcionários que brigam contra o senso comum da cultura da masculinidade tóxica. Talvez, quem dera, pudesse existir urgente uma escola para os pais e as mães. Desaprendê-los.
"Por laboratório para a escrita, resolvi acompanhar alguns alunos autistas e típicos"
Pois bem, há alguns anos, uma editora - a IPDH - instiga a mim e minha irmã, Nukácia Araújo, a escrever livros paradidáticos para se desaprender sobre o machismo, a misoginia, a homofobia, o racismo, o bullying e outros preconceitos perpetuados.
Por laboratório para a escrita, resolvi acompanhar alguns alunos autistas e típicos da família. Observar e anotar o que traziam e levavam de discussões e demandas sobre intolerâncias perenes escorridas da casa para escola, da escola para casa. E da rua.
Surpreendi-me na última semana com o ápice de uma enxurrada de preconceitos contra um estudante autista que resolveu "testar" o tamanho do preconceito dos "colegas" contra alguém que se reconhece homossexual. Em uma escola católica.
"A conversa em família, sobre homofobia, foi motivada por piadas machistas"
A primeira surpresa foi a iniciativa dele. Voluntária e, provavelmente, depois de discussões em casa sobre a homofobia. Ele é autista do espectro 1, verbal e tem 12 anos.
A conversa em família, sobre homofobia, foi motivada por piadas machistas que ele trouxe de papos preconceituosos entre meninos e meninas do colégio. Pelo menos dez "colegas".
Um dia, numa discussão na escola, ele resolveu dizer que era gay. E, por causa da reação violenta dos pré-adolescentes, argumentou dizendo que o problema não estava na orientação que, supostamente, ele assumiu. E, sim, na perigosa intolerância dos "amigos". É uma interpretação minha.
"Isso não pode ser minimizado como "coisa de menino, de criança ou adolescente""
Túlio - me disse - escreveram atrás da minha cadeira: "cu grátis". Também desenharam um pênis e, ainda, numa partida recreativa de futebol, alguém gritou: "molesta ele". E alguns o seguraram por trás e, sem tirar suas roupas, encenaram um estupro. Grave.
Isso não pode ser minimizado como "coisa de menino, de criança ou adolescente". Assim se produzem os machistas, os homofóbicos, os que agridem mulheres, matam gays, os feminicidas...
Por agora, reproduzo o diálogo entre ele e outro pré-adolescente que levou os pais a tirarem-no da escola, temporariamente. Um detalhe: como boa parte dos autistas, ele é literal no discurso. Segue, sem alteração, a conversa escrita pelo estudante atípico:
"Precisa sim, tu acha mesmo que Deus criou homem pra homem e mulher pra mulher?"
"Eu e o B estávamos um empurrando o outro e ele me chamou de merda. Eu falei assim: vai, come lixo seu merda. Você não é o bichão, machão?". Ele falou: eu sei, sou hétero e macho, seu merda. Diferente de você, seu gay, eu sou de Deus".
"Aí, eu falei: não precisa ser hétero pra ser de Deus. Ele falou: Precisa sim, tu acha mesmo que Deus criou homem pra homem e mulher pra mulher? Eu falei: Mas já tem tanto homem namorando mulher, por que não pode namorar gay?"
"Eu falei: Não vou para o inferno. Ele falou: "Cara, tu não reza, não acredita em Deus e só fala merda e é um gay".
"Então, a gente ficou um dando um tapa um na cabeça do outro. Uma hora eu falei: Se você vai para o céu, prefiro ir para o inferno. Aliás, você vai para o céu nos seus sonhos, porque na verdade, você vai para o inferno, pois Jesus respeita gay, ateu etc. Ele falou: Foda-se".
"Durante a aula, o "C" e o "D" ficaram fofocando de mim e o "J" falando que sou gay e que vai enfiar a gigantesca cabeça dele na minha bunda, que vai enfiar a pica dele em mim".
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