Entre trilhos antigos, maquetes e memórias, a antiga Estação Ferroviária João Felipe, hoje parte do Complexo Cultural Estação das Artes, segue viva como símbolo da transformação de Fortaleza. O público que participou da visita mediada neste domingo, 19, pôde revisitar um dos espaços mais simbólicos da história de Fortaleza.
A Estação foi desativada em 2014, mas segue viva como símbolo de memória. A restauração transformou o local em um espaço de convivência e arte, abrigando o Museu Ferroviário do Ceará, a Pinacoteca e eventos culturais.
Há 155 anos, entre 1860 e 1870, o Ceará vivia um ciclo de riqueza baseado na produção e exportação de algodão. Com o tempo, a economia se expandiu com o cultivo de café no Maciço de Baturité, cuja exportação era feita por comboios de animais até o antigo porto, localizado na Ponte Metálica, na região do Poço da Draga. A chegada da ferrovia, portanto, foi um marco de progresso, garantindo o escoamento mais rápido das mercadorias e conectando o interior ao litoral.
A primeira estação ferroviária do Estado foi construída em 1873, quando Fortaleza tinha aproximadamente 20 mil habitantes. Sua arquitetura, inspirada na Belle Époque, refletia o ideal de uma cidade moderna e civilizada, com o olhar voltado para o futuro. A localização também foi estratégica, sendo erguida no Centro, projetada de costas para o mar, já que, na época, o litoral era associado ao trabalho e ao porto, não ao lazer ou à beleza natural.
O trabalho árduo de assentamento das barras de ferro dos trilhos, que pesavam aproximadamente 73 kg por metro, foi lembrado durante a visita como um símbolo da força e da resistência desses trabalhadores, que ajudaram a moldar o Ceará moderno. Além de debater o quanto era exaustivo o trabalho braçal exercido.
Décadas depois, entre 1915 e 1932, novas secas devastaram o Ceará e resultaram na criação de campos de concentração em Fortaleza, usados pelo governo como forma de conter o avanço de retirantes. Esses episódios marcaram profundamente a relação da Cidade com o sertão e com o próprio desenvolvimento urbano.
José Américo Oliveira, corretor de imóveis, relembrou suas experiências passadas ao usar o trem para viajar a Itapipoca e para visitar sua avó, complementando suas memórias com as informações fornecidas pelo guia. Ele destacou que a visita foi uma oportunidade de reviver o movimento da estação na época e de resgatar aspectos históricos de Fortaleza e do Ceará que muitas vezes são esquecidos, incluindo referências aos campos de concentração e à história da abolição.
“Eu frequentava a Estação para pegar o trem até a cidade de Itapipoca, mas ele continuava até o Piauí. Era bom porque ao viajar à noite tinha restaurante, jantávamos no trem. Às vezes eu pegava para ir à casa da minha avó em Itaperi, depois da Parangaba. Eu sou curioso com a história, principalmente aqui de Fortaleza, do Ceará. Essa questão dos campos de concentrações que ele (o guia) acabou falando, porque é esquecida propositalmente, que é escondida na história do Ceará. É uma contradição o Ceará, terra da Luz, por ter libertado os escravos, por ser a primeira província a libertar. Na realidade, a primeira foi a atual Redenção, um ano antes”, esclarece.
A estação nasceu dentro do contexto do progresso. Entre seus idealizadores estava o engenheiro Francis Reginald Hull, e sua construção envolveu retirantes que migraram durante a Grande Seca de 1877, quando 100 mil pessoas deixaram o interior em busca de sobrevivência.
Muitos foram empregados na construção dos trilhos e das estruturas da estação, em condições precárias e análogas à escravidão, enquanto barracamentos eram erguidos para abrigá-las.
No entorno da Estação João Felipe surgiram armazéns e o antigo chalé onde hoje funciona a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE). Entre 1920 e 1930, as oficinas ferroviárias foram transferidas para a atual avenida Francisco Sá, que na época era conhecida como Estrada do Urubu, origem do nome Oficina Urubu, ainda lembrado por antigos ferroviários.
De férias em Fortaleza, Cláudia Kautzman, filosofa e bibliotecária, relatou que buscava compreender melhor a cultura e a história local. Para ela, essa experiência foi importante, especialmente por ser de Santa Catarina, pois permitiu conhecer a estrutura histórica da cidade, a influência da ferrovia na migração e no crescimento populacional, além de entender a economia e a cultura da região.
“Querendo ou não, há uma comparação entre o Sul e o Nordeste. A partir das explicações que foram feitas deu para perceber que historicamente, por exemplo, o êxodo rural teve outros motivos, os climáticos. Principalmente sobre a seca. Como essa ferrovia teve influência nessa migração das pessoas, influenciou também a estrutura de fortaleza, e na organização desse espaço e das culturas trazidas para cá”, diz.
Durante o governo de Getúlio Vargas, em 1946, a antiga Estação Central foi rebatizada como Estação João Felipe, em homenagem ao político cearense natural de Trairi. A estrutura foi construída de forma simbólica, sendo uma cidade do progresso, com arquitetura europeia e valores urbanos, de frente para a civilização e de costas para o mar.
O entorno da estação também guarda memórias esquecidas. No local da atual praça, funcionou o primeiro cemitério da cidade, o São Casemiro, que existiu entre as décadas de 1940 e 1950, alguns estudos apontam sua construção em 1948. Com o aumento populacional, foi criado o segundo cemitério de Fortaleza, o São João Batista, também localizado no Centro, desativando de vez o primeiro.
Anderson Fontenele Vieira, pedagogo e professor universitário de Parnaíba (PI) e Victor Martins, biomédico e professor estavam pela primeira vez no local e se emocionaram com a história.
Anderson explicou que, por vir de uma cidade com poucos equipamentos culturais, a visita atendeu às suas expectativas, valorizando a mediação didática e pedagógica, a organização do espaço e a interação com o acervo, que conta a história e memória da Cidade.
Já Victor destacou a riqueza histórica do local, sobretudo a dimensão social da Grande Seca e seu impacto na migração e na população, destacando a importância desse tipo de visita para o aprendizado e imersão cultural.
“Eu acabo me apegando muito à questão social. Ainda está martelando na minha cabeça, quando ele (o guia Jardelson) falou sobre a Grande Seca. Eu não tinha noção de como foi esse êxodo, que nessa época o Ceará tinha perdido aproximadamente 1 terço da sua população. Aquelas imagens me pegaram muito. Elas me provocaram bastante porque eu fico imaginando como foi para elas (pessoas) saírem da sua realidade, da sua vida, do seu dia a dia no campo para vir à cidade e acabar indo parar em centros de concentração. Na construção, no sol, trabalhando com a hora contada em troca de comida, de moradia”, conta emocionado.
O passeio também despertou lembranças em antigos usuários dos trens, que relembraram viagens entre Fortaleza, Caucaia e Maracanaú, e a rotina de quem dependia das linhas férreas para chegar ao centro. Resgatando na memória até a viagem da Estação à Teresina.
Durante a restauração recente da estação, canhões e dormentes de madeira (antigos suportes dos trilhos) foram encontrados enterrados, revelando fragmentos do passado ferroviário.
O casal João Arraes, aposentado e ex-professor de Brasília, e Marlene Arraes, dona de casa que mora em Brasília há 60 anos, compartilharam a experiência da atividade.
Marlene, que conheceu a arquitetura antiga e os trilhos do trem durante a visita, avaliou a iniciativa como uma oportunidade de valorização. Já João, destacou a importância da ferrovia para a logística e redução de custos de transporte, ressaltando que projetos como esse conscientizam sobre a economicidade e o lazer proporcionados pelas ferrovias.
“Eu percebo a ferrovia como um importante meio de locomoção, principalmente quando se trata de grandes quantidades. A logística para você trazer a mercadoria de um ponto ‘A’ para um ponto ‘B’, a forma mais prática e mais barata ainda é a ferrovia. Nosso país tem dimensões continentais e é feito todo esse trabalho em cima de rodas. Isso encarece o produto. Isso chama-se o custo Brasil. Se reduzirmos esse custo, vamos ter mercadoria mais barata na nossa mesa, principalmente a alimentação do povo”, explica o ex-professor.
Um painel do artista Descartes Gadelha, criado em 1970 para celebrar o centenário da ferrovia, também está exposto no local e chama atenção dos visitantes. Nele é possível ver a transição, da locomotiva fumância, da locomotiva a diesel e as cores separando o passado do futuro.
Do lado de fora, a arquitetura da estação impressiona por seus detalhes ornamentais. Durante a visita alguns participantes notaram que um dos relevos lembra o formato da bandeira do Brasil, uma curiosidade simbólica para um espaço que representou a modernização do País no século XIX.
Durante a atividade surgiu o debate ambiental. No auge da ferrovia, o Ceará não utilizava carvão mineral, mas sim madeira, o que gerou impactos ambientais significativos nas regiões próximas aos trilhos, com grandes desmatamentos.
A história da ferrovia também passa pela cultura popular. Entre os trabalhadores havia grupos de futebol conhecidos como “mata-pastos” e “jumbebas”, que se reuniam para ter um momento de lazer. Da união dessas equipes, com apoio de Valdemar Caracas, nasceu o Ferroviário Atlético Clube, time que carrega até hoje o legado operário da estrada de ferro.
A atividade gratuita atraiu famílias e turistas. Crianças participaram de apresentações de mágica e em seguida exploraram maquetes e painéis interativos que reproduzem o funcionamento dos trilhos.
Francisco Carlos, supervisor no Porto do Pecém e morador de Caucaia, visitou o Museu Ferroviário do Ceará acompanhado do pai, José Maciel de Freitas, sargento do Corpo de Bombeiros da reserva, e do filho, Murilo, de oito anos. Para ele, a visita foi uma oportunidade de reviver memórias da infância, quando usava as antigas linhas ferroviárias entre Caucaia, Fortaleza e Maracanaú. O pai, emocionado, relembrou suas viagens de trem, confidenciando que se sente mais seguro no trem que no avião, e destacou a importância desse meio de transporte para o País, enquanto o filho se encantou com as atividades infantis e o aprendizado sobre a ferrovia.
“Fui usuário das linhas ferroviárias e hoje tive a oportunidade de conhecer um pouco mais do início e da história. Foi muito importante para mim. Eu tenho um familiar em Maracanaú e nos encontrávamos nessa estação, onde fazia a passagem de uma estação para outra. Foi uma experiência mesmo marcante. Tive muitos momentos legais assim que ficaram gravados na minha memória quando criança e hoje quando adulto”, afirma Francisco.
A história dos trilhos é também a história de Fortaleza, uma cidade que nasce dos contrastes entre o sertão e o mar, entre o trabalho e o sonho. Representando o encontro entre o tempo do campo, regido pelas colheitas e pelas chuvas; e o tempo da cidade, marcado pelo ritmo dos relógios e do capitalismo nascente.
Mais do que uma aula de história, a visita mediada à Estação João Felipe foi uma experiência sensorial, unindo memória e pertencimento. Ao transformar antigos armazéns e plataformas em espaços de arte, o Ceará preserva não apenas um patrimônio físico, mas também as histórias de quem ajudou a construir o caminho sobre trilhos que marcou o nascimento da Fortaleza moderna.