As juremas-pretas (Mimosa tenuiflora) florindo ao largo da estrada atraem nosso olhar. Elas desabrocham em flores brancas pequeninas, reunidas em espigas, que se esticam e balançam com o vento. “É um sinal de que esse terreno estava degradado”, menciona o biólogo Samuel Portela, coordenador de Conservação da Biodiversidade da Associação Caatinga.
Achei curioso e demorei a entender. Como um conjunto de plantas poderia indicar degradação? “Elas são o que chamamos de pioneiras”, explica. São as primeiras espécies a vingarem quando o solo é desmatado, porque dependem mais do sol.
Depois de crescerem o suficiente, dão as condições de sombra para as espécies secundárias, que por sua vez esticam-se tanto que tapam o sol das juremas. Elas, por sua vez, viajam em sementes, por vias aéreas e aquáticas, até encontrarem outros pontos para desbravar.
A biodiversidade mais uma vez ensinando sobre interdependência. O que acontece quando a excluímos da equação, substituindo-a por monoculturas? E se adicionarmos gado, secas e chuvas mais intensas? A resposta geralmente é desertificação.
Na primeira temporada deste especial, a desertificação foi o ponto de partida para explorar os efeitos da crise climática no Ceará. Calculamos a equação de condições climáticas e ações humanas, além de explicarmos bem as etapas de desertificação que não secam o solo, mas o transformam em pedra.
Hoje, é momento de falar de soluções: da prevenção à cura.
A desertificação é algo como um câncer. Há um componente “genético” — o fato de o fenômeno ocorrer apenas em regiões semiáridas, subúmidas ou secas —, e o componente de “hábitos de risco” — nesse caso, o manejo inadequado do solo, as monoculturas e o pisoteamento pelo gado, ou seja, a expansão agropecuária extensiva.
Ela também pode entrar em metástase, como bem definido pelo professor Flávio Nascimento, coordenador geral de ações transversais do Departamento Nacional de Combate à Desertificação (DCDE/MMA); mas isso é assunto para o final da reportagem. Antes disso, falemos sobre prevenção.
O semiárido brasileiro tem um problema: ele importou as práticas agropecuárias dos climas tropicais e subúmidos.
“A gente fica culturalmente reproduzindo o que é feito nesses climas… O sonho do sertanejo é ser fazendeiro”, reflete Francisca Soares, doutora em Biologia Vegetal pela Unicamp e professora do programa de pós-graduação Ecologia e Recursos Naturais, do departamento de Biologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
No histórico de desmatamentos frequentes, secas severas e crise hídrica e extinção de espécies da fauna e flora, a desertificação foi se ampliando. “Esse é o cenário, está posto. E o que pode ser feito?”, questiona a professora.
A criação de pequenos animais, por exemplo, é menos impactante. O ideal seria trocar a pecuária pela ovinocultura e pela caprinocultura. Tão marcantes de uma identidade nordestina, ovelhas e cabras demandam menos pastagem e têm mais compatibilidade com o clima.
“O problema é cultural: culturalmente o nordestino quer criar boi. Para se sentir fazendeiro, ele tem que ter vaca, só que não é adequado”, pontua. A restauração também é essencial, mas com plantas nativas.
A mudança cultural vai para além dos modelos econômicos: a própria lógica de convivência com a seca precisa mudar. Aliás, falar de convivência em vez de combate é uma grande transformação do paradigma brasileiro.
Se em 1909 surge a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), atual Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs, desde 1945), para construir açudes pensando em ganhar a batalha contra a seca; é a partir da década de 1980 que surgem as propostas de convivência com o semiárido.
Entre elas, as tecnologias sociais. Estamos novamente na Reserva Natural Serra das Almas, passeando pela comunidade Jatobá Medonho. Lá, conhecemos Antônia Gomes Bezerra, 58, e Aureliano Rodrigues da Silva Neto, 93, moradores que passaram a usar as tecnologias sociais ofertadas pela Associação Caatinga. A seguir, conheça as histórias deles, e mais:
A primavera decora em rosa a fachada branca da casa de dona Toinha. O céu azul sem nuvens explode ao fundo, saturando as cores ao nosso redor. A quietude de sons de animais e porquinhos passeando pelas ruas, como cãezinhos de estimação, nos localiza no espaço-tempo. Estamos no Jatobá Medonho, comunidade de Tucuns, um distrito de Crateús (CE).
Antônia Gomes Bezerra, 58, nos espera à porta, com um dos sorrisos mais bonitos que alguém já viu. Nos recebeu com abraços, abriu a porta de casa e nos acomodou nas cadeiras. Ao nosso redor, fotografias emolduradas dos nove filhos dela com seu Araújo, e araras de gesso pintadas por Toinha.
Estamos lá para conversar com dona Toinha sobre as tecnologias sociais que ela recebeu da Associação Caatinga, como a cisterna de placa e o fogão ecoeficiente. Ela mora em Jatobá Medonho desde 1990 e sempre precisou caminhar 900 metros até a Igreja para buscar água.
Era a única fonte de água para toda a comunidade, então era preciso levantar cedo e preparar-se para a fila. “Nossa vida era essa aí, carregando cabaça na cabeça”, relembra. Por dia, ela precisava de “dois caminhos” d’água por dia, levando um balde na cabeça e outro na mão.
Foi por volta de 2017 que ela adquiriu a cisterna de placa de 16 litros com a Associação Caatinga. A cisterna é um depósito de água, “equipada com um sistema de calhas para aproveitar a chuva que escorre dos telhados das casas e, por ser coberta, evita a evaporação da água e impede a contaminação causada por animais”, descreve a associação.
“Á água da chuva (o gosto) não tem explicação”, sorri Toinha. Segundo a associação, a água armazenada na cisterna é “suficiente para suprir as necessidades de uma família de cinco pessoas — beber, cozinhar e preparar alimentos durante oito meses sem chuvas”.
Como os nove filhos já estão encaminhados, dona Toinha e seu Araújo têm água suficiente para distribuir. Enquanto conhecíamos a cisterna e o quintal produtivo de Antônia, um dos seus vizinhos chegou pedindo por uma garrafa d’água da cisterna. A resposta foi curta e gentil: claro!
Antônia ainda planta e colhe cabaças de tamanhos variados, na missão científica de manter a memória viva de sua infância — e dos sertanejos. “Para mim, a cabaça é uma relíquia!”, orgulha-se.
Por mais que nós não saibamos o gosto da água da chuva de dona Toinha — apesar de termos sido agraciados com uma água de coco docinha e fresca, recém tirada do coqueiro do quintal da família —, o cheiro é indiscutível. Desde cedinho, o fogão ecoeficiente, outra tecnologia social, trabalhava no cozimento do feijão. E que feijão cheiroso!
“Meu fogãozinho sofre, homi!” O fogão ecoeficiente é formado por uma base de metal recoberta por tijolos refratários; com isso, aumenta-se o isolamento térmico e melhora-se a transferência de calor para os alimentos. “Isso quer dizer que é menos lenha e mais calor”, descreve a ONG.
Essa tecnologia social planeja aumentar a eficiência da cozinha e reduzir a insegurança alimentar, principalmente considerando o preço do gás de cozinha. Na região, Antônia pontua que o gás custa entre R$ 105 e R$ 115, sem contar o frete.
Unindo a cisterna de placa, o fogão ecoeficiente e o quintal produtivo — com cabaças, jerimuns, tomates, laranjas, pimentas-de-cheiro, bananas, coco, seriguela, limão, mamão e mais —, a família de Antônia encontra o equilíbrio ideal de convivência com a seca e segurança alimentar.
“O feijão cozinhado na lenha fica com o caldo grosso. O feijão gostoso é cozinhado na lenha”, confidencia dona Toinha. “E tem que fazer com calma, paciência.”
Ainda em Jatobá Medonho, chegamos à casa de Aureliano Rodrigues da Silva Neto, 69. Está perto da hora do almoço, o sol quase chega na posição de meio-dia. Ele nos espera no alpendre da casa, pronto para nos apresentar a vida. Já estávamos avisada que seu Aureliano era um grande especialista em plantas, ensinado pelo pai, e mais sabido que os botânicos formados.
Ele e a esposa, Maria, moravam onde hoje é a Reserva Natural Serra das Almas desde menino, antes de ser comprada e preservada pela Associação Caatinga. “Lá era bom para nós, porque o dono lá que criava animais, essas coisinhas assim, aí a gente fazia roça lá”, relembra. “Aí depois que venderam, melhorou 100%, porque preservou um bocado de coisa. (Incluindo) os bichos, que não é para caçar e o povo não entende.”
“A reserva veio no tempo certo. Tinha muita gente que achava que era besteira”, comenta, mas ele foi um dos que concordou com a mudança. Atuou como guarda-parques da unidade de conservação por quatro anos e, quando a idade avançou e ele não conseguia mais caminhar por lá, foi substituído pelo filho Edivaldo Rodrigues.
Assim, a família de Aureliano marcou história na existência da Serra das Almas. Dos oito filhos (os “bichim réi”, como os chamou rindo), dois trabalham na reserva. Ele, por outro lado, desceu a serra e ficou em casa, trabalhando na roça de milho e feijão. A mandioca já não planta mais por dar “muito trabalho”.
Nela, o casal recebeu duas tecnologias sociais focadas no aproveitamento da água: o sistema bioágua e a fossa ecológica. A fossa ecológica, também conhecida como canteiro bioséptico, funciona como um tratamento natural de esgoto doméstico.
“É um sistema de filtragem que trata a ‘água negra’ das residências e reaproveita para o cultivo de plantas”, descreve a Associação Caatinga. “A ‘água negra’ sai do banheiro e das fossas da casa, atravessa o subsolo e vai em direção ao canteiro onde os organismos digerem os dejetos e utilizam o material orgânico para ‘adubar’ as árvores.”
Das árvores, a melhor é a bananeira, que depende de muito adubo para dar frutos. É uma estratégia de saneamento básico aliada à segurança alimentar — apesar de Maria ter um pouco de nojo das bananas da fossa ecológica.
Com uma careta, ela conta que parou de comer bananas depois de ver o funcionamento da fossa, incluindo aquelas vendidas no mercado. “Eu comecei a pensar, e se eles (os produtores das bananas) fizerem do mesmo jeito (também de fossa ecológica)?”, questiona, fazendo a equipe inteira rir. Mesmo assim, a bananeira é mantida firme e forte, principalmente para alimentar os passarinhos.
Essa água negra ainda é direcionada pelo sistema de bioágua, que depende de várias estações. Ela é composta por uma caixa de gordura (para separar a gordura da água), um filtro, um minhocário, um tanque de reuso, um sistema de irrigação e uma área de cultivo.
“O equipamento de filtragem que recebe a água da caixa de gordura tem capacidade de 500L de água cinza por dia, distribuídas em uma profundidade de 1m. O filtro é composto por cinco camadas, sendo duas de material orgânico (húmus e serragem de madeira) e três de material inorgânico (areia fina, brita e seixo rolado).”
“A água servida é colocada uniformemente sobre a superfície do filtro com o auxílio de um chuveiro adaptado, que tem a função de distribuir a água igualmente sobre o filtro com uma população de minhocas. Elas promovem o revolvimento e a aeração do material do seu habitat, bem como a trituração da matéria orgânica, que passa por seus tratos digestivos.”
Todo o sistema é voltado para a agricultura. No quintal de Aureliano e Maria, há abacaxis, mamão (que a família também não gosta muito e deixa para os passarinhos), limão, além de hortaliças como cheiro verde e cebolinha.
No meio de plantas desabrochando em “fulô”, a memória de dona Maria é marcada pelo aquecimento global: “A gente sente que o sol tá mais quente mesmo. Antes a gente passava o dia todo arando e não sentia. Agora dá meio-dia e a gente sente logo.”
Atrás da casa da família, passava um riacho que nunca secava. Nunca, no pretérito: “Agora tá seco. Começou a diminuir em 2010, 2011. De uns anos para cá, o inverno tá mais fraco. Antes, oito da manhã tinha neve (sic. névoa) cobrindo tudo. Agora não vê mais neve”, lamenta.
A criação de abelhas nativas sem ferrão é apontada pelos professores Francisca Soares e Flávio Nascimento, da UFC, como uma estratégia importante para o combate da desertificação. O Brasil tem cerca de 300 espécies de abelhas sem ferrão, entre elas a jandaíra (Melipona subnitida), espécie endêmica da Caatinga.
De acordo com a Associação Caatinga, a meliponicultura “é a prática de criar abelhas sem ferrão para a produção de mel, própolis, pólen e resinas”. Além de contribuir com o aumento da renda dos sertanejos, a meliponicultura tem se mostrado importantíssima para a conservação ambiental.
Afinal, abelhas são polinizadoras e possuem “papel fundamental na manutenção da biodiversidade mundial”. As abelhas são responsáveis pela polinização de aproximadamente 73% das espécies cultivadas no mundo. Ainda, das mais de 240 mil espécies de angiospermas (as plantas com flores e frutos) do mundo, 75% dependem de agentes polinizadores como vento, água e animais, entre eles aves, morcegos e insetos.
Os dados são da pesquisa Modelo teórico para análise interdisciplinar de atividades humanas: A meliponicultura como atividade promotora da sustentabilidade, publicada na revista científica Ambiente e Sociedade, em 2020.
Já segundo a Embrapa, as abelhas nativas sem ferrão são responsáveis pela polinização de 30% das espécies da Caatinga, 90% das espécies da Mata Atlântica e uma parte significativa das espécies do Pantanal.
Na Reserva Natural Serra das Almas, visitamos o meliponário da Associação Caatinga e provamos o mel produzido pelas pequeninas abelhas sem ferrão. Elas nos cercam por todos os lados, tranquilas e gentis.
Diferem-se da agressividade das abelhas europeias ou africanizadas, ambas introduzidas ao Brasil durante a colonização. São as responsáveis por aquele medo de levar uma ferroada por qualquer movimento.
As jandaíras, não. Elas voam e deixam-se ser tocadas, sem a ameaça instintiva. Assim, pudemos nos debruçar em sua casa e observá-las, cobertas de pólen, enquanto produzem mel e própolis.
Eu e a fotógrafa Fernanda Barros provamos o mel — delicioso. O própolis, por outro lado… “Elas têm paladar infantil”, riu o biólogo Weber Girão, da Aquasis, enquanto fazíamos careta pela acidez do produto.
O mel produzido por elas é procurado pelas propriedades medicinais e pelo valor nutricional, conhecido por suas características antibióticas, antioxidantes e anti-inflamatórias. Por isso, e também pela produção lenta e limitada de mel, o litro é comercializado por cerca de R$ 150.
Da convivência com a seca, às tecnologias sociais e à restauração, a desertificação também é uma pauta hídrica. Pouco adiantar trabalhar todos os aspectos anteriores se estratégias de segurança hídrica não forem tomadas.
A professora Francisca Soares comenta, por exemplo, como o milho é uma cultura que demanda muita água, tornando-a inadequada para o semiárido. “A gente tem que ter uma mudança cultural de uso da terra, uma política de Estado geral”, comenta. Parte disso envolve o tipo de preservação dos recursos hídricos.
No episódio passado, ao falarmos de reservas legais, indicamos como o entorno dos corpos d’água são Áreas de Preservação Permanente (APPs). Mais do que preservar o entorno, é possível manejá-lo para criar microrrefúgios hidrológicos.
No solo das margens dos rios, explica Francisca, o ideal é plantar árvores frutíferas da Caatinga, combinadas com árvores de potencial melífero. Entram aí juazeiros, mulungus, ibiratanhas… “É uma arca de Noé”, ilustra a professora.
“É importante, porque (com a degradação e a desertificação), as árvores mais altas da caatinga, mais arbóreas, vão praticamente desaparecer. Nas áreas de aluvião, é o caso de plantar essas árvores.”
Já nas regiões mais afastadas das margens, portanto mais secas, faz sentido restaurar com árvores como a caatingueira, a sabiá e a jurema-preta.
O professor Flávio Nascimento também aponta as barragens subterrâneas como uma forma de mitigar a desertificação. “A barragem subterrânea possui a função de reter a água da chuva que escoa em cima e dentro do solo, por meio de uma parede impermeável construída dentro da terra e que se eleva a uma altura de cerca de 50 cm acima da superfície”, descreve a Embrapa.
Ao reter a água da chuva, a barragem cria uma vazante artificial temporária, “na qual o terreno permanece úmido por um período de dois a cinco meses após a época chuvosa, permitindo a plantação mesmo em época de estiagem”.
“Combater a desertificação significa produzir melhor”, sintetiza Flávio. “Todas as ações e formas de intervenções têm como base a restauração e o aumento da produção. E você tem que restaurar a terra e a água para que a biodiversidade seja restaurada.”
É hora de dizer adeus à Serra das Almas e pegar a estrada de 300 quilômetros até Quixeramobim, a segunda cidade mais populosa do Sertão central, com 85.797 habitantes em 2024.
O brasão de armas da cidade diz tudo o que precisamos saber: adornados por dois ramos de algodão, um boi e duas vacas pastam em frente à Câmara Municipal de Quixeramobim. Esta é a cidade de origem da Confederação do Equador e terra natal de Antônio Conselheiro.
Em homenagem a ele, surge o Instituto Antônio Conselheiro (IAC), organização não governamental que trabalha com agricultores familiares a partir da agroecologia e do desenvolvimento rural sustentável.
Um dos pontos de atenção do projeto é prevenir a desertificação nos territórios dos associados. Para isso, o IAC tem promovido formações em agroecologia e sistemas agroflorestais entre os agricultores.
“Não apenas como substituição de insumos ou de modelos de produção, mas a gente trabalha a agroecologia como ciência de pensar metodologias adaptadas às condições locais, à vivência dos agricultores e agricultoras familiares”, explica Jardenes Matos, coordenadora técnica de projetos do IAC.
Há várias definições da agroecologia, mas ela basicamente consiste em um conjunto de conhecimentos multidisciplinares e baseados na ecologia para fazer um manejo agrícola sustentável. E é dela que surge o sistema agroflorestais e de quintais produtivos: áreas de produção que têm intervenção humana, mas usam metodologias que tentam imitar a natureza.
“A agroecologia depende também do conhecimento popular”, localiza Jardenes. “E quem melhor tem acolhido a agroecologia é a mulher.”
Uma dessas mulheres é Alcy Pereira Santos, 50, agricultora de Vila Rica, comunidade de Quixadá (CE), onde o IAC também atua. Filha de agricultores, Alcy sempre viveu na roça: com o pai, plantava milho e feijão. Cresceu em uma fazenda “de terra alheia”, de onde a família foi expulsa tempos depois.
Com esforço e muito trabalho, ela conseguiu comprar um terreno na mesma área. Desde 2012, com apoio do IAC e do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador e à Trabalhadora (Cetra), tem um quintal produtivo de 50 m², com uma cisterna de enxurrada. Dele sai quase tudo o que ela precisa: milho, feijão, algodão agroecológico, amendoim, caju, rúculo, alface, espinafre, couve-manteiga, manjericão, gergelim, pimenta, quiabo, mamão… a lista continua.
“A preocupação que eles (o IAC e o Cetra) tinham era com a nossa saúde, que a gente não deveria usar veneno”, lembra. “A gente tinha outra cultura, que era só milho e feijão…Aí eu falei: ‘Pai, eu vou tentar’. Os vizinhos começaram a dizer que não iria dar em nada, mas eu abracei a causa e comecei.”
“Só trabalha com agroecologia quem ama. Porque, na verdade, a gente tem muitos problemas, né? Porque o homem em si, ele destruiu muito a natureza”, aponta Alcy. “Ela se encontra muito arrasada, não tem mais as coisas que protegem os animais, que protegem a nossa terra. Mas se a gente aderir (à agroecologia), a gente vai ter a possibilidade de crescer e de ter uma alimentação com qualidade.”
Há mais de dez anos como agricultora agroecológica, Alcy vê que está vivendo o sonho. Gasta pouco dinheiro com compras para alimentação, pois quase tudo vem do quintal, e participa de feiras agroecológicas vendendo o excedente produzido, entre eles polpas, doces e geleias.
Para ela, levantar de madrugada, ainda escuro lá fora, e ficar até as nove da manhã plantando, cuidando e colhendo é a vida ideal. E está empolgada para começar a agrofloresta de 30m², a ser construída com o Cetra, onde plantará mudas de frutas e de árvores nativas.
“Hoje eu me sinto empoderada. Quando eu aderi à agroecologia, eu tive domínio de mim mesma", orgulha-se. "Antes de participar dessas instituições, eu era aquela mulher que aceitava tudo. O homem era quem falava e a gente só colaborava. Então, era como se a gente nunca trabalhasse. Aí veio uma formação da agroecologia, e eu fui vendo, poxa, como eu sou valorizada. Como eu trabalho, como eu coloco vida dentro da minha casa!”
A história de Alcy reforça o que o professor Flávio sintetiza: “Combater a desertificação significa produzir melhor.” “Todas as ações e formas de intervenções têm como base a restauração e o aumento da produção.”
Todas as medidas apresentadas até agora estavam voltadas para a prevenção. Mas o que fazer quando um terreno já está desertificado? Há volta? A resposta é sim.
O primeiro passo é evitar todos os agravantes: retirar o gado e deixar o solo descansar sem monoculturas. A professora Francisca Soares, da UFC, cita a eficiência do transplante de serapilheira para restaurar o solo.
“Qualquer produtor rural pode fazer isso (mesmo no período seco). É pegar aquele bagaço "A serrapilheira é a camada de folhas secas, galhos, restos de frutas, flores e animais mortos fica na superfície do solo" do interior da caatinga, jogar no terreno e cobrir com mantas de fibra de coco, que também se decompõe como matéria orgânica”, explica a pesquisadora.
“Tudo isso ajuda a enriquecer o solo, porque a principal dificuldade de regeneração natural é a perda da camada superficial que tem matéria orgânica e que facilita o estabelecimento das plantas.”
Quando a época das chuvas chegar, aos poucos as plantas começarão a crescer. A priori, serão herbáceas, cujo crescimento rápido das micro-raízes irá criar fissuras minúsculas no solo, permitindo a absorção de água. Então, o solo estará mais apto para receber as sementes de árvores por dispersão natural.
O geógrafo Flávio Nascimento, coordenador do DCDE/MMA e professor titular de Geografia na UFC, cita as experiências de recolonização vegetal promovidas pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), entre elas o projeto Brum.
Iniciado em 2012 em Jaguaribe, ele é um dos mais bem sucedidos do mundo em recuperação de áreas degradadas. “Até a Organização das Nações Unidas (ONU) visitou lá”, relembra o professor.
Com financiamento do Fundo Clima, do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima (MMA), e a cessão de uma área de cinco hectares — dos quais três estavam em processo adiantado de degradação — pelo líder comunitário Neto do Brum, a Funceme começou os trabalhos.
Fez um diagnóstico socioeconômico das famílias da comunidade e diagnóstico físico da região, e a partir daí começou com as intervenções físicas. Entre elas, barramentos de pedra para impedir que o solo seja levado por enxurradas de água, terraceamento, sulcamento, escarificação "Prática agrícola que consiste em romper camadas compactadas do solo, geralmente formadas por tráfego intenso de máquinas, pisoteio de animais ou operações de preparo do solo com arados e grades" do solo e aplicação de material orgânico e serrapilheira.
Em matéria da Funceme de 2015, Neto do Brum relata: “Tínhamos a cultura de fazer queimadas e usar bastante agrotóxico. Chegou um momento em que a terra zerou e passou a negar o que eu investia. Tive que parar, ver onde errei e melhorar. No meu caso, o número excessivo de animais contribuiu para a degradação.”
Em 2025, o Brasil sedia a 30ª Conferência das Partes (COP30) pelo Clima, o maior evento mundial entre nações para enfrentar a crise climática. Existem outras duas COPs igualmente relevantes: a COP da Biodiversidade (que O POVO+ cobriu ano passado, você pode conferir aqui) e a COP da Desertificação.
Ambas são bianuais, mas infelizmente a COP da Desertificação é a menos conhecida e mencionada quando o assunto é conferência das partes. “A desertificação é, de certa forma, muito conhecida. E é o principal problema climática do Nordeste”, comenta Flávio Nascimento.
Ocorre que a desertificação pode, nem tão aos poucos assim, ser um problema de outras regiões nos próximos anos. À medida que os “focos” de desertificação se estabelecem, eles vão influenciando o microclima das regiões do entorno.
Com isso e a expansão agropecuária, novas áreas vão somando as características para estarem propícias à desertificação. É o que está acontecendo no norte de Minas Gerais e no norte do Espírito Santo, como identifica a pesquisa da tese de doutorado do geógrafo Leonardo Matiazzi, do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), campus Serra, e doutor em Geografia e Ordenamento Ambiental Territorial.
“Quando você leva para as mudanças climáticas, essas áreas que estão no entorno, essas áreas marginais, de transição entre uma área úmida e uma área semiárida e árida são muito sensíveis”, comenta Leonardo.
“O norte do Espírito Santo é (de clima) tropical úmido ou subúmido. Mas a peculiaridade é que essa é a última fronteira do sudeste a ser ocupada”, descreve o pesquisador. Além da expansão agressiva da agropecuária, o norte do rio Doce (rio afetado pelo rompimento da barragem de Mariana, em Minas Gerais) passou a ser ocupado no início do século XX.
Segundo o Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN-Brasil), um quarto das terras capixabas estão em áreas de entorno a áreas suscetíveis de desertificação. No entanto, o que Leonardo tem identificado com a tese é que elas deixaram de ser “de entorno” para transformarem-se em regiões de fato vulneráveis.
Essa possibilidade da desertificação se expandir é comparada pelo professor Flávio a uma metástase cancerígena.
“Quando a caatinga é desmatada, a gente vê os impactos nas bordas. Ela começa a pressionar e a ameaçar o bioma da Mata Atlântica”, descreve o professor. “Há um severo risco na borda da Amazônia, e ademais o próprio Cerrado. Inclusive em direção ao Matopiba "Região formada pelo estado do Tocantins e partes dos estados do Maranhão, Piauí e Bahia, onde ocorreu forte expansão agrícola a partir da segunda metade dos anos 1980, especialmente no cultivo de grãos. [Fonte: Embrapa]" .”
Afinal, os mesmos processos de desmatamento e uso intensivo da terra implementados no Nordeste vão sendo implementados nas outras regiões. Segundo Leonardo Matiazzi, o modelo que exauriu o território capixaba é replicado na Amazônia.
“O modelo de ocupação é o mesmo: é a lógica de de natureza infinita, de tratar a natureza como recurso.”
Não de repente, o perigo da desertificação deixa de ser um medo nordestino e passa a ameaçar todas as bordas — e, sem nenhuma ação política, as bordas das bordas… Leonardo descreve a imagem de drone das áreas capixabas desertificadas como “rupturas na pele”. É preciso, então, prevenir a doença.