A massificação do uso de inteligência artificial tem causado transformações significativas em praticamente todas as áreas da nossa vida. Artes, educação, jornalismo e até a política tiveram suas dinâmicas estremecidas com as novas ferramentas.
Talvez o que ninguém esperava era que o prazer ia se render à tecnologia. E não estamos falando de substituir um exemplar da Playboy por uma página do
O mercado do entretenimento adulto está dando uma guinada surpreendente ao adotar modelos de inteligência artificial que geram imagens e vídeos fotorrealistas.
Esse movimento coloca os espectadores na cadeira do diretor, permitindo que o público crie qualquer tipo pornografia de que goste. E o grande dilema legal e ético está justamente nessa liberdade criativa.
A indústria pornográfica está, frequentemente, na vanguarda das tecnologias emergentes.
Para se ter uma noção, em 1995 foi ao ar o site do The Wall Street Journal — um dos primeiros noticiosos a se digitalizar — e também o primeiro site de conteúdo adulto de que se tem notícia, o Danni’s Hard Drive.
Na época, a modelo Danni Ashe compilou uma enorme coleção de fotos de si mesma e as disponibilizou para assinantes por meio da internet.
O grande diferencial foi o modelo de negócios: o acesso pago a um conteúdo exclusivo, o que se tornou o padrão para a indústria. Hoje, plataformas como o OnlyFans e o Privacy ainda se apoiam nessa mesma estrutura.
A virada de milênio trouxe a popularização da internet de banda larga, que mudou tudo. Com velocidades de conexão muito maiores, a distribuição de vídeos se tornou viável.
Isso abriu as portas para o surgimento de grandes sites de vídeo on-demand e, mais tarde, plataformas de compartilhamento de vídeo.
As seções isoladas das videolocadoras deram lugar a sites que atendiam os mais variados nichos: desde vídeos com enredos elaborados até cenas de sexo em público gravadas pelos próprios amantes, tudo ficou disponível a um clique de distância.
Com a chegada do streaming, os usuários agora passaram a assistir aos vídeos diretamente, sem a necessidade de baixá-los.
Plataformas como XVideos e Pornhub, que operavam com um modelo de conteúdo gratuito e financiado por publicidade, explodiram em popularidade.
Esse modelo democratizou o acesso à pornografia, tornando-a amplamente disponível e acessível para qualquer pessoa com uma conexão à internet. Essa mudança massiva na forma de consumo consolidou a indústria.
O avanço das tecnologias de gravação e a popularização das mídias sociais e plataformas como o OnlyFans mudaram o cenário novamente.
Os produtores independentes, incluindo atores e atrizes, puderam contornar os grandes estúdios e vender seu conteúdo diretamente aos consumidores.
Isso permitiu a criação de nichos de mercado e a oferta de conteúdo mais personalizado e exclusivo.
Esse modelo não somente deu mais poder e controle aos criadores, mas também trouxe uma diversidade sem precedentes ao conteúdo, com a possibilidade de atender a fetiches e interesses específicos.
A palavra inglesa “job”, que na tradução significa “trabalho”, tem sido usada por jovens, especialmente nas redes sociais, como gíria para se referir a garota de programa ou prostituição.
Na internet, é possível encontrar vários conteúdos no YouTube, no TikTok e no Reddit que ensinam a criar a sua “IA do job” e faturar em sites especializados. Essa seria a fase mais recente da evolução da criação e distribuição de pornografia.
A doutora em psicologia e pesquisadora da Universidade do Quebec em Montreal, Valerie Lapointe, aponta que a produção de pornografia de IA difere radicalmente dos métodos tradicionais por oferecer um “extensivo controle nas mãos dos consumidores”.
“A criação de conteúdo agora exige somente alguns cliques ou palavras digitadas em uma caixa de texto, eliminando a necessidade de envolvimento humano substancial, grandes orçamentos ou expertise”, aponta.
Segundo a pesquisadora, isso possibilita a produção rápida e de baixo custo de grandes volumes de material pornográfico que, por vezes, são "indistinguíveis de fotos reais de humanos".
Os usuários podem personalizar amplamente as características dos personagens, incluindo sexo, idade, etnia, corpo, tamanho de partes específicas do corpo (como seios e genitais), vestimentas, e até mesmo aspectos contextuais, como clima, horário e iluminação.
A capacidade de manipular essa variedade de recursos permite a criação de material altamente específico, personalizado e diverso, atendendo a um amplo espectro de fantasias e fetiches.
Isso inclui as chamadas "deepfakes", onde o rosto de uma pessoa é sobreposto no corpo de outra, e vídeos inteiramente gerados por computador.
As implicações disso são vastas e complexas. Por um lado, a IA pode ser usada para criar conteúdo para fins artísticos ou de entretenimento.
Por outro, ela levanta sérias preocupações éticas e de segurança, especialmente quando a imagem de uma pessoa real é usada sem o seu consentimento.
A IA borra as linhas entre o que é real e o que é gerado artificialmente, criando novos desafios para a regulamentação e a privacidade.
Para produzir conteúdo com modelos de IA, muitos criadores optam por usar plataformas que já oferecem personagens pré-definidos, simplificando o processo.
No entanto, para aqueles que buscam maior controle, é possível inserir “prompts” ou comandos de texto para moldar a personagem de acordo com suas preferências.
A criação de comandos detalhados, especialmente em inglês, pode ser facilitada com o auxílio de ferramentas de IA como o ChatGPT.
A evolução dessas ferramentas permite não somente a criação de imagens estáticas, mas também a adição de movimento e até mesmo voz.
O criador pode gravar um áudio, e o software da plataforma se encarrega de sincronizá-lo com o vídeo do avatar.
Além disso, algumas plataformas mais avançadas permitem ao usuário configurar as poses e ações das personagens virtuais na cena, mas esse recurso geralmente é exclusivo para assinantes.
A divulgação desse tipo de conteúdo é feita principalmente por meio de perfis no Instagram, onde são postadas imagens mais discretas que servem como uma "vitrine" para atrair público.
A biografia do perfil inclui links que direcionam os interessados para plataformas de assinatura, onde os conteúdos mais explícitos estão disponíveis.
O acesso a esses materiais requer normalmente o pagamento de uma assinatura mensal em moedas estrangeiras, como dólar ou euro, dependendo do site.
Uma diferença fundamental entre o pornô de IA e o pornô tradicional reside no fato de que os criadores de conteúdo adulto humano podem consentir, mas a IA não é consciente e, portanto, não pode dar consentimento.
Thammy Novakovski, mestre em Enfermagem e pesquisadora de violência de gênero na Universidade Federal do Paraná, argumenta que eliminar as barreiras do que é real, possível e consentido pode reforçar uma ciberviolência que humilha e expõe mulheres, afetando sua dignidade, autonomia e humanidade.
Em um artigo publicado na revista Comunicação & Educação, a socióloga e professora da Universidade de Turim, Simona Tirocchi, alerta para os efeitos colaterais do uso intenso de IA emulando relações humanas.
A acadêmica aponta dependência emocional, depressão, ansiedade e pensamentos obsessivos, especialmente com a interrupção do acesso, como os principais rebotes, que acabam refletindo dinâmicas de relacionamentos prejudiciais.
Mas a ética parece ser escanteada quando o lucro fala mais alto. Muitos vídeos prometem lucros de milhares de reais em poucas semanas, e a viralização de vídeos sobre o tema levou ao surgimento de vários cursos que prometem ensinar como ganhar dinheiro com a "garota do job" virtual.
Além de conteúdos no YouTube e no TikTok, a reportagem do O POVO+ encontrou uma grande variedade de cursos pagos voltados para essa finalidade, conhecidos como aulas do "nicho hot". Os preços variam de R$ 40 a R$ 80 e prometem faturamento alto e rápido.
Algumas plataformas como o OnlyFans, a Privacy e a Fanvue, dizem em seus termos de uso que permitem conteúdos gerados por inteligência artificial, mas os usuários devem deixar claro que os conteúdos ali presentes são produzidos com a tecnologia.
Embora a geração de conteúdo audiovisual com IA não seja crime no Brasil, a Lei nº 15.123, sancionada em abril de 2025, aumentou a pena para quem comete violência psicológica contra a mulher com o auxílio de ferramentas de IA.
De autoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), um dos pontos que impulsionou a proposta foi justamente a utilização de deepfakes.
Essas produções incluem, geralmente, a divulgação de conteúdos pornográficos falsos simulando nudez e, muitas vezes, são usadas como forma de ameaça, constrangimento, humilhação e chantagem.
Em julho de 2025, a Câmara dos Deputados deu o aval para uma proposta semelhante, mas voltada para quem usar das ferramentas de IA para simular participação de criança ou adolescente em pornografia. Com isso, a pena, hoje fixada entre 1 a 3 anos de prisão, variaria de 2 a 6 anos.