O Ceará passa por um processo de transformação da atividade agrícola a partir do avanço da produtividade em áreas com irrigação. Entre 2018 e 2024, a área plantada nesta modalidade cresceu 40,9%, enquanto a produção avançou 106% e chegou a 2,3 milhões de toneladas.
O crescimento é demonstrado em contraste aos resultados da agricultura de sequeiro. Segundo base de dados mantida pela Secretaria Executiva do Agronegócio do Governo do Ceará, essa modalidade de cultivo ocupa 94% da área produtiva, mas responde por 62,9% da produção estadual e de 41,8% do Valor Bruto de Produção (VBP) total.
Os dados revelam o poder da agricultura irrigada, que ocupa menor área, tem boa capacidade e alto valor agregado. Por esse último quesito, a modalidade passou a ser estratégia de governo.
Destaque se revela na Ibiapaba, onde até mesmo uvas para vinho são cultivadas. A promessa é de que ele seja tão "fácil" de beber quanto uma Coca-Cola.
Na nova edição da série de reportagens Agro Nobre, O POVO mostra quatro culturas de alto valor agregado em desenvolvimento no Ceará e que chamam atenção pela alta produtividade e rendimentos.
Nos últimos anos, ocorre uma diversificação das culturas exploradas no Ceará. As primeiras colheitas já demonstram um ganho expressivo em relação a culturas tradicionais do campo, como milho e feijão.
No caso irrigado, a área plantada chega a 93,3 mil hectares, com rendimento de 27.027 quilos por hectare (kg/ha) e preço médio anual de R$ 3.939 por tonelada (R$/t). Na de sequeiro, a área produtiva é de 1,44 milhão de hectares, com rendimento médio de 2,95 kg/ha e preço médio anual de R$ 2.696 por tonelada.
A diferença nos indicadores é nítida, a ponto de algumas culturas serem vistas como promissoras para a mudança de identidade do agro local.
Experiências com a pitaia, que em 2024 teve 158 hectares de área produzida e 3,1 mil toneladas, obtiveram rendimento de 19,9 mil kg/ha, além de R$ 13,1 mil de preço médio por tonelada. O POVO destacou o início da evolução da cultura na primeira edição do Agro Nobre, em 2022.
Atualmente, outras culturas despontam com possibilidade de se juntar ao movimento de mudança do perfil rural. Exemplos disso são o açaí, com 29 hectares de área produtiva e outros 46 em implantação, e rendimento de R$ 4,7 mil por tonelada.
A uva também já rende frutos positivos. A cultura está no Baixo Jaguaribe, Cariri e Região Norte, mas se espalha em propriedades na serra da Ibiapaba, em Ubajara e Tianguá.
A região fechou a safra do ano passado com produção de 203 toneladas e VBP de aproximadamente R$ 1 milhão. O rendimento médio anual da cultura é superior a R$ 6 mil por tonelada.
Os usos são diversos, indo desde a uva de mesa, com iniciativas de produção de doces, geleias, chás, suco, além de outros derivados, como queijo aromatizado (a partir da combinação com um mofo especial), cosméticos (como sabonetes) e adubo.
Mas o que chama atenção na região é a perspectiva de lançamento de um vinho comercial advindo de vinícola cearense, o Terroir Romano.
Uma variedade de sete uvas tintas são produzidas pela marca: Shyrah, Cabernet Sauvignon, Malbec, Cabernet Franc, Pinot Noir, além das brancas Chardonnay e Moscato Giallo.
Esta última se adaptou tão bem à Ibiapaba que já é apelidada de "uva do Ceará", com duas colheitas anuais e produção em tempo recorde após dois anos de plantio.
"A Moscato Giallo é tão versátil que conseguimos fazer espumante, vinho de sobremesa. Ela é muito fácil de beber, extremamente aromática, encontrando traços de lichia, pêssego e maracujá. Ou seja, é um vinho muito agradável para tomar em temperaturas elevadas", afirma Tiago Romano, dono da marca Terroir Romano.
Ele compara a produção na Ibiapaba ao início das vinícolas no Vale do São Francisco, em que os especialistas não acreditavam que seria possível obter vinhos de qualidade no Paralelo 8 — de clima quente e árido, já que a tradição remonta à produção em zonas temperadas.
Apesar de estar acima do Paralelo 8 e bem mais próxima da Linha do Equador, o produtor destaca que, na Ibiapaba, encontrou características de terra e clima únicas, o que permitiu a experimentação de diversos tipos de uva.
O lançamento do vinho cearense deve ocorrer ainda neste ano, já que o empreendedor logo receberá os selos e licenças necessários, além de convidar especialistas em enocultura para dar veredito sobre o rótulo. Ele diz ter recebido apenas posicionamentos positivos, alguns de surpresa pela produção de vinho tão próximo da Linha do Equador.
"A Coca-Cola dos vinhos vem no sentido de que será uma opção de gosto popular, fácil e agradável. Será um vinho do Ceará como porta de entrada para o mundo dos vinhos, uma opção para quem ainda não bebe vinhos", continua Tiago.
Para o futuro, sonha e investe para que a Ibiapaba se torne um centro de enoturismo. O Terroir Romano almeja ser o "point" desse movimento, já que o empresário fez aporte de R$ 1,5 milhão para abrir um hotel e um restaurante na propriedade em Ubajara, que devem ser inaugurados em 2026.
A intenção é permitir a degustação e harmonização de vinhos com queijos e doces locais, além de piqueniques no meio do parreiral. "O intuito é montar uma mini-Bento Gonçalves aqui na Serra da Ibiapaba".
A região da Ibiapaba concentra quase 50% do PIB do agronegócio cearense. O potencial produtivo tem contribuído para a cobiçada formação de uma "classe média rural".
A avaliação é de Inácio Parente, vice-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Ceará (Faec), destacando que a serra se distingue da média dos produtores rurais cearenses — especialmente daqueles que produzem no sertão —, que ainda sofrem com a pobreza.
Esse perfil é representado por produtores rurais que não possuem latifúndios, mas que a partir de pequenas e médias propriedades conseguiram bons rendimentos com o acesso à tecnologia e à capacitação, aumentando a produtividade e obtendo renda bruta maior da produção.
Inácio pontua que essa classe média rural se notabiliza por elevar o padrão de vida, com aquisição ou reforma de suas casas, automóveis e acesso a meios de comunicação, sustentada principalmente pela fruticultura e hortaliças, como o maracujá, que foi a cultura que teve maior aderência e foi "propulsor nessa inclusão social".
"É aquilo que já vemos no Sul e no Sudeste e podemos constatar aqui na Ibiapaba: uma classe média rural. Isso é muito importante, são milhares de famílias vivendo da fruticultura, como o maracujá, que é uma cultura com preço médio estável (o que dá segurança para pequenos produtores)", afirma.
Esse avanço acelerado gera novos desafios para os empresários rurais. Um dos principais é a escassez de mão de obra, o que obriga a adoção de técnicas de mecanização da operação e esbarra em outro problema: o custo elevado de financiamento.
O vice-presidente da Faec detalha que as revendas agropecuárias ganham espaço nesse meio ao oferecer produtos e assistência técnica, mas com juros altos em relação ao crédito agrícola federal.
Ele conta que ainda há muita informalidade no meio rural, o que restringe a chegada de políticas públicas. "Por isso não há estatísticas precisas sobre produtores e produção, pois a maioria não emite nota fiscal, dificultando o controle governamental, a fiscalização e cria um cenário de achismo."
A experiência de plantação de tâmaras no Brasil está em desenvolvimento para atender a crescente demanda nacional e diminuir a dependência das importações, principalmente de países do Oriente Médio e África.
O processo de pesquisa e desenvolvimento, conduzido pela Embrapa Semi-Árido, possui um banco de germoplasma, na Estação Experimental de Bebedouro, em Petrolina, Pernambuco. No Brasil, já são estudadas técnicas para cultivo em larga escala, com boas perspectivas a partir da irrigação com microgotejamento.
A tamareira necessita de clima quente e seco. Iniciativas de cultivo em Mato Grosso e no Rio Grande do Norte já dão os primeiros frutos, ainda que a nível nacional seja incipiente e não tenha escala comercial de grande porte. Há ainda um projeto na Bahia, apoiado pelos Emirados Árabes Unidos, com intenção de tornar o estado um polo produtor.
Os árabes concederam ao País 110 mudas de 12 espécies de tamareiras para que a Embrapa teste a viabilidade comercial. Os primeiros resultados têm contrariado um provérbio árabe que afirma que "quem planta tâmaras, não colhe tâmaras".
Se no Oriente Médio as tamareiras demoram entre 80 e 100 anos para dar os primeiros frutos, no Brasil, o projeto de Mato Grosso obteve safra após quatro anos de plantio em área de 5 hectares.
A largada foi dada e nesta corrida um produtor cearense se coloca no páreo. Modesto Fernandes Lima Neto, proprietário do Sítio Mulungu, em Ibiapina, destaca que o empreendimento em tâmaras começou por incentivo do tio, Arnaldo, que já tem plantação de abacates e mudas, e participou da primeira edição da série de reportagens Agro Nobre, em 2022.
Modesto descobriu, por meio do tio, que a tâmara estaria se adaptando bem ao Brasil e que permitiria cultivo em até cinco anos. Ele, então, comprou sementes pela internet e iniciou os testes na Ibiapaba.
No Ceará, a primeira colheita foi feita após dois anos e meio do plantio. Duas plantas produziram. O cultivo de tâmara na região segue em fase de observação, buscando o tipo de manejo adequado e o melhor solo. Modesto e sua equipe adaptam técnicas de outras regiões, já que não encontraram um profissional 100% especializado na cultura.
Atualmente, são cerca de 40 pés de tâmaras produtivos, que estão plantados no espaçamento dos pés de abacate, realizando a plantação em consórcio. Modesto já planeja adquirir novas terras na região para expandir a quantidade de árvores plantadas.
Quando a árvore atinge a maturidade plena, os primeiros estudos nacionais apontam que é possível produzir entre 60 kg e 180 kg de tâmara por ano.
O fato de as tamareiras serem plantas dióicas — têm sexo masculino e feminino — também é um fator de atenção no manejo, explica Modesto.
Ele tem grande expectativa no desenvolvimento da atividade e espera que a iniciativa pioneira na região motive outras pessoas a investir.
"A Ibiapaba está inovando em muitas coisas, tornando-se referência nacional em cultivo protegido. Se conseguirmos pegar a manha do cultivo de tâmaras vamos, sim, expandir", continua.
Modesto projeta uma "super produção" de tâmaras na Serra da Ibiapaba, similar ao que aconteceu com outras culturas vindas de demais regiões do mundo e adaptadas ao Ceará. É o caso do abacate hess, no qual "a produtividade por hectare é muito acima da média nacional", indica o empreendedor.
O processo de expansão da agricultura irrigada no Ceará é a base primordial para o crescimento do desempenho e da produtividade da agricultura cearense, especialmente no que se refere às frutas.
A lembrança fica por conta da implantação da Secretaria de Agricultura Irrigada (Seagri), em 1999, em que o Governo do Estado revolucionou o tratamento da produção, iniciando uma versão mais mercantilista do agro, deixando a produção de subsistência e familiar para a Secretaria de Desenvolvimento Agrário.
Desde então, projetos de empresários do setor do agronegócio foram atraídos, induzindo os produtores locais a trabalharem com novas culturas. Parte delas foram exitosas, como as flores e o maracujá e, mais recentemente, o abacate e o mirtilo, outras nem tanto.
"Foi uma inovação danada. Trouxeram tecnologias de Israel, de irrigação, e da Espanha, que foi o cultivo protegido, com estufa e telado para diminuir a incidência de pragas e doenças", afirma Inácio Parente, vice-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Ceará (Faec).
Atualmente, com o avanço tecnológico, outras modalidades de cultivo surgem e já são realidade em algumas propriedades da Ibiapaba. Exemplo disso é a agricultura de precisão, com utilização de drones, principalmente para pulverização de agrotóxicos.
Outro caso é o de substituição do solo natural por substrato artificial, como estrato de coco, especialmente em vasos dentro de estufas, para evitar doenças virais e bacterianas presentes no solo natural.
A fertirrigação é outra modalidade avançada, em que adubo e o fertilizante são incluídos diretamente na água de irrigação e aplicados na planta.
Reportagem seriada sobre culturas nobres em cultivo no Ceará