Imagine-se em um Cariri antigo, há 110 milhões de anos. A vista é daquelas de encher os olhos: o Paleolago Crato é de um azul mediterrâneo. Raso, vai no máximo até 40 metros de profundidade, com as águas doces habitadas por uma vida incansável. Insetos sem fim, piabinhas de nome Dastilbe nadando velozmente por aí, aventurando-se entre peixes maiores, tartarugas e sapos.
Enquanto admiramos a vegetação composta por mais de 200 espécies de plantas, uma sombra projetada no lago surpreende. É o pterossauro Ludodactylus sibbicki, com uma crista pontuda na cabeça e o bico decorado com dentes ameaçadores. Mais ao fundo do lago, passeiam também outros pteros: o Lacusovagus magnificens, com uma cabeça arredondada e bico pontudo, e o incrível Tupandactylus imperator, cuja crista colorida assemelha-se a uma coroa.
Encantados pelos répteis alados abocanhando peixes e plantas, mal percebemos a movimentação nas árvores às margens do lago. O dinossauro é emplumado da cabeça até a ponta do rabo, com pernas compridas, braços curtos e — ah! — penas parecidas a lanças saindo do torso. É um juvenil de Ubirajara jubatus, curioso como toda criança, ainda com cartilagens no corpo dando espaço para crescer. Agora, é do tamanho de uma galinha, mas ele não é ancestral direto delas.
Apesar das penas e do bico, ele é um dinossauro não-aviário; ou seja, não é do grupo do qual as aves evoluíram. O bico talvez fosse perfeito para o Bira comer pequenos calangos, mas será que é só isso? O que está por trás da vida do dinossaurinho cearense de 110 milhões de anos? Bom, é o que nos cabe descobrir.
Infelizmente para o Ubirajara que acompanhamos, ele morreu jovem. E assim como ele mal viu o mundo, nós ainda o conhecemos bem pouco.
É verdade, ele é famoso internacionalmente por ter movimentado a Paleontologia com um pedido de repatriação marcante. No entanto, quando o assunto é estilo de vida, biologia e até quão correta está a análise de penas saindo do torso do dino — tudo isso ainda precisa ser mais analisado.
Após morrer, o corpinho dele demorou alguns dias para ser soterrado, ficando em uma posição de morte tradicional, como ilustrado pelo paleoartista Julio Lacerda na imagem. No fóssil encontrado no Cariri, ficaram preservadas em duas placas as vértebras dorsais e frontais, a patinha dianteira e as marcas das plumas. A cabeça, as patas traseiras e um pouco do rabo se perderam. Quem explica é a paleontóloga Aline Ghilardi, em uma série de postagens no Twitter.
Ela também mostra onde estão as penas em forma de lança. É o tipo de informação que deverá ser reestudada para entender se de fato são penas ou alguma outra matéria preservada. Veja:
Apesar da possibilidade de narrar um Ubirajara em vida e em morte, nos faltam muitas peças. Entre elas, o nome: como a pesquisa responsável por descrever o Ubirajara jubatus foi retirada do ar, a espécie deixou de existir para a ciência. É como se o conhecimento sobre o dinossauro fosse apagado e ele voltasse para as gavetas de fósseis desconhecidos.
Por isso, é provável que você ache o nome do Ubirajara entre aspas (“Ubirajara” / “Ubirajara jubatus”) quando mencionado por paleontólogos. É um jeito de mostrar que esse nome científico é inválido. Ao O POVO, o diretor do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens (MPPCN) Allysson Pinheiro adiantou que a equipe para estudar e re-descrever o Ubirajara já está sendo montada.
“É uma equipe majoritariamente composta por cientistas brasileiros que estudam vertebrados, mas também com contribuições de cientistas estrangeiros”, afirma Allysson. “A gente não tá se fechando, muito ao contrário, a gente quer, sim, receber esses cientistas, que eles venham estudar nossos materiais e nos ajudem na compreensão da vida e desses materiais aqui. Mas esses materiais devem ficar aqui, é só esse o nosso nosso pedido. Porque aqui eles têm um uso diferente do que estar na gaveta em qualquer outro lugar”, defende.
Apesar de o trabalho não necessariamente demorar muito para ser produzido, o tempo de publicação é outro. Por isso, ainda não sabemos quando o Ubirajara voltará a existir para a Ciência — e nem se ele seguirá com o mesmo nome.
Como a pesquisa original foi retirada, o nome Ubirajara jubatus caiu em desuso e não pode ser novamente utilizado. “Se houvesse o gênero Ubirajara antes dele ser descrito (talvez pudesse manter o primeiro nome), mas como o gênero foi criado para ele, talvez tenha caído a composição”, diz.
E não é só uma simples descrição que vai sair das duas placas de Cariri. Há muito para se descobrir: como ele vivia, o que comia, qual era o papel dele no ambiente em que vivia… O que podemos descobrir das suas plumas e penas? “Tem muita ciência para acontecer!”, comemora o diretor do museu.
Inclusive, sairá também a resposta para a dúvida de alguns. Há quem pense que, talvez, o Ubirajara seja na verdade um Mirischia asymmetrica, um dinossauro caririense também emplumado e, pelo menos nas paleoartes, bem parecido com o Ubirajara, mas sem lanças saindo do torso. Quem sabe?
Exposto na sede do Geopark Araripe, no Crato, do dia 22 a 27 de junho, o fóssil do Ubirajara conquistou a todos. A exposição temporária aberta ao público foi inaugurada com um evento de apresentação do fóssil ao corpo discente da Universidade Regional do Cariri (Urca).
A ideia era mostrar a todos os alunos a importância da repatriação, o que envolveu a formação de um grupo de monitores para receber os mais variados curiosos. Entre eles, crianças de escolas do Ceará inteiro, como foi o caso dos mais de 60 alunos do Colégio Santa Cecília que viajaram de Fortaleza ao Crato só para conhecer o fóssil do Ubirajara jubatus na sexta-feira, 23 de junho.
“Eu achei os fósseis muito legais e a história também que eles foram pra Alemanha e depois voltaram é muito interessante”, contou o estudante do sexto ano Matheus Girão, 11, ao Geopark Araripe.
De lá, o Ubirajara seguirá caminho até o MPPCN, onde ficará exposto por um breve período. Vale lembrar que holótipos — os fósseis utilizados para descrever novas espécies — não ficam permanentemente em exposição para evitar danos.
Mas sem preocupações, você ainda terá oportunidade de vê-lo: o diretor Allysson Pinheiro garantiu que a instituição já está organizando a fabricação de réplicas do material. Assim, ele poderá ser apreciado pelo público com tranquilidade, assim como poderá ser compartilhado para outros museus do Brasil e do mundo.
Além da formação de parcerias científicas e da valorização da pesquisa regional, a presença do Ubirajara em Santana do Cariri (CE) é estímulo para o turismo.
O Cariri é conhecido no mundo inteiro quando o assunto é Paleontologia porque os sítios da Formação Crato (de onde veio o Ubirajara) são reconhecidos pela excepcional preservação de fósseis continentais. Essa região é classificada como um lagerstätte, palavra alemã que descreve ocorrências fossilíferas raras nas quais as condições de preservação de tecidos moles é extraordinária.
E não apenas pelos paleontólogos: ainda quando era adolescente, o espanhol Borja Holgado, pesquisador visitante da Urca, conheceu Santana por meio de um livro sobre pterossauros. “Os pterossauros de Santana”, diziam as palavras que o conquistaram para sempre e o levaram ao Brasil.
Mesmo sendo paleontólogo hoje em dia, ele conta sobre os amigos que seguiram diferentes carreiras e, mesmo assim, conhecem muito bem o Cretáceo daquela Santana encantadora.
Reportagens do O POVO exploram o universo dos fósseis do Brasil e do mundo