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O desafio do jornalismo no combate à desinformação
Reportagem Seriada

O desafio do jornalismo no combate à desinformação

Pesquisadores ouvidos pelo O POVO refletem sobre o papel do jornalismo profissional no enfrentamento da desinformação em um ano marcado por eleições e recuperação do quadro de pandemia de Covid-19
Episódio 1

O desafio do jornalismo no combate à desinformação

Pesquisadores ouvidos pelo O POVO refletem sobre o papel do jornalismo profissional no enfrentamento da desinformação em um ano marcado por eleições e recuperação do quadro de pandemia de Covid-19
Episódio 1
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No filme “Não olhe para cima”, dois cientistas tentam alertar o mundo de que um cometa irá colidir com a Terra, destruindo toda forma de vida. Apesar disso, há quem não apenas desconfie da verdade factual empiricamente comprovada, mas dissemine desinformação sobre a chegada do objeto, numa campanha cujo lema é fechar os olhos para a realidade. Ou, literalmente, não olhar para cima.

Negar a veracidade de informações que dizem respeito ao cotidiano e dão fundamento a consensos mínimos não é privilégio da ficção. Está no dia a dia de todos. No Brasil atual, há muitos tons de desinformação, todos mais ou menos ligados ao mesmo princípio: mobilizar audiências cativas a favor ou contra algum aspecto (urnas eletrônicas, por exemplo), normalmente a serviço de uma causa política.

Desafio para a coletividade, a desinformação se massificou e capilarizou, espalhando-se por outras plataformas, de acordo com pesquisadores ouvidos pelo O POVO. A fake news pontual de 2018 se sofisticou, dando lugar a um ecossistema desinformativo cujas peças, articuladas em rede, reiteram informação distorcida ou totalmente mentirosa.

O filme Não olhe para cima trata da disseminação da desinformação a ponto de ser feita campanha cujo lema é fechar os olhos para a realidade(Foto: Reprodução/Netflix)
Foto: Reprodução/Netflix O filme Não olhe para cima trata da disseminação da desinformação a ponto de ser feita campanha cujo lema é fechar os olhos para a realidade

Para eles, o ano de 2022 é um teste de fogo para o jornalismo no enfrentamento desse problema, que requer pactuação institucional e empenho da sociedade a fim de reduzir seu potencial nocivo.

Como parte das comemorações do seu aniversário de 94 anos, O POVO convida a refletir sobre o papel do jornalismo no combate à desinformação num contexto eleitoral no qual os efeitos da pandemia de Covid-19 ainda estão sendo sentidos.

Assista ao vídeo "Não é fake news, é desinformação"

Professora e pesquisadora do programa de pós-graduação em Comunicação Social da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), no Rio Grande do Sul, Raquel Recuero é uma especialista no ambiente de propagação de desinformação nas redes sociais. Segundo ela, diferentemente de alguns anos atrás, hoje esse tipo de conteúdo fraudulento segue um fluxo em rede, ou seja, está presente em múltiplos canais e plataformas, que se comunicam e alimentam.

“Não é uma coisa única, não é só um tipo de conteúdo. Desinformação não é só um conteúdo com algum tipo de falsidade que está circulando, ela também passa pelo reforço desse conteúdo por opinião, por exemplo”, explica.

Recuero cita o exemplo das vacinas contra a Covid: “A gente vai ver desinformação sobre vacinas dizendo para as pessoas que, se elas tomarem, vão implantar um chip no cérebro delas. Essa desinformação vai circular, mas vai circular também um líder de opinião dizendo alguma coisa do tipo: eu não vou me vacinar porque não quero que tenha um chip no meu cérebro”.

Nesse processo, continua a docente, os meios se complementam, e a desinformação propagada por um site ou blog ganha chancela discursiva de algum líder, seja político ou influenciador digital – ou mesmo do presidente da República, como aconteceu com a campanha de vacinação no Brasil, alvo de boicote sistemático de Jair Bolsonaro (PL).

Vacinação contra Covid-19: alvo de campanhas de desinformação(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Vacinação contra Covid-19: alvo de campanhas de desinformação

“É uma coisa sistêmica”, acrescenta a professora, “não é só desinformação, mas é a desinformação, a opinião do influenciador que reforça essa desinformação, são as fazendas de robôs, as contas automatizadas que ficam repassando essa desinformação no Whatsapp e em vários canais do Youtube ou mesmo dentro do Facebook, em várias páginas ao mesmo tempo”.

Jornalista e autora de “A máquina do ódio”, Patrícia Campos Mello identifica nessa amplitude da desinformação e no seu escoamento por diferentes meios um elemento que torna mais difícil a tarefa do jornalismo profissional no país. Uma das primeiras a denunciar a estratégia de disparos em massa do então candidato Bolsonaro, Mello avalia que, comparativamente com 2018, quando o assunto surpreendeu a todos, agora “temos uma infinidade de blogs e sites governistas que funcionam como braço de propaganda do governo, sites e blogs de extrema-direita, alguns que emulam sites noticiosos”.

A jornalista resume o modus operandi desses grupos que atuam em conjunto, potencializando o poder de alcance e de estrago sobre as relações sociais: “Eles empacotam as notícias ou de uma forma que beneficie o governo ou mesmo com desinformação, descontextualizando e espalhando notícia falsa”.

Para ela, não há dúvida de que se trata de um “ecossistema usado para corroborar as mensagens e as campanhas de desinformação que estão tentando emplacar” a partir de um centro de comando com a finalidade expressa de desequilibrar ou corroer o tecido democrático.

Jornalista Patrícia Campos Mello(Foto: Alice Vergueiro/Abraji)
Foto: Alice Vergueiro/Abraji Jornalista Patrícia Campos Mello

Essa mudança, elas concordam, impõe um novo desafio: acompanhar a produção e disseminação da desinformação não apenas mais de perto, mas a partir de uma variedade de ferramentas, algumas das quais se notabilizam por dificultar o trabalho de monitoramento em si, como é o caso do Telegram.

“O Whatsapp ainda é dominante”, analisa Mello, “mas o Telegram cresceu muito, inclusive por incentivo do presidente Jair Bolsonaro e de aliados que estimulam os apoiadores a migrarem para lá”, tirando proveito da total ausência de moderação no aplicativo.

“O Whatsapp fez mudanças no produto, adotou canais de denúncia de desinformação. Já o Telegram não tem nada disso e não tem nenhuma interlocução com nenhuma autoridade. O espírito do aplicativo é esse, por isso foi abraçado pela extrema-direita”, diz a jornalista.

Nesse cenário, as instituições estão prontas para responder a esse desafio, entre elas o jornalismo, a sociedade civil e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário? Recuero e Mello dão respostas diferentes.

 

 

“Considero que as instituições conhecem mais a desinformação, mas acho que a gente ainda tem um esforço público muito pobre, no sentido de lutar contra a desinformação”, opina Recuero, para quem a questão da vacinação é caso emblemático.

“A gente está vendo que tem muitos estados no Brasil onde a vacinação ainda está baixa e onde as pessoas não retornam para a segunda dose. Ainda há muita desinformação, muitas pessoas não se vacinaram. Acho que a gente ainda está fazendo isso institucionalmente de modo muito modesto”, aponta.

Mello acredita que “as instituições estão mais conscientes”, principalmente depois de “algumas mudanças em relação ao TSE”, a quem cabe apurar e aplicar sanções a candidatos que se valham de desinformação durante a campanha eleitoral.

“Em 2019”, afirma a jornalista, “o TSE adotou uma resolução dizendo que era proibido o uso de disparos em massa pelo Whatsapp e neste ano tivemos decisão do TSE que resolveu não cassar a chapa de Jair Bolsonaro e Mourão, mas estabeleceu uma jurisprudência dizendo que quem usar isso poderá ter a chapa cassada”.

Esses precedentes são importantes, ela ressalta, mas “não está totalmente claro como vão provar que houve dano suficiente para merecer uma cassação ou impugnação de candidatura”.

 

 

“Desinformação é um processo”, afirma editor do Comprova

Editor do Projeto Comprova, um trabalho colaborativo de verificação coletiva de notícias do qual O POVO faz parte, o jornalista Sérgio Lüdtke afirma que a desinformação é um processo continuado, com muitas etapas e funções.

“Não é com uma peça de desinformação que se forma convicção. Isso é feito ao longo de um tempo, é um processo. Começa com um tipo de mensagem que traz coisas verdadeiras, as pessoas sabem que são verdadeiras, e isso transforma a peça de desinformação em algo verossímil”, explica Lüdtke.

O passo seguinte, ele afirma, é ir “enviesando aos poucos, cercando as pessoas para que estejam num grupo que pense da mesma maneira, e um vá reforçando as opiniões dos outros, sem debates”.

 

 

Formados os grupos, eles “vão recebendo uma ração diária de desinformação, que tem coisas que são verdadeiras, mas, nesse momento, esses grupos estão tão convictos, que não é mais necessário mentir, trazer boato ou coisas que são falsas”.

“Eu só trago dúvidas, lanço interpretações e suposições, teorias conspiratórias, que esse grupo está preparado para ser receptivo a esse tipo de mensagem”, aponta.

Esse é um resumo simplificado de como opera um núcleo básico de desinformação, com uma audiência engajada progressivamente num tipo de conteúdo enviesado — ou fraudulento — cuja produção já dispensa inclusive elementos de verossimilhança, conforme o jornalista.

Qualquer semelhança com o discurso antivacina não será mera coincidência.

“Essas pessoas nem se abastecem mais de fatos. Fatos e dados não são hoje mais necessários”, continua Lüdtke, acrescentando: “O que me parece é que a gente já tem uma comunidade ou grupos de população que foi enganada pela desinformação, que basta hoje levantar uma dúvida para que essas pessoas confirmem suas certezas”.

Nem sempre foi assim. Durante a campanha de 2018, as fake news custavam mais tempo e empenho de quem as produzia. “Alguns conteúdos eram muito sofisticados, conteúdos complexos, que a gente teve dificuldade para fazer investigação”, lembra o editor do Comprova.

 

 

A partir do ano seguinte, o grau de sofisticação da mensagem falsa cai. O conteúdo se empobrece em favor de sua maior transmissibilidade. As táticas variam, e as mensagens se tornam mais básicas – frases seguidas de alguma imagem sem qualquer nexo com o texto, por exemplo.

“Em 2019 é como se eles passassem a explorar conteúdos mais simples. Foi uma opção pela simplificação, o que me pareceu que teriam chegado à conclusão de que não precisa sofisticar demais a produção de uma peça de desinformação. Pode sofisticar as táticas, mas usando conteúdos muito simplórios”, analisa.

Com a pandemia de Covid, esses grupos de desinformação consolidaram audiências, testando estratégias e ampliando alcance em outras plataformas, como o Telegram. É nesse sentido que a pandemia foi um laboratório, ressalta.

“A pandemia ofereceu uma oportunidade para que esses grupos se mantivessem ativos”, declara Lüdtke. “Vários desses grupos fizeram essa migração para a defesa de algumas coisas, se transformaram em grupos antivacina, tratamento precoce, contra isolamento etc. Dali a gente viu surgir mais desinformação.”

Sergio Lüdtke, editor-chefe do projeto Comprova(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Sergio Lüdtke, editor-chefe do projeto Comprova

O ambiente de hoje, projeta o editor, é de maior capilaridade e também de fronteira mais diluída entre mensagens opinativas e aquelas pretensamente noticiosas, o que adiciona mais um elemento que dificulta a checagem.

“Para nós, que lidamos com desinformação, que jamais admitiríamos abrir qualquer investigação sobre algo que não tenha fatos ou dados que possam ser confrontados ou investigados, isso é um desafio medonho”, considera.

Para o jornalismo profissional, a tarefa se tornou ainda mais delicada, mas o editor não tem dúvida de que é possível ganhar esse jogo.

“Isso exige do lado de cá uma dinâmica que reaja a esse estado de coisas. Como reagimos? Isso nos obriga a abrir um pouco mais o leque. A gente não pode mais só se se fixar na mensagem em si. A gente precisa olhar o contexto de quem está publicando aquilo e olhar o efeito. Olhar o efeito passou a ser obrigação”, conclui.

 

 

Jornalismo declaratório também colabora com desinformação

Professora e pesquisadora do Curso de Comunicação Social da UCPel, Raquel Recuero inclui o jornalismo entre agentes que podem colaborar com a disseminação de desinformação.

Segundo ela, “às vezes a imprensa muitas vezes usa o jornalismo declaratório”, de maneira a fazer parecer que está endossando discursos mentirosos ou negacionistas.

“A mídia tradicional diz: ‘Fulano disse que, se tomar vacina, vai implantar o chip no cérebro’. Embora a matéria desdiga essa manchete, por causa do ‘zero rating’, muitas pessoas só acessam no Facebook ou Whatsapp, não conseguem entrar na matéria ou não querem”, alerta a professora.

A pesquisadora ressalta que, por força de hábitos de consumo de notícias ou mesmo falta de interesse, uma parte da audiência se satisfaz apenas com o título de reportagens ou de artigos jornalísticos.

“Então essas pessoas entendem que essa manchete é uma legitimação da desinformação”, continua Recuero, “e isso também influencia” na consolidação de um ambiente de propagação de informação fraudulenta.

Nesses casos, a professora sugere que títulos cujos enunciados contenham frases de caráter sensível, como as que colocam a saúde pública em risco, sejam evitados, ainda que essas sentenças estejam expressamente atribuídas a uma fonte.

  • Edição Érico Firmo e Fátima Sudário
  • Texto Henrique Araújo
  • Identidade visual Amaurício Cortez
  • Edição de Arte Cristiane Frota e Isac Bernardo
  • Recursos digitais Catalina Leite e Wanderson Trindade
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