Ainda desconhecida pela própria população, a Caatinga um dia virou palco de expedição americana. Um hidroavião saiu de Milwaukee, no estado de Wisconsin, nos Estados Unidos, e sobrevoou a América Central até o Ceará. À bordo, o dono da S.C.Johnson, Herbert Johnson, e mais quatro tripulantes.
O objetivo era apenas um, encontrar carnaubais. A S.C.Johnson usava cera de carnaúba em massa na empresa, um produto tão valioso que valia a viagem de 24.000 quilômetros de ida e volta.
Foi uma excursão que mudou a vida de Johnson e, décadas depois, de milhares de famílias. Afinal, foi dessa família que surgiu a Associação Caatinga, uma organização não governamental (ONG) focada na preservação, restauração e conservação do único bioma endêmico do Brasil.
Em comemoração ao Dia Nacional da Caatinga, 28 de abril, conversamos com o diretor-executivo da associação, Daniel Fernandes, sobre conservação ambiental, justiça social e o impacto da Caatinga na percepção de mundo de quem tem a oportunidade de conhecê-la por inteiro.
Aos 43 anos, ele é bacharel em Direito e especialista em gestão estratégica de empresas, carregando 25 anos de vivências dentro da ONG, do estágio à gestão.
O POVO - Como foi sua infância?
Daniel Fernandes - Como eu vim parar aqui, né? (risos) Eu nasci em Fortaleza, mas com um ano de idade fui morar em Redenção, na região do Maciço de Baturité. Meu pai é de lá, minha família paterna, e a da minha mãe é de Jucás, que fica próximo a Iguatu.
Eu fiquei até 7 anos de idade e eles se separaram, aí eu vim morar novamente em Fortaleza. Eu tinha convicção de que eu queria estudar Direito, e logo quando eu comecei a faculdade, surgiu a oportunidade de um estágio na Associação Caatinga.
Eu tinha 18 para 19 anos e era uma função de auxiliar de escritório, então eu fazia toda parte de serviços externos: banco, cartório, correios, agendar as visitas lá na (Reserva Particular do Patrimônio Natural) Serra das Almas, dar todo suporte para os pesquisadores…
E até então eu sabia muito pouco do que era a Caatinga, embora eu sempre tenha ido para o Interior dos meus pais, sempre fui minha adolescência inteira. Mas no meu imaginário não era a Caatinga como eu enxergo hoje, né?
Eu acho que a visão que eu tinha sobre a Caatinga é o que infelizmente grande parte da população ainda tem: de que é um ambiente que tem bastante escassez hídrica, é um ambiente inóspito, com pobreza, com muitas dificuldades e mazelas… É o solo rachado, é a caveira do boi morto (risos).
Enfim, aquilo que os próprios livros retratavam para a gente quando a gente estudava. Ia passando as páginas de outros biomas e era aquela floresta exuberante; a Catinga era aquele ambiente pedregoso, com cacto, calango, sol, um ambiente muito árido, enfim. E essa era a visão que eu tinha até entrar na Associação Caatinga.
Aí eu fui contaminado, como a gente diz aqui, pelo vírus do bem, da conservação da Caatinga. Desde então, eu pude ver não só a riqueza biológica, de fauna e flora, mas também a riqueza cultural.
As pessoas que vivem nesse ambiente não querem sair de suas residências, de suas comunidades, não querem vir para grandes centros urbanos como Fortaleza ou ir para Rio, São Paulo. Mas elas precisam de condições, né, de uma sobrevivência digna no ambiente onde elas vivem.
OP - Nisso a Associação Caatinga existia mais ou menos há quanto tempo?
Daniel - A associação foi fundada em outubro de 1998, eu entrei em janeiro de 2003. Tinha mais ou menos 5 anos, 4 anos e pouquinho de atuação. Eu entrei bem no início e hoje a gente tem uma equipe composta por 29 colaboradores.
Só tem um colega que é o Marcos (Moureira), que é o guarda-parques lá na Serra das Almas, ele é mais antigo do que eu. Ele entrou em novembro de 2002. Então, somos veteranos aqui da associação. E isso me dá uma visão privilegiada de poder ver vários momentos de transformação dentro da própria instituição.
Momentos de mais dificuldade, de falta de patrocínio, momentos em que a gente tem uma carteira maior de projetos que a gente pode atender um maior número de pessoas… Eu tive o privilégio de ver todo esse crescimento institucional da Associação Caatinga, e isso me fez tornar um cidadão também melhor, não tenho dúvida disso, de cuidar mais do meu ambiente, de influenciar mais em políticas públicas até onde eu posso.
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Hoje eu tenho um filho de 8 anos, vai fazer 9 anos, e ele já tem uma preocupação, um olhar muito diferente do que eu tinha quando eu era criança, ou até mesmo antes de entrar na associação. Hoje ele já diz que é um defensor da caatinga, que é um caatingueiro.
OP - E como foi a primeira vez dele na Serra das Almas?
Daniel - A primeira vez dele, ele tinha de dois para três anos. Ele ficou muito impactado com os bichos que ele viu. Macaco, aves em geral… Eu acho que foi um choque de realidade para ele, porque a gente vai muito para Jaguaribe, que é a terra dos avós maternos e Jaguaribe é uma das áreas de desertificação aqui do Ceará.
Então, você não vê aquela floresta exuberante de caatinga, mesmo para ele novinho, eu acho que foi um choque de realidade. E eu levei agora em janeiro deste ano, cinco anos depois, ele já com 8 anos, com uma maturidade um pouquinho maior, ele já estuda na escola o que é Caatinga, então já começou a fazer conexões, né?
“Papai, essa nascente aqui é importante a gente preservar, porque ela vai ajudar os bichos e as pessoas que moram aqui no entorno”. Ele já cria essas conexões, né? Foi impactante.
OP - A sua primeira vez lá foi assim também?
Daniel - Eu entrei na associação em 2003, mas demorou um pouco para eu ir. Acho que depois de 6 ou 7 meses que eu estava trabalhando que eu pude ir lá para Crateús, onde fica a Serra das Almas.
Não tinha a infraestrutura que tem hoje, em termos de comunicação, acesso à energia. Era um ambiente mais isolado do que é hoje ainda. Se agora a gente leva 50 minutos do centro de Crateús até lá, a gente levava quase 2 horas antes, era muito ruim.
Mas assim, quando eu entrei, foi no período chuvoso. Na estrada principal da reserva, a gente tem árvores de um lado e do outro, e aí as copas delas se cruzam e formam um túnel. Quando eu vi aquilo, eu não acreditava que eu estava na Caatinga, que aquilo ali era Caatinga.
Embora eu já estivesse aqui há 6, 7 meses vendo algumas fotos, tendo contato com pesquisadores, com as pessoas que trabalhavam aqui… Mas quando você vivencia aquilo, toca o teu coração.
E assim, eu tinha muitas dúvidas ainda sobre a minha trajetória profissional. Eu sabia que eu queria cursar Direito, mas o que é que eu quero fazer da minha vida? Eu inicialmente tava no trabalho muito mais para dar um suporte à faculdade, ter condição de comprar um livro…
Mas aí comecei a me apaixonar pelo que eu faço, porque é diferente de uma empresa que você está visando o lucro de um proprietário ou de um grupo de acionistas. Aqui não, a gente tá em busca de um lucro socioambiental.
Você vê a família com mais dignidade, com acesso à água, que é uma coisa simples que a gente tem aqui, mas às vezes no Interior você não tem acesso à água, não tem acesso à energia, um alimento saudável. Então, você ajudar com essas questões, com um gesto simples, não muito caro, pode revolucionar a vida de uma pessoa.
Por exemplo, a dona Elisabete é uma pessoa que mora na comunidade de Jatobá Medonho, no Piauí, a comunidade mais próxima da Serra das Almas. Ela estava grávida e tinha que caminhar muitos quilômetros para ter acesso à água. E ela já estava cogitando ir para Crateús para poder criar a filha dela lá, enfim. Ia ter uma melhor condição de vida.
E aí a gente entrou com a construção de uma cisterna de placa para captar água da chuva e ela pôde criar a filha dela na comunidade em que ela e a mãe dela nasceram, junto com os amigos, familiares… Ou seja, com a tecnologia social relativamente barata, você ajuda na dignidade daquela família, de ter os laços afetivos ali com os amigos e família. Isso não tem preço pra gente.
OP - Geralmente as pessoas não ligam muito a conservação ambiental com a justiça social. Essa relação com as comunidades sempre foi um entendimento da Associação Caatinga ou ela precisou desenvolver isso?
Daniel - Ótima pergunta. A Associação Caatinga nasce a partir de uma doação de um cidadão norte-americano, chamado Samuel Johnson, ele já faleceu. Ele criou um fundo de conservação da Caatinga em gratidão ao que a carnaúba (Copernicia prunifera) proporcionou para ele e para os negócios da família, né?
O pai dele tinha feito uma expedição aérea, com um hidroavião, que saiu dos Estados Unidos para o Ceará para identificar a ocorrência de Carnaúba. Em 1935 ele chega, dois anos depois, 1937, ele monta a Fazenda Raposa, que é em Maracanaú, e começa a fazer uma série de experimentos. Em 1969, essa fazenda foi doada para a UFC, Faculdade de Agronomia.
Mas aí o Herbert Johnson, precursor dessa expedição, deixou um bilhete para o filho: “Eu espero que um dia você faça essa viagem, porque ela mudou minha vida.”
Aí o Samuel Johnson resolveu reeditar essa expedição, foi em busca do hidroavião. O hidroavião tinha sido vendido para Shell, a Shell prospectando campo de petróleo, teve um erro lá e afundou o avião. Ele montou uma expedição marítima com os filhos para localizar esse hidroavião, não conseguiu na época e mandou fazer uma réplica. E aí em 1998 ele chega aqui.
Em gratidão à carnaúba, ele criou um fundo com recurso pessoal dele e esse fundo viabilizou a compra da Serra das Almas, que são dez fazendas que a gente foi comprando a partir de janeiro de 1999, a última aquisição foi em 2015. Hoje ela tem 6.285 hectares, unificados na matrícula do imóvel.
Só que quando a gente adquire as áreas, a gente não tinha trilha, infraestrutura de comunicação, não tinha energia. Então, a partir de 99 até meados de 2002, a gente decidiu, internamente aqui na associação, que nós faríamos uma gestão de porteira fechada da Serra das Almas.
A Associação atuou muito nesses anos com aspecto conservacionista de focar na natureza, na conservação da biodiversidade e enquanto a gente não estruturasse a reserva, a gente decidiu segurar um pouco a relação com as comunidades do entorno.
Isso foi uma decisão que foi tomada lá atrás e gerou alguns ruídos de comunicação. Imagina, em 1998, você tá em Crateús e de repente chega um helicóptero, com um cidadão norte-americano… Esse cara quer fazer o quê? Tá comprando essas terras, não vai produzir nada. Comprando para preservar, isso não existe. Isso a gente tá falando em 1998, 26, 27 anos. Então, a comunidade não entendia bem.
“Ah, eles estão extraindo veneno de cascavel, estão fazendo clonagem humana.” Tinha muitos comentários. Quando a gente implementou toda a infraestrutura básica, a gente disse: "Chegou a hora agora de se envolver mais com a com as comunidades no entorno.”
Então, a gente cria um modelo integrado de conservação da caatinga. Nada mais, nada menos, envolve a conservação com a geração de oportunidades para quem vive no semiárido.
OP - O desenvolvimento dessas tecnologias ocorreu totalmente dentro da Associação Caatinga ou eram ideias que surgiram de outros locais, comunidades, estudos?
Daniel - A gente fez um mapeamento das comunidades com as quais a gente atua. Lá em Crateús são 40 comunidades, 30 no Ceará e 10 no Piauí. São cerca de 4 mil famílias. Por meio desse diagnóstico, identificamos quais eram as prioridades e as necessidades mais urgentes de cada família.
Aí a gente foi incorporando tecnologias que já existiam, adaptando à realidade local com a política de cultura. Hoje a gente tem, por exemplo, o sistema de bioágua, que utiliza água cinza da residência para a produção de alimentos.
Em algumas residências, temos um ciclo contínuo de conservação da água. Você capta a água da chuva, a armazena na cisterna de placa e a dona de casa usa para cozinhar os alimentos. Aquela água da cozinha é canalizada para esse sistema de água, que faz a filtragem e a água é utilizada em irrigação.
Nós instalamos hidrômetros, são cerca de 400 litros de água por dia que antes eram descartados, criavam lama, e aí tinha insetos… Hoje, essa água é usada para produzir os alimentos, favorecendo a segurança alimentar e a geração de renda, porque eles vendem o excedente.
Em algumas casas, tem também o canteiro bio-séptico, que é a fossa ecológica. A água do vaso sanitário vai para lá, onde a gente planta duas ou três bananeiras, e elas fazem o processo de evaporação, devolvendo a água para a atmosfera. É um ciclo contínuo de conservação da água.
Algumas são tecnologias que já existiam, como o secador solar desenvolvido pela Secretaria de Desenvolvimento Agrário, mas a gente aperfeiçoou alguns pontos.
OP - Comunicar a Caatinga é uma luta complexa, porque ao mesmo tempo que reforçamos que ela também é verde e frondosa, é preciso dizer que a seca não é um problema por si só, que a Caatinga também é bonita no período seco. Como vocês lidam com essa dualidade e o preconceito das pessoas com o bioma?
Daniel - Sim, isso é um processo histórico. A gente tem que romper algumas barreiras culturais. No próprio processo de povoamento da Caatinga foi muito incentivado, desde a época das capitanias hereditárias, invadir o Interior e ter principalmente a criação de animais. E isso favoreceu o processo de desmatamento e degradação do bioma.
A própria geração dos nossos pais, avós, dizia: “Rebola isso ali no mato.” Então, o mato era tido como um depósito de lixo, o mato era algo que não agregava em nada. O importante era desmatar para ter aquela produtividade, plantar e criar os animais.
Houve um processo de ocupação desordenada. Hoje a gente tem cidades com alta densidade populacional que, para sobreviver, vão depender de algum recurso natural ali.
E aí, quando a gente vai na Constituição Federal, tem o artigo 225 que trata sobre os biomas brasileiros, a Caatinga e o Cerrado não são reconhecidos como patrimônio nacional, em que pese a Caatinga sendo exclusivamente brasileira. Todos os outros biomas ultrapassam as fronteiras dos nossos países.
E aí você tem essa dicotomia que você falou: ao mesmo tempo que a gente tem que preservar a Caatinga, tem que desmatar para produzir. E é um problema grave, porque a gente já tem aqui no na Caatinga cerca de 13% do seu território em estágio avançado de desertificação. Então você não consegue mais produzir naquele solo.
Se cria um problema não só ambiental, mas social e econômico também, porque as famílias não vão poder tirar seu sustento ali da agricultura. Com isso, há outros fenômenos acontecendo, como algumas atividades econômicas que são extremamente predatórias para a Caatinga, como o agronegócio, que hoje é responsável por mais de 97% do desmatamento da Caatinga.
A carcinicultura, por exemplo, você desmata várias áreas da Caatinga, com uso excessivo de água, para o lucro de um grupo pequeno, mas o dano ambiental fica para a coletividade. Esse é o grande paradoxo.
A Caatinga tem 20% de reserva legal, na Amazônia são 80%. Então, qualquer pessoa que tenha uma propriedade, pode desmatar contanto que deixe 20% de reserva legal. Aí o que é que acontece? Você tem algumas regiões do Ceará, na implementação de parques de energia solar e eólica, que você tem uma área de 1.000 hectares, aí você deixa só 200 preservados e desmata 800 hectares para implantar um parque de energia solar, por exemplo.
Legalmente, o dono daquela propriedade não desconsiderou a lei. Ele tá ali com a reserva legal protegida, mas será que moralmente, ambientalmente falando, a gente pode se dar o luxo de perder 800 hectares de Caatinga? Não podemos.
Então, tem que ter política pública que incentive a criação de parques de energia solar em áreas já degradadas. Por que não fazer em Irauçuba? Mas aí o Estado precisa ter todo aquele aparato de linhas de transmissão, tem que estar sempre sempre um passo à frente.
O desmatamento para fins de energias renováveis cresceu 24% de 2022 para 2023 na Caatinga. E aí não é uma transição energética justa. Ou seja, a gente tem ainda uns paradoxos que a gente precisa superar.
OP - Tem uma pesquisa da UFC de 2022 que mostra que só 7,87% da caatinga do cristalino, que é essa caatinga que a gente tá mais habituado a imaginar, é protegida por unidades de conservação aqui no Ceará.
Daniel - Exatamente. E de todo o território da Caatinga, cerca de 1,3% a 1,5% é por meio de proteção integral. Porque as unidades de conservação têm duas categorias: de uso sustentável e proteção integral.
Uso sustentável, a gente vê lá no Maciço do Baturité, o que é essa problemática que tá tendo lá. Eu costumo dizer que é uma camada muito fina, sutil de proteção que você dá naquela área, né?
As de proteção integral realmente são as que têm um rigor maior, que você só vai ter possibilidade de ter pesquisa. Você não pode explorar nada, não pode tirar madeira, não pode ter construção… Os exemplos são esses parques. E aí a gente tem um número muito baixo, né? A ideia era que a gente pudesse ampliar isso.
A gente precisa analisar também a qualidade da gestão dessas unidades. Às vezes, você tem um gestor, uma única pessoa para cuidar de três unidades de conservação em locais geograficamente distantes, né? Não é uma que tá do lado da outra ali. Não tem como.
Lá na Serra das Águas, são seis guarda-parques, a gente tem uma cozinheira, um gestor e um analista ambiental. Essa estrutura toda empregada lá para proteger a Serra das Almas. Ainda está aquém da nossa necessidade, então imagina áreas maiores do que a Serra das Almas com um servidor lá.
OP - O que esse histórico diz sobre o interesse político-social na proteção da Caatinga?
Daniel - Eu acho que o interesse em proteger a Caatinga ainda é muito aquém do que necessitamos. Tanto social, como político. E isso é alarmante, né?
A gente vê, um dos relatórios de desmatamento anuais publicado pelo MapBiomas, tá crescendo o desmatamento. Ceará e Bahia foram, infelizmente, os campeões de desmatamento. No Ceará houve um incremento de 28% de um ano para o outro. Esse relatório novo deve estar saindo agora esse mês… Eu espero que a gente tenha conseguido reverter esse quadro, mas enfim, não sou tão otimista.
E a gente tem essa questão de colocar sempre um aspecto econômico no primeiro plano, isso é prejudicial. Acho que tem que estar tudo integrado. O aspecto econômico tem que fazer com que as pessoas enxerguem que é vantajoso manter a floresta em pé. Que a gente pode transformar alguns segmentos da economia ainda mais pujantes se a gente manter a floresta em pé.
E aí tem muitas coisas que, às vezes, a gente não associa, mas estão diretamente ligadas à crise climática. Nos últimos dois meses foi muito evidenciada a crise do preço dos alimentos. E, claro, há uma conjuntura política e econômica, fator dólar, enfim…
Mas mais recentemente a gente tá num problema muito sério na produção de cacau. O Brasil é apenas o sexto maior produtor do mundo de cacau, nós importamos muito de países da África, como Gana, como Costa do Marfim, que é o maior produtor, Nigéria, Camarões… E lá teve um problema sério que foi a estiagem.
A estiagem foi muito severa, não choveu na época que era para chover, e eles estavam com problemas com pragas. E aí é a lei da oferta e da procura, não teve cacau suficiente para atender a demanda do mundo todo. Então você eleva o preço.
Aí você tem o ovo. Ondas de calor afetando a produtividade das galinhas. Vai lá para o arroz, no Sul do Brasil com aquela enchente do ano passado. Então assim, a gente tem que parar e refletir sobre isso, e não ideologizar o meio ambiente.
Independente de partido ou ideologia partidária que você siga, acho que o meio ambiente tem que ser uma pauta principal, transversal em tudo que a gente faz. Senão a gente vai estar fadado a vivenciar cada vez mais catástrofes climáticas, problemas sociais, econômicos também.
A gente não se opõe ao desenvolvimento econômico, desde que ele seja sustentável. E a Associação Caatinga é um case interessante, porque ela foi criada por um industrial. Foi a partir de uma doação da S.C. Johnson, que explorava de forma sustentável Carnaúba.
Então, é possível atuar em conjunto, mas respeitando a capacidade, os limites. Não dá pra gente sair utilizando os recursos achando que são infinitos, quando não são.
OP - Eu fico curiosa como é o processo de gestão de uma associação. Porque o objetivo não é um lucro monetário, mas social… Como a associação se mantém de fato?
Daniel - É um grande desafio para qualquer organização no terceiro setor você assegurar a sustentabilidade financeira. Ao longo dessa trajetória da associação, a gente já teve alguns ciclos.
Ciclos de uma carteira maior de projetos, que aí você consegue ter uma equipe maior, consegue atingir um número maior de pessoas, de comunidades. Outros momentos a gente diminuiu, como na pandemia.
E aí o que a gente busca aqui é pegar elementos que são utilizados na iniciativa privada, ferramentas de gestão. Como planejamento estratégico, a gente fortalecer o desenvolvimento das pessoas também, ter uma uma boa gestão de equipe, a gente focar em avaliação de desempenho, a gente também tem ferramentas como o SROI, que avalia o retorno social do investimento.
A gente aplicou uma pesquisa dessa, em um projeto patrocinado pela Petrobras, e identificamos que para cada R$ 1 investido, há um retorno de 7,91 em valor socioambiental. Ou seja, gera quatro, quase oito vezes mais retorno.
E assim, eu acho que você ter a transparência, você fazer uma boa prestação de contas também faz com que você tenha projetos renovados, né? E que você também tenha novos parceiros na sua carteira.
Hoje nosso maior projeto se chama No Clima da Caatinga, que é patrocinado pela Petrobras e a gente tá agora no processo de renovação de uma quinta fase. Desde 2011 que a gente tem o patrocínio deles, e essa próxima fase será de 4 anos.
Mas a gente já teve parceiros como o BNB, a Fundação do Grupo Boticário, o Fundo Brasileiro de Biodiversidade (Funbio)... Essa taxa de renovação de projetos mostra que a gente tá no caminho certo de entregar aquilo que foi prometido no contrato; e na medida que possível a gente tenta superar essas metas.
Mas o desafio é muito grande para captar recursos. Hoje a gente tem uma mescla, né? São pessoas físicas que doam recursos para gente, nós temos a Petrobras como principal patrocinador, mas temos muitas outras empresas que contribuem com o nosso trabalho, como a própria S.C. Johnson.
E uma das linhas que a gente tem fortalecido muito é a consultoria. Muitas empresas demandam: “Ah, eu quero que você implemente um plano de um programa de educação ambiental na minha empresa.” Então, a gente vai e treina toda a equipe lá naquela empresa. A gente tem trabalhado também dessa forma.
Nosso grande desafio hoje é a gente implementar um fundo filantrópico que dê uma sustentabilidade financeira para a Associação Caatinga, que a gente possa ter um recurso aplicado e que a gente utilize só parte dos rendimentos da aplicação.
OP - E existe algum tipo de erro que as organizações ambientais podem cometer que realmente prejudique a sustentabilidade da ONG?
Daniel - Eu acho que sim. Se você não se atentar para essas ferramentas de gestão, se você não tiver um planejamento estratégico, um plano de comunicação, um código de ética, de conduta, um você tem um bom gerenciamento de talentos…
Na Associação Caatinga, a gente já passou por muitas curvas de aprendizagem. Por exemplo, a comunicação para a gente era despesa.
Você imagina numa estrutura de uma ONG, que tem recursos limitados, você ter uma assessoria de imprensa, você ter um profissional dentro do teu time cuidando desse setor? A gente enxergava isso como uma despesa. Não, esse banner o biólogo faz, uma apresentação aqui, eu faço; atualizar o site a gente faz, um contato com a imprensa, a gente mesmo faz.
Era de certo ponto amador. É o que muitas instituições pecam, não encaram algumas situações como um investimento, que às vezes demora para você colher esse fruto.
No nosso caso, somente em 2011 que nós incorporamos a comunicação, após submetemos um projeto para a Petrobras e ela dizer: "Não, vocês precisam ter uma equipe de comunicação, ter isso como custo previsto no orçamento de vocês. Porque vocês vão divulgar cada vez mais as ações de vocês, vão se tornar mais conhecidos e isso vai atrair mais voluntários, mais parcerias, isso vai ajudar a influenciar a política pública.”
E aí muitas ONGs não têm planejamento estratégico, não têm um plano de relacionamento institucional. Não adianta eu chegar até você, “olha, preciso do apoio do grupo O POVO”, mas eu não ter um relacionamento com o parceiro.
Não é da noite para o dia, mas eu conheço muitas organizações que têm uma missão, uma causa fantástica, propósitos incríveis, com pessoas sérias à frente, mas às vezes pecam por essa questão de não ter uma gestão pautada no próximo ano. A gente tem que gerir como se fosse uma empresa, mesmo sabendo que o nosso lucro, como você falou, é um lucro social, ambiental.
Fauna e flora
Para Daniel, responder quais planta e animal favoritos da Caatinga é fácil. Representando a flora, é a carnaúba: "Ela é a árvore da vida, é um aprendizado, uma árvore que arruma soluções." Já entre a fauna, o tatu-bola. "O tatu-bola é um ser emblemático, e está em extinção, porque ele tem uma estratégia defensiva fantástica como os predadores naturais, mas não contra os humanos."
Rede de ONGs
Em parceria com a Aquasis, a Associação Caatinga está trabalhando na reintrodução de periquitos-cara-suja (Pyrrhura griseipectus) na Reserva Natural Serra das Almas. "A gente atua muito na construção de redes. A gente pode ser bom em muitas coisas, mas em algumas questões a gente não tem habilidade, não tem experiência, não tem um profissional adequado para para estar à frente do processo."
Educação ambiental
Na Associação Caatinga, a educação ambiental virou um eixo transversal. Qualquer ação, do plantio de mudas à instalação de uma tecnologia social; dos bebês com menos de um ano de idade aos adultos; dos estudantes aos agricultores - a educação ambiental sempre estará presente.
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