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Cafu: o lateral que levou a periferia para o maior palco do mundo
Reportagem Seriada

Cafu: o lateral que levou a periferia para o maior palco do mundo

Capitão do penta e reserva do tetra, o ex-jogador é o atleta com mais jogos pela seleção brasileira da história. Longe dos campos, ele segue ligado ao futebol

Cafu: o lateral que levou a periferia para o maior palco do mundo

Capitão do penta e reserva do tetra, o ex-jogador é o atleta com mais jogos pela seleção brasileira da história. Longe dos campos, ele segue ligado ao futebol
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Junho de 1970. O sol do México ardia sobre os estádios e o mundo assistia, encantado, à dança magistral de Pelé e companhia em busca do tricampeonato mundial. Era o Brasil que sorria com a bola nos pés. E enquanto isso acontecia, bem longe dali, no Jardim Irene — periferia pulsante, ainda mais quente, da grande São Paulo — nascia Marcos Evangelista de Morais, mais um menino que alimentaria sonhos à margem.

Naquele momento, Cleusa Evangelista nem imaginava que seu parto era quase uma coincidência cósmica, um prenúncio. Marcos se tornou meio-campista, depois lateral. Posteriormente, tornou-se Cafu devido comparações com o ponta Cafuringa, que jogou nos anos 70. O apelido, por sinal, foi consagrado com o passar do tempo. Não apenas vestiu a Amarelinha que encantava a todos quando veio ao mundo, mas escreveu seu nome entre os imortais que tiveram a mesma honra.

Marcos Evangelista de Morais tornou-se Cafu devido comparações com o ponta Cafuringa, que jogou nos anos 70(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Marcos Evangelista de Morais tornou-se Cafu devido comparações com o ponta Cafuringa, que jogou nos anos 70

Em 2002, após já ter sido campeão do mundo em 1994, ergueu os braços ao céu no estádio internacional de Yokohama, no Japão, em posse do objeto mais cobiçado do planeta. Ofereceu ao mundo uma imagem que valia por mil discursos: o menino da periferia, já tetra, com a braçadeira de capitão e o troféu do pentacampeonato mundial. Um gesto que não era futebol — era metáfora. Era a vitória de um Brasil profundo, por vezes invisível, que ali ganhava voz, forma e potência.

Mais de duas décadas se passaram desde aquele instante. A imagem de Cafu, exaltando o Jardim Irene no principal momento de sua vida, permanece gravada na retina do país. Mas hoje, longe dos gramados, o eterno capitão do penta revela outra face — a do homem atento, que mantém a forma, mas que hoje pensa o futebol sem entrar em campo.

Ao O POVO, o bicampeão mundial fala com serenidade sobre a seleção brasileira, assunto que domina como ninguém — é o jogador que mais vestiu a Amarelinha na história. O passado glorioso, o presente inquieto e um futuro que, embora nebuloso, ele insiste em acreditar que pode ter brilho próprio, principalmente conquistando uma nova estrela para o peito. E ao se manifestar, Cafu não lamenta — aponta. Porque nele, o que há não é saudade oca, mas memória ativa.

Sobre o Jardim Irene, ele diz que foi tudo. Escola, abrigo e espelho. Deu-lhe a malícia do jogo e a dignidade do gesto. Morador de periferia, negro e pobre, como descreve, sem rodeios, lembra que não era um bairro que oferecia meios para formar jogadores, mas oferecia algo mais essencial: respeito. Conta como a sua identidade futebolística começou a ser moldada.

Cafu fala com sobriedade e afeto sobre a família. Lembra do pai — firme, mas generoso. Da mãe — preocupada com o sustento. E de Maurício, o irmão canhoto, mais talentoso, mas que, por amor e lucidez, abriu mão do próprio sonho para que o caçula pudesse seguir adiante.

Fala também do apagamento da identidade do futebol brasileiro. Do próprio estilo, da alma. Critica regras que podam a habilidade, olha para as categorias de base com espanto, como quem vê robôs sendo criados no lugar de jogadores criativos, afirmando que não se pode ensinar tática a quem ainda nem aprendeu a sorrir jogando.

No fim, volta ao que sempre o moveu: o coletivo. O time. O grupo. Recorda com reverência Telê Santana (1931–2006), que viu nele o lateral que ele mesmo não sabia ser. E do Milan, que manteve intacta sua confiança mesmo após a traumática derrota nos pênaltis na final da Liga dos Campeões de 2005. Em todo momento, trata o futebol como memória, identidade e aprendizado. Como trincheira e palco. E quando fala, a impressão que se tem é de que ele ainda está em campo. Correndo pelo lado do campo, jogando aberto como sempre.

 

 

O POVO - Como foi sua infância no Jardim Irene? Quais valores e princípios você aprendeu morando lá?

Cafu - O Jardim Irene me deu tudo. Tudo que eu tenho, quem me deu foi o Jardim Irene. O aprendizado, a malandragem, a cultura. Tudo começou nos campinhos, jogando no Guarani, no Vasquinho, no Juventude, que foram os times que eu joguei lá.

O Jardim Irene sempre me respeitou e eu sempre respeitei o Jardim Irene. Eu montei uma fundação no próprio Jardim Irene para mostrar o quanto de carinho e de respeito eu tenho por aquele povo. O pior momento da minha carreira eu vivi lá, onde eu não tinha condições de treinar e as pessoas me ajudavam.

Morador de periferia, negro, pobre, sem condições. Era um bairro que não te dava as condições que você tinha que ter para que você pudesse ser um jogador de futebol, mas me deu muito respeito, muita dignidade. Por isso que o Jardim Irene faz parte da minha história, faz parte da minha vida.

Quadro que mostra o momento em que Cafu levanta a taça do pentacampeonato mundial(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Quadro que mostra o momento em que Cafu levanta a taça do pentacampeonato mundial

OP - E como você vê o poder do esporte em situações como essa?

Cafu - O esporte é uma ferramenta de inclusão social impressionante. No meu caso, o esporte, o futebol, me deu tudo. Me deu vários idiomas, me deu culturas diferentes, me fez conhecer o mundo, fez com que o mundo conhecesse o Jardim Irene, isso tudo através do esporte. Então, sou muito grato ao esporte.

OP - Você lembra quando o futebol deixou de ser um lazer e virou uma dedicação? Quando foi a "virada de chave"?

Cafu - Para mim já começou na barriga da minha mãe, porque eu nasci em 1970 , em plena Copa do Mundo Ano em que o Brasil conquistou o tricampeonato mundial, com aquela que é tida como a melhor seleção da história. Foi a ainda o último título brasileiro sem Cafu , então já estava no DNA já, né? Mas virou a chave a partir dos 10 anos, quando eu vi que realmente a bola fazia parte do meu cotidiano.

É óbvio, quando você vai para a escolinha de futebol, você começa a ter uma base, começa a ter uma estrutura melhor. Ali você começa a ver que aquilo ali seria a transformação da sua família.

OP - Qual foi a reação da sua família quando você falou que queria ser jogador?

Cafu - Uma coisa que meu pai sempre deixou claro era aquilo que eu queria ser e até onde ele poderia me apoiar. Nós somos uma família com seis irmãos e um de nós tinha que abrir mão de jogar futebol para poder ajudar na renda da família.

Em casa, eu não era o melhor, o melhor era o meu irmão do meio, Maurício, canhotinho e jogava muito. Mas, eu era o mais aplicado, o mais determinado e com mais fome de futebol, amava treinar.

O Maurício falou: 'Pai, eu quero jogar futebol porque eu quero jogar futebol e tentar alguma coisa, mas o Marcos (Cafu) não. O Marcos, ele ama futebol, ele discute, ele treina, ele se dedica. Talvez eu não tenha a mesma dedicação do que ele. Então eu abro mão, deixo o Marcos dá sequência e vou trabalhar para ajudar em casa.'

Mesmo com todas as dificuldades, o meu pai nunca fez com que eu desistisse daquilo que eu queria, que era ser jogador de futebol. Ele só me dava uma direção. 

A minha mãe sempre era aquela com: "Célio, esses meninos precisam trabalhar", e meu pai: "Não, deixa o Marcos dar sequência e nós conseguimos aqui com todos os outros meninos".

Então, eu sou muito grato a eles, eu sou muito grato a meu pai, a minha mãe, aos meus irmãos, por isso que eu tenho uma família tão perto até hoje, porque se não fosse o apoio deles, talvez eu não seria o Cafu que eu sou.

Cafu (dir.) durante final do Mundial de Clubes da Fifa em 1992
Foto: Acervo do São Paulo FC/ Michael Serra /Arquivo Histórico João Farah
Cafu (dir.) durante final do Mundial de Clubes da Fifa em 1992

OP - E como foram os primeiros passos? Como era o dia a dia do jovem Marcos que queria ser jogador?

Cafu - Os primeiros passos são sempre mais difíceis, né? Era acordar 4h30min, pegar um ônibus às 5 horas, chegar no Vale Anhangabaú às 7h40min, pegar um trem pra ir pra Itaquaquecetuba, treinar todos os dias e voltar. A nossa rotina de treinamento era essa.

Não tinha condições de pagar passagem todos os dias, não tinha condições de treinar todos os dias, mas eu ia da mesma maneira. Mesmo sem ter dinheiro, me virava, passava por baixo da catraca, descia pela porta de trás do ônibus, mas nunca deixei de fazer aquilo que eu queria. 

Eu sabia que aqueles obstáculos seriam importantes para que eu desse o pontapé inicial na minha carreira.

OP - Assim como em algumas profissões, um jogador muitas vezes abre mão da sua juventude para chegar ao topo. Como você reagia quando via seus amigos indo para festas e aniversários enquanto você tinha que treinar?

Cafu - Cara, para mim foi muito fácil. Morador de periferia, todo dia tem um bailinho, tem uma festinha. Todo dia tinha uma atividade diferente, principalmente nos finais de semana.

Nós não vemos a hora de chegar no final de semana para reunir todo mundo para jogar futebol ou ir para uma festinha. Mas quando eu sabia que tinha jogo no dia seguinte, eu não ia. E os meninos me respeitavam. Essa foi a diferença do Jardim Irene. É por isso que eu dou tanto valor ao Jardim Irene.

 

"Eu não queria ser só um jogador de futebol. Eu queria ser um atleta profissional."

 

Quando tinha festa os meninos já falavam: "Marquinhos não vai, né?". Eu respondia: "Não vou", e eles nem insistiam, mas isso vai muito de cada um. Você falou uma coisa que é verdade. Existe uma diferença muito grande entre o atleta profissional e o jogador de futebol. 

Eu não queria ser só um jogador de futebol. Eu queria ser um atleta profissional. E o atleta profissional é o cara que vai abrir mão de ir pra festinha, ir pro bailinho, de beber, de sair com a namorada. Eu sempre tive essa responsabilidade de atleta.

'Eu sabia que aqueles obstáculos seriam importantes para que eu desse o pontapé inicial na minha carreira.'(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES 'Eu sabia que aqueles obstáculos seriam importantes para que eu desse o pontapé inicial na minha carreira.'

OP - Conta um pouco do seu começo no São Paulo, principalmente quando ganhou a confiança do Telê Santana. 

Cafu - A minha relação com o Telê era fantástica. Eu falo que juntou a fome com a vontade de comer. Porque ele amava dar treino e eu amava treinar. Amo treinar, tanto é que eu treino até hoje. Então eu chegava 40 minutos antes e saía 40 minutos depois.

Quando eu chegava antes, aproveitava para perfeiçoar algo que tinha com um pouco mais de dificuldade. Por exemplo, os goleiros chegavam 40 minutos antes pra treinar batida de bola. Então enquanto os goleiros treinavam isso, eu ficava treinando domínio e o passe. 

Em um determinado momento, o Zé Teodoro machucou e o treinador falou assim: "Cafu, quebra o galho pra mim ali na lateral, domingo você vai jogar na lateral". Eu joguei, aí chegou na segunda-feira e ele falo: "Olha, eu acho que não vai dar tempo da gente contratar um lateral até o final do campeonato e você vai jogar ali até o final do campeonato".

Cafu (esq.), Raí (meio) e Telê Santana (dir.)
Foto: Acervo do São Paulo FC/ Michael Serra /Arquivo Histórico João Farah
Cafu (esq.), Raí (meio) e Telê Santana (dir.)

Falei: "Professor, eu não sou lateral, eu sou meia, estou na cara do gol toda hora com o Raí, fazendo gol, dando passe". Ele falou: "A única pessoa que eu vejo fazendo essa função hoje aqui é você. Você tem condicionamento físico, ataca, defende, tem habilidade, lê bem o jogo". 

Aí passou o primeiro jogo, joguei bem. Segundo jogo, joguei bem. Terceiro jogo, joguei bem. Eu comecei a me aperfeiçoar na lateral, fazer a ultrapassagem, tocar e sair, dominar a maneira de bater.

OP - E o primeiro momento na seleção? Foi chamado muito novo, com apenas 20 anos. Hoje em dia existem críticas sobre a quantidade de jovens nas convocações...

'A minha relação com o Telê era fantástica. Eu falo que juntou a fome com a vontade de comer. Porque ele amava dar treino e eu amava treinar.'(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES 'A minha relação com o Telê era fantástica. Eu falo que juntou a fome com a vontade de comer. Porque ele amava dar treino e eu amava treinar.'

Cafu -  Você só vai conhecer um jovem e saber se ele tem capacidade ou não se você der responsabilidade pra ele. Se você não der responsabilidade pra ele, vai ser um jovem sempre. Você sempre vai passar a mão na cabeça dele e achar que ele é um menino. 

Eu sou do ponto de vista que tem que dar oportunidade, tem que fazer ele se inserir gradativamente no ambiente, ver como funciona, ver como é o ambiente de seleção brasileira, estar na frente dos seus maiores ídolos.

Quando cheguei na seleção brasileira tinha o Jorginho. Eu falava: "Deixa eu ver o Jorginho treinar, deixa eu ver como é que ele bate, como é que ele se posiciona, como é que ele reage, como é que ele fala com todo mundo". Eu cresci vendo esses caras, e para mim não era vergonha, porque eu estava chegando.

OP - Entrando no assunto seleção, como você enxerga a nova safra de laterais? A torcida em geral diz que não existem mais laterais como antes.

Cafu - Eu vejo grandes laterais hoje, tanto direito como esquerdo também, mas cabe ao treinador definir. Quando o treinador definir, esse próprio lateral vai se sentir mais importante. Ele vai saber o tamanho da responsabilidade que ele tem.

Quando se fala de Cafu e Roberto Carlos, nós ficamos 16 anos na seleção brasileira. Nós criamos uma identidade com a seleção, assim como Ronaldinho, Rivaldo, Ronaldo, Lúcio, Marcos. 

Hoje eu não sei quem são os titulares da seleção brasileira. Então falta identidade. Falta até treinador. Se nós não temos um treinador, nós não temos como definir uma seleção. Se nós tivéssemos hoje um padrão de jogo já fixo, um treinador que você falasse: "Olha, você tem quatro anos para fazer um trabalho com começo, meio e fim, e eu quero um padrão de jogo, eu quero uma seleção onde ela vai se identificar para o povo brasileiro".

OP - Qual o principal problema que você identifica no comando da seleção brasileira hoje?

Cafu - Eu sou contra mandar treinador embora, sou "super" contra. Uma vez que você contratou um treinador e deu oportunidade pra ele, tem que ser do começo até o final. Porque você nunca vai saber se um treinador é bom ou não se você interromper o trabalho dele na metade do caminho. O trabalho do (Fernando) Diniz foi interrompido depois de um ano. Para mim, não é justo.

'O povo brasileiro começa a entender quem são os jogadores titulares da seleção brasileira hoje. Hoje nós não sabemos quem é.'(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES 'O povo brasileiro começa a entender quem são os jogadores titulares da seleção brasileira hoje. Hoje nós não sabemos quem é.'

Se você vai dar o comando da seleção brasileira pra um treinador estrangeiro, dá pra um brasileiro. Mas dá e fornece condições. Ganhando ou perdendo, ele vai estar lá durante quatro anos pra fazer um trabalho. Se for qualquer treinador estrangeiro, você não vai mandar ele embora daqui a um ano, vai? Essa paciência tem que ter com os nossos também.

A seleção brasileira vai para a Copa do Mundo? Vai. Vai ganhar jogo? Vai. Vai perder jogo? Vai. Vai jogar bem? Vai. Vai jogar mal? Vai. Vai empatar? Vai. Vai ser criticada? Vai. Vai ser elogiada? Vai. Baseado nisso, nós vamos para a Copa do Mundo.

Então define um treinador e fala para ele: "Olha, independentemente de jogar bem ou mal, de ganhar ou perder, você vai para a Copa do Mundo, mas até a Copa do Mundo eu preciso ter um padrão de jogo".

Aí você começa a criar identidade. O povo brasileiro começa a entender quem são os jogadores titulares da seleção brasileira hoje. Hoje nós não sabemos quem é. Nós não repetimos um time desde a última Copa do Mundo. 

OP - E qual técnico você acha que tem credenciais para estar à frente do Brasil em uma Copa?

Cafu - Não foi justo com o Diniz ter mandado embora, como não foi justo com o Dorival (Júnior) ter mandado ele embora. Aí vão me trazer outro treinador achando que vai resolver o problema de um dia para o outro com a seleção brasileira? Pode ser que não dê certo. Nós estamos há um ano e meio da Copa do Mundo.

Eu daria o cargo para um treinador brasileiro. Tem o Rogério Ceni, que vem fazendo um grande trabalho. Tem o Renato Gaúcho, que há muito tempo já vem fazendo um grande trabalho no Grêmio, mas já assinou agora com o Fluminense. 

Dá-se a responsabilidade a um brasileiro e fala pra ele: "Preciso de um time até a Copa do Mundo". Ele vai bater no peito e falar: "Deixa comigo". Quando se fala de Copa do Mundo, você está falando de uma seleção brasileira que tem cinco estrelas no peito. Nenhum país tem. Então há de se respeitar a seleção brasileira. E esse respeito só vai acontecer se nós entrarmos no campo e fazer ser respeitado.

Cafu concede entrevista para equipe de Esportes do JORNAL O POVO
Foto: AURÉLIO ALVES
Cafu concede entrevista para equipe de Esportes do JORNAL O POVO

OP - Conta um pouco da sua relação com a Copa do Mundo. Em 1994 e 2002 a seleção chegou pressionada, como era a mentalidade do grupo na preparação para o Mundial? 

Cafu - Acabou as Eliminatórias, começou outra fase na nossa vida. São 40 dias para mudar a vida de todo mundo e sete jogos pra mudar a história. Só tem um jeito de você mudar o que aconteceu nas Eliminatórias: conquistar uma Copa do Mundo. Conquistou, acabou. 

Na Copa do Mundo tem que ser os melhores. Vamos definir um time, vamos definir um padrão e vamos estar com os melhores na Copa do Mundo? Acabou. Se o treinador não definir os seus jogadores pra Copa do Mundo, ele não ganha a Copa do Mundo.

O ex-jogador se mostrou um grande entusiasta de basquete ao receber a equipe de reportagem. Não à toa concedeu a entrevista vestindo a regata do Golden State Warriors com o número 30 de Stephen Curry(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES O ex-jogador se mostrou um grande entusiasta de basquete ao receber a equipe de reportagem. Não à toa concedeu a entrevista vestindo a regata do Golden State Warriors com o número 30 de Stephen Curry

E o treinador, às vezes, tem que tomar decisões que não vai beneficiar muito os jogadores, mas que ele sabe o quanto é importante pro grupo. Em 94, nós tínhamos o Raí, o nosso melhor jogador. Depois do primeiro jogo, o Parreira tirou o Raí. Capitão do time. Estrela do time. Na época, ele falou: "Ó, preciso montar um esquema, colocar mais um no meio de campo, senão eu vou perder a Copa do Mundo".

A Copa do Mundo é isso, cara. Você não tem tempo. Você tem que chegar lá, são os melhores, esse é o meu padrão de jogo, nós vamos ganhar a Copa do Mundo dessa forma. Se não (fizer), não ganha. E eu estou falando porque eu estive quatro vezes lá. Das quatro (que disputei), nós disputamos três finais consecutivas.

OP - Houve alguma superação nas conquistas do tetra e do penta?

Cafu - A maior superação são as Eliminatórias. A nossa Copa do Mundo são as Eliminatórias. Porque é difícil. Nas Eliminatórias jogam aqueles times retrancados, recuados, que não deixam jogar. A Copa do Mundo joga de igual para igual. E qualquer seleção no mundo que jogar de igual para igual com a seleção brasileira vai sofrer.

OP - Falando de clubes, você vivenciou duas finais de Liga dos Campeões no Milan. Em 2005, no "Milagre de Istambul", foi vice. Dois anos depois, venceu o mesmo Liverpool. Fala um pouco sobre essas experiências.

Cafu - O que aconteceu foi a continuidade no trabalho. Você acha que no Brasil, depois de perder uma final como nós perdemos para o Liverpool, ganhando de 3 a 0 no primeiro tempo, o Liverpool 3 a 3 e ganhando os pênaltis, com o elenco já com a maioria dos jogadores com 33, 34 anos, você acha que esse elenco continuaria?

Você acha que o treinador continuaria? Primeira coisa que o presidente faria era mandar embora o treinador e os jogadores. Cara, o Milan não mudou uma vírgula.

Continuamos os mesmos jogadores, o mesmo treinador. Depois de dois anos, conquistamos a Champions League contra o mesmo time. Não é uma derrota que vai definir quem é você ou o que você não é. Não é uma derrota que vai definir toda a história que o Milan fez. Uma derrota é inerente a qualquer um. Como diz Parreira, o futebol não é uma ciência exata.

Cafu comemora título da Champions League de 2006/2007 pelo Milan
Foto: FRANCK FIFE / AFP
Cafu comemora título da Champions League de 2006/2007 pelo Milan

OP - Aqui no futebol cearense, relacionam muito a má fase do Fortaleza ao elenco mais experiente. Para você, quanto pesa na balança a idade e a experiência do jogador, positivamente e negativamente?

Cafu - Dificilmente um jogador experiente vai pesar negativamente em um clube. É o cara que vai trazer tranquilidade, vai trazer experiência, vai trazer paz na hora dos momentos mais difíceis. São os caras experientes que vão chamar os meninos. Eu acho que tem que ter essa mescla.

E em relação a idade, ninguém pode decidir por você o que você tem que ser, o que você é ou quando você tem que parar de jogar futebol. 

Como é que você vai decidir por mim se eu tenho que parar de jogar futebol ou não? Você não está no meu corpo, não treina pra mim, não dorme comigo, não faz o meu treinamento. Eu parei com 38 anos porque eu quis parar, mas se eu quisesse, eu podia dar sequência até mais alguns aninhos.

Quando se perde você precisa, obrigatoriamente, dar culpa a alguém. Uns acham que é o treinador, uns acham que é o dirigente, uns acham que é o jogador, uns acham que é a idade, outros acham que o time está muito novo. Cara inventa sempre uma desculpa quando perde, mas perder é inerente, faz parte, não tem que ter desculpa.

 

"Como é que você vai decidir por mim se eu tenho que parar de jogar futebol ou não? Você não está no meu corpo."

 

OP - Teve alguma derrota mais dolorida na sua carreira?

Cafu - Eu tive várias derrotas, mas tive grandes vitórias também. A derrota é sempre ruim, né? A derrota é muito chata. Ninguém quer perder, mas a gente sabe também que no futebol você não vai ganhar sempre.

Óbvio que as derrotas vão acontecer. Mas existem derrotas e derrotas. Por exemplo, nós perdemos a Copa do Mundo de 1998 na final. Cara, eu fiquei mal, mas eu já sabia que no ano seguinte, já tinha que disputar umas Eliminatórias novamente. 

Eu nunca deixei que a derrota fosse maior do que aquilo que eu queria. O futebol te dá essa oportunidade. Você perde hoje, que é sexta-feira, na terça-feira você já tem um jogo que você já pode recuperar. 

'Óbvio que as derrotas vão acontecer. Mas existem derrotas e derrotas. '(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES 'Óbvio que as derrotas vão acontecer. Mas existem derrotas e derrotas. '

OP - Outra crítica constante ao futebol brasileiro é a falta de criatividade. Você acredita que realmente isso está ausente ou já é uma visão muita exagerada?

Cafu - Falta drible, falta caneta, falta chapéu, falta carretilha. Falta driblar o adversário dentro de campo. Mas sabe por que está faltando isso? Porque o futebol ficou de uma maneira tão estranha que você não pode driblar mais.

Você não pode pisar em cima da bola, você não pode dar caneta, você não pode dar chapéu. Coitado do Garrincha se jogasse futebol hoje, ia ser expulso pelo juiz. O juiz ia falar que ele estava humilhando o adversário.

Regra simples do futebol: drible é bonito para quem dá e feio para quem toma. O cara me dá uma caneta e eu vou virar pra trás e vou lá querer bater no cara porque ele me deu uma caneta? É capacidade do cara. Então nós estamos tirando isso do futebol.

' Nós estamos criando competidores, não estamos criando jogadores de futebol. Nós estamos criando robôs nas nossas categorias de base.'
Foto: AURÉLIO ALVES
' Nós estamos criando competidores, não estamos criando jogadores de futebol. Nós estamos criando robôs nas nossas categorias de base.'

OP - Isso afeta a formação nas categorias também?

Cafu - Quando você fala que não tem mais drible, não tem mais chapéu, estão tirando a criatividade da base. Nós estamos criando competidores, não estamos criando jogadores de futebol. Nós estamos criando robôs nas nossas categorias de base. Você não pode dar tática para uma criança de 10 anos.

Criança tem que se divertir, criança tem que ser criança. A criança tem que pegar na bola e correr com a bola, e dar caneta, e dar chapéu, e dar carretilha. Aí está acontecendo o quê? Nós estamos pegando a bola e tocando, pegando e tocando, pegando e tocando. Está tirando nossa criatividade. 

OP - Sobre ídolos, você acha que hoje o Brasil está escasso de figuras com maior destaque?

Cafu - Eu vou te dar alguns exemplos do esporte em geral. Alguns anos atrás, nós tínhamos, no futebol, cada time tinha no mínimo quatro ídolos unânimes. Você ia jogar contra o São Paulo e falava: "Nossa, o São Paulo tem fulano assim, fulano e beltrano". Vai jogar contra o Corinthians? Você falava: "Vixe, o Corinthians tem fulano assim, fulano e beltrano". São Paulo e Flamengo, nossa. Você tinha quatro ídolos por time.

Hoje, eu vou perguntar pra vocês dois que são jovens. Me fala um ídolo unânime do futebol brasileiro. Acho que vão falar, claro, diretamente do Neymar, que é muito criticado também. Quanto tempo o Neymar está reinando como ídolo? Uns 15 anos. 

Tem 15 anos que nós não temos ídolo no futebol? Nós temos um único ídolo que é o Neymar. Temos agora o Estêvão, que pode se transformar. Nós tivemos o Endrick, que recentemente foi embora.

Cafu recebeu a equipe do Esportes do O POVO no dia 24 de abril(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Cafu recebeu a equipe do Esportes do O POVO no dia 24 de abril

Na Fórmula 1, qual foi o nosso maior ídolo depois do Senna? No basquete, tínhamos o Oscar, nós tínhamos a Hortência, mas o que nós tivemos depois deles? No vôlei? Mesma coisa. No tênis agora que nós temos a Bia Haddad, o João Fonseca. Quanto tempo o Guga ficou reinando? Na natação, teve alguém depois do Cielo?

A gente não fabrica ídolos, cara. Hoje nós estamos na discussão pra saber quem é o ídolo do Brasil. O Estêvão, na metade do ano, já está indo para o Chelsea, vai ser lapidado pelo futebol inglês. O Endrick já foi para o Real Madrid.

Era titular absoluto aqui no Palmeiras, estrela do time. Poderia se transformar num grande ídolo do futebol brasileiro. Está no Real Madrid, joga pouco, faz pouco gol, não tem a mesma sequência que tinha aqui. Mas, infelizmente, os nossos jovens são obrigados a sair muito cedo do nosso país. Não dá tempo de você criar uma identidade com o futebol brasileiro. 

OP - Recentemente o Ronaldo tentou concorrer ao cargo de presidente da CBF, mas não conseguiu formalizar a candidatura devido à falta de apoio das federações. Como vocês, mais experientes e supercampeões pela seleção, vêem episódios assim?

Cafu - São questões políticas da CBF. Eu acho que nós atletas não temos o poder para mudar isso. Se tivesse o poder, o Ronaldo tinha entrado. O Ronaldo não entrou porque não tem o poder para mudar isso.

O Ronaldo foi uma tentativa para que pudesse mudar algo dentro da CBF, dentro do futebol brasileiro. O Ronaldo se candidatou não para mudar a CBF, mas para mudar e trazer algo positivo para o futebol brasileiro.

O que acontece lá na CBF hoje é que nós temos um presidente que manda. Nós não temos autonomia para opinar muito em relação a isso, porque está todo mundo vendo o que acontece.

Nós, como atletas, só temos que entrar dentro do campo e jogar. Deixar a parte burocrática para as pessoas que têm capacidade e as autoridades máximas ver o que tem que fazer em relação a isso. O que tem que fazer, o que não tem que fazer. Mas está aí para o público. Está explícito.

Vamos ver o que pode acontecer, mas é sempre futebol brasileiro. É sempre a imagem do Brasil. E nós procuramos sempre dentro de campo, que é a nossa parte, preservar a imagem do Brasil. Nós esperamos que os dirigentes façam isso também.

'O que acontece lá na CBF hoje é que nós temos um presidente que manda. Nós não temos autonomia para opinar muito em relação a isso.'(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES 'O que acontece lá na CBF hoje é que nós temos um presidente que manda. Nós não temos autonomia para opinar muito em relação a isso.'

OP - Você é um cara muito ativo quando o assunto gira em torno de questões sociais e o UOL divulgou recentemente uma reportagem sobre sua ancestralidade na África. Como você se identifica com as pessoas de lá?

Cafu - Nossa, eu tenho praticamente 69% de africano, né? Eu tenho alguns projetos sociais em Moçambique. Tenho o Cafuzinhos do Sertão. Tenho um projeto social também em Alagoas, no sertão de Alagoas.

Mas falando especificamente da África, nós vimos a necessidade de ajudar as pessoas que estavam precisando do nosso apoio. Muita gente vai falar, mas e o Brasil? O Brasil ajudo também. Ajudo muito o Brasil. Nós ajudamos bastante aqui, mas a África, porque é uma questão muito especial, né?

Antes da entrevista, Cafu autografou um quadro com a capa do jornal O POVO do dia 1º de julho de 2002, que celebrou a conquista do penta com a foto do capitão erguendo a taça. A imagem em questão é uma das decorações da sala do Esportes O POVO
Foto: AURÉLIO ALVES
Antes da entrevista, Cafu autografou um quadro com a capa do jornal O POVO do dia 1º de julho de 2002, que celebrou a conquista do penta com a foto do capitão erguendo a taça. A imagem em questão é uma das decorações da sala do Esportes O POVO

Nós ajudamos as crianças que são portadoras do vírus do HIV, que eles contraem o vírus já na barriga da mãe. Essas crianças vêm ao mundo já com esse vírus, eles precisam tomar um coquetel, e esse coquetel dá fome. Lá eles não tinham o que comer.

Então se eles comessem, por exemplo, segunda, não comeriam na terça, comeriam na quarta, não comeriam na quinta, e comeriam na sexta, não comeriam no sábado. Então essas crianças passavam praticamente fome, nitidamente passavam fome.

Foi aí onde nós fizemos um projeto e entramos para que eles pudessem ter pelo menos uma alimentação todos os dias. Começou o primeiro projeto, aí o segundo foi montar um lugar onde as crianças pudessem ter essa alimentação. Agora a gente está dando sequência, montando escola, montando instituto, montando laboratórios, para que eles possam ter pelo menos um pouquinho mais de dignidade na vida.

O que nós fazemos na África é dar esperança para crianças que não tinham esperança nenhuma. Quando nós fazemos esse tipo de projeto, são em lugares que ninguém vai. Eu gosto de ir em lugares que ninguém jamais foi.

 

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