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Cacika Juliana Irê: "A luta pela terra é a mãe de todas as lutas"
Reportagem Seriada

Cacika Juliana Irê: "A luta pela terra é a mãe de todas as lutas"

Secretária dos Povos Indígenas do Ceará, a antropóloga e Cacika Juliana Irê, afirma que a nova pasta está comprometida com as demandas dos indígenas cearenses e ressalta que a demarcação de territórios indígenas é prioridade.
Episódio 17

Cacika Juliana Irê: "A luta pela terra é a mãe de todas as lutas"

Secretária dos Povos Indígenas do Ceará, a antropóloga e Cacika Juliana Irê, afirma que a nova pasta está comprometida com as demandas dos indígenas cearenses e ressalta que a demarcação de territórios indígenas é prioridade.
Episódio 17
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Cacika Juliana Irê era uma garota de três anos quando sua mãe se tornou cacique do povo Jenipapo-Kanindé, localizado em Aquiraz. Um feito inédito. Em 1995, Pequena, liderança dos Jenipapo, desafiou o cacicado masculino e se impôs diante de 39 outros líderes, todos homens. “Vim aqui em nome do meu povo, os Jenipapo-Kanindé”.

Cacique Pequena, dos Jenipapo-Kanindé, realiza o ritual de abertura(Foto: Iago Barreto / Divulgação)
Foto: Iago Barreto / Divulgação Cacique Pequena, dos Jenipapo-Kanindé, realiza o ritual de abertura

Os caciques resolveram testar a mãe de Juliana e tiveram de comprovar a inédita liderança indígena, que abriu passagem para outras mulheres indígenas e de outros povos. Há dois anos, Pequena figurou numa campanha do Google “First of Many: Women´s History Month 2021”, que destacava mulheres que conquistaram espaços no cenário mundial. Estava ao lado de Marie Curie, primeira mulher a receber um prêmio Nobel.

Juliana teve escola de liderança em casa. Aos 12 anos, Cacique Pequena já carregava a menina para as conferências indígenas locais e estaduais. Aos 13, a adolescente tinha voz nos encontros. Aos 24 anos, em abril de 2010, Juliana tornou-se Cacika do povo Janipapo-Kanindé, além de ser líder das lideranças indígenas femininas do Ceará. Treze anos mais tarde, a antropóloga e Cacika Juliana Irê foi escolhida para assumir uma das mais novas pastas do governo do petista Elmano Freitas (PT), a Secretaria dos Povos Indígenas, pioneira no Brasil. “É um projeto piloto”, afirmou a Cacika numa tarde de conversa n´ O POVO.

Cacika Juliana Irê, primeira Secretária dos Povos Indígenas do Ceará (Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo)
Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo Cacika Juliana Irê, primeira Secretária dos Povos Indígenas do Ceará

Ela conta que a ideia da nova secretaria começou a ser gestada durante o 18º Acampamento Terra Livre, quando o ativista cearense Weibe Tapeba, atual secretário da Secretaria Especial da Saúde Indígena, respondeu à proposta do então “suposto candidato à presidência”, Luiz Inácio Lula da Silva, que pediu na ocasião, em Brasília, apoio para “reconstrução política do País”.

Weibe, segundo a Cacika, afirmou “que os povos indígenas não somente iriam ajudá-lo a reconstruir, mas queriam também ajudá-lo a governar o Brasil”. Lula prometera ali criar o Ministério dos Povos Indígenas, em caso de vitória nas eleições de 2022. Na posse, o presidente eleito subiu a rampa entre outras pessoas, com o cacique kayopó Raoni Metuktire.

Cacique Raoni durante posse do presidente Lula em janeiro de 2023(Foto: EVARISTO SA / AFP)
Foto: EVARISTO SA / AFP Cacique Raoni durante posse do presidente Lula em janeiro de 2023

“Feito isso em nível nacional, a campanha política do governador eleito já sinalizava que se fosse criado o ministério dos povos indígenas, o Estado criaria a secretaria” homônima, lembra a primeira secretária da pasta que vai atender aos 51 mil indígenas do Ceará, de acordo com os últimos dados do IBGE. O governador Elmano tem uma ligação de véspera com a militância indígena, desde que advogava para os movimentos sociais e conhece de perto suas causas, admite a secretária.

A movimentação em torno da nova pasta começou também antes da proposta formal de reforma administrativa que está sendo analisada pela Assembleia Legislativa. Com a expectativa em torno de um espaço de representatividade dos povos indígenas do Ceará, na nova gestão, depois de anos de “invisibilidade”, um desenho do trabalho começou a ser feito.

Juliana Alves, Cacika Irê do povo Jenipapo-Kanindé, toma possa como secretária estadual dos Povos Indígenas(Foto: Thaís Mesquita/O POVO)
Foto: Thaís Mesquita/O POVO Juliana Alves, Cacika Irê do povo Jenipapo-Kanindé, toma possa como secretária estadual dos Povos Indígenas

“Nós começamos aí a desenhar o que gostaríamos de ter na nossa secretaria com todas as lideranças das várias etnias que temos no Estado, mulheres, homens, jovens e idosos. Eles participaram e apontaram as necessidades. Nós sabemos a importância de ter um espaço desses.”, afirmou a antropóloga que demonstra ter plena ciência dos desafios que tem pela frente, seja em termos de representatividade, seja no que diz respeito à gestão propriamente dita, seja no quesito político.

Para começar, a nova secretaria não terá um orçamento próprio neste primeiro momento de construção da pasta. As negociações dos projetos e demandas de curto e médio prazos vão depender de costuras políticas que já começaram a ser feitas junto à equipe da Casa Civil e outras pastas encarregadas pela execução das ações de governo. A palavra “diálogo” foi constante durante a entrevista.

Secretária dos Povos Indígenas, Cacika Juliana Irê em visita ao O POVO (Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo)
Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo Secretária dos Povos Indígenas, Cacika Juliana Irê em visita ao O POVO

Na prática, o diálogo é que vai definir os rumos da nova secretaria. E disposição para dialogar, Cacika Juliana Irê parece ter sobrando. Além do diálogo constante para garantir os recursos para a pasta recém-criada, a Cacika afirmou que o diálogo será indispensável para o trabalho que pretende desenvolver tanto junto ao governo quanto junto aos povos indígenas do Estado. “O movimento indígena tem criado uma expectativa muito grande de que agora, todos os problemas serão resolvidos e a gente tem sido muito realista e respeitoso em dizer que não é assim”, afirma a antropóloga.

O realismo da Cacika é cristalino. Afirma que a nova Secretaria não tem “bola de cristal nem varinha de condão” e que não é possível chegar e dizer: “Temos uma secretaria e o governador vai fazer o que a gente quer. Não, porque política de Estado não se faz dessa forma. As lutas vão continuar existindo”, avalia.

E a principal luta que a Cacika Irê tem pela frente é a da terra, que, de acordo com a secretária, coloca o Ceará numa na posição de “ser um dos estados mais atrasados no que diz respeito à terra indígena homologada”, atesta. A única terra homologada no Estado é o território indígena do povo Tremenbé no Corrego João Pereira, em Itarema. O próximo deverá ser o território da Barra do Mundaú, do povo Tremembé, em Itapipoca, que, de acordo com Juliana Irê, entrará na promessa de homologação de terras indígenas prometidas pelo presidente Lula da Silva, nos primeiros cem dias de governo.

“Uma das nossas prioridades enquanto secretaria é justamente estar em constante diálogo com o governador e outras secretarias para que haja a negociação do território. Se um território está em fácil negociação, o que é que falta para que essa terra seja homologada e registrada como terra do indígena?”, questiona.

 Cacika Juliana Irê, secretária estadual dos Povos Indígenas(Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo)
Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo Cacika Juliana Irê, secretária estadual dos Povos Indígenas

A homologação do território para posse e usofruto de povos indígenas foi um dos assuntos mais comentados nos últimos dias no Brasil diante da crise humanitária envolvendo o povo Yanomami "O território do povo Yanomami foi demarcado em 1992, durante a Eco-92, no Rio de Janeiro, durante o governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello. No entanto, a atividade do garimpo nunca deixou completamente a terra e se intensificou durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (2018-2022) " Yanomami, em Roraima, que segundo a antropóloga não é possível “sequer comparar com a situação dos povos indígenas cearenses”. No entanto, a secretária aponta que a demarcação do território é a única coisa que impede, no caso do Ceará, a especulação imobiliária e a negociação de terra envolvendo posseiros em territórios indígenas. “A luta pela terra é a mãe de todas as lutas”, afirma a Cacika.

Para além da terra, a nova secretária pretende – por meio do diálogo – tecer entendimentos com a secretaria da Educação do Ceará para agilizar o concurso público em edital publicado pelo ex-governador Camilo Santana, homologado em julho de 2022 pela ex-governadora Izolda Cela que prevê a contratação de 200 professores indígenas no Ceará.

Mediante muita conversa, Juliana quer fazer chegar aos territórios indígenas políticas públicas já existentes no Estado e acelerar processos que levem uma política de saúde mais efetiva aos povos indígenas cearense, com destaque para as mulheres indígenas. “Nós compreendemos que a secretaria também quer trabalhar junto ao governo do Estado para que algumas políticas sociais que conseguem chegar até os municípios, possam chegar até os territórios indígenas como, por exemplo, as areninhas para os nossos jovens, as academias populares, uma praça de mais infância”, enumera Juliana Irê.

Cacika Juliana Irê quer marcar início das atividades da Secretaria Estadual dos Povos Indígenas com seminário (Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo)
Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo Cacika Juliana Irê quer marcar início das atividades da Secretaria Estadual dos Povos Indígenas com seminário

Parece muito, mas Juliana Irê aprendeu sobre luta e perseverança em casa. Aos 16 anos contrariou o roteiro que a Cacique Pequena tinha para a filha mais nova das meninas entre os 16 filhos (oito garotas e oito garotos): estudos, ir para a universidade, namorar e casar. Juliana engravidou e embaralhou os acontecimentos.

Quando a filha tinha dois anos, ela voltou a estudar. Concluiu o ensino médio, cursou uma licenciatura, fez um mestrado em antropologia. A primeira secretária dos Povos Indígenas do Ceará conta que a mãe não largou sua mão durante a gravidez na adolescência e garante que Cacique Pequena é seu “espelho diário”. “Fiquei grávida e fui ser mãe na adolescência. Percebi a decepção dela, foi um balde de água fria na expectativa que ela estava criando: aquela filha que ia estudar, fazer faculdade, para depois arrumar namorado e casar”, relembra Juliana Irê.

 

 

Hoje, aos 37 anos, confessa o quanto a mãe estava moldando persistência na filha: “Eu percebo que a forma como ela foi me ensinando fez com que hoje eu esteja ocupando os espaços onde estou”, afirma Juliana. Cacique Pequena defende há anos o território ocupado pelos jenipapo-kanindé em Aquiraz, incluindo a Lagoa do Encantado, lugar privilegiado na região, objeto de desejo de muita gente. “A Juliana que eu sou, muito de mim é da minha mãe, a força desbravadora de querer que as coisas aconteçam, de lutar em prol do coletivo”, reconhece.

Juliana Alves Jenipapo, Cacika Juliana Irê, líder indígena dos Jenipapo-Kanindé, secretária estadual dos Povos Indígenas (Foto: Divulgação/Juliana Jenipapo-Kanindé)
Foto: Divulgação/Juliana Jenipapo-Kanindé Juliana Alves Jenipapo, Cacika Juliana Irê, líder indígena dos Jenipapo-Kanindé, secretária estadual dos Povos Indígenas

Depois de Cacique Pequena, outras mulheres foram assumindo o cacicado e liderança em territórios indígenas no Ceará, fazendo que com o Nordeste seja uma das regiões com a maior quantidade de lideranças femininas entre os povos indígenas do Brasil. “Costumo dizer que nós ocupamos hoje os espaços das mulheres que fizeram toda uma caminhada de luta e libertação e estamos aqui por nós mesmas, por aquelas que nos antecederam e também pelas mulheres que virão”, conclui Cacika Juliana Irê.

O primeiro ato da sua pasta deverá ser um seminário dos povos indígenas do Ceará que marcará o início da atuação da nova secretaria. Juliana quer ainda, nos primeiros dias da secretaria, instalar o Conselho Estadual dos Povos Indígenas, que se propõe a dar perenidade aos assuntos ligados aos povos indígenas cearenses. E ainda pretende conversar com o governador sobre um espaço para construção de um memorial dos povos indígenas que reunirá informações, história e pesquisas sobre os 15 povos distribuídos em 19 municípios do Ceará.

Juliana Alves Jenipapo, Cacika Juliana Irê, líder indígena dos Jenipapo-Kanindé, então coordenadora da Associação das Mulheres Indígenas do Ceará (Amice)(Foto: Reprodução/Instagram/Juliana Jenipapo)
Foto: Reprodução/Instagram/Juliana Jenipapo Juliana Alves Jenipapo, Cacika Juliana Irê, líder indígena dos Jenipapo-Kanindé, então coordenadora da Associação das Mulheres Indígenas do Ceará (Amice)

Juliana Alves foi a única filha da Cacique Pequena a frequentar uma universidade, no entanto, para ela conhecimento não tem hierarquia e os saberes da academia não são superiores aos da experiência. A própria vida a ensinou na convivência com a família. A sabedoria que viu na própria mãe conduzindo o povo, a forma como ela se expressa sem nunca ter frequentado uma universidade são exemplos. “O conhecimento é isso, embora a gente tenha o técnico, as vivências diárias são mais importantes do que qualquer coisa”, afirma Cacika Juliana, passageira entre dois mundos.

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