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A odisseia ecológica de Kongjian Yu
Reportagem Seriada

A odisseia ecológica de Kongjian Yu

Com a água na alma, Kongjian Yu ensinou que a verdadeira beleza é a resiliência. O "pai das Cidades Esponja" propôs um pacto para devolver à Terra sua essência fluida
Episódio 49

A odisseia ecológica de Kongjian Yu

Com a água na alma, Kongjian Yu ensinou que a verdadeira beleza é a resiliência. O "pai das Cidades Esponja" propôs um pacto para devolver à Terra sua essência fluida
Episódio 49
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O arquiteto, paisagista e doutor em Design por Harvard, Kongjian Yu, amplamente reconhecido como o "pai das Cidades Esponja" foi uma das vozes mais potentes na luta por uma sociedade que conseguisse aliar o desenvolvimento à sustentabilidade.

Morto em um acidente de avião em 23 de setembro de 2025, Yu foi constantemente comparado a Frederick Law Olmsted, o influente fundador da arquitetura paisagista nos Estados Unidos.

Kongjian Yu acumulou mais de 20 livros publicados e mais de 300 artigos científicos. Seu trabalho recebeu prêmios internacionais, como o IFLA Sir Geoffrey Jellicoe Award (2020), o Cooper Hewitt National Design Award (2023) e o RAIC International Prize (2025)(Foto: The Cultural Landscape Foundation)
Foto: The Cultural Landscape Foundation Kongjian Yu acumulou mais de 20 livros publicados e mais de 300 artigos científicos. Seu trabalho recebeu prêmios internacionais, como o IFLA Sir Geoffrey Jellicoe Award (2020), o Cooper Hewitt National Design Award (2023) e o RAIC International Prize (2025)

No entanto, o menino nascido em 1963 na província de Zhejiang, no leste da China, preferia se descrever como o "filho de um camponês", uma identidade profundamente enraizada em sua filosofia de design e em sua luta incansável contra a deterioração ecológica urbana.

Sua visão de um "Planeta Esponja", que hoje orienta a política ecológica nacional na China, não nasceu em uma sala de aula de elite, mas sim na sua aldeia natal de Dong Yu, um lugar que ele chamava de paraíso.

 

 

A revolução da sobrevivência

Os primeiros 17 anos de Yu, vividos sob o ritmo do clima de monções, definiram sua compreensão da água.

Ele lembra-se de cavar poços com membros do vilarejo durante as secas e de lutar pelo acesso à água, que era a essência da vida no campo.

Sua comunidade era abastecida por um sistema de 36 açudes baixos no rio Wujiang que, ao retardar a água, facilitavam a irrigação das plantações.

Foto aérea tirada em 29 de abril de 2020 mostra a ponte do rio Wujiang em construção na província de Guizhou, sudoeste da China(Foto: Xinhua / República Popular da China)
Foto: Xinhua / República Popular da China Foto aérea tirada em 29 de abril de 2020 mostra a ponte do rio Wujiang em construção na província de Guizhou, sudoeste da China

Um momento decisivo para a formação de Yu ocorreu em 1972, quando o uso de pesticidas à base de Dicloro-Difenil-Tricloroetano (DDT) causou uma morte massiva de peixes no rio.

Até aquele ano, não era comum o uso de pesticidas químicos tão fortes, mas após a abertura das relações da China com os Estados Unidos, a entrada desse tipo de produto ficou mais e mais comum.

No ano seguinte, Yu quase se afogou no Wujiang, cujo nível estava muito maior por conta das fortes chuvas daquele período. Ele conseguiu, porém, agarrar-se a um galho de salgueiro, evitando a correnteza.

A experiência teria o ensinado sobre a resiliência criada quando o azul da água e o verde da vegetação se unem.

Esta infância rural o ensinou que a "sabedoria do campesinato" era um legado de sobrevivência, um conjunto de soluções baseadas na natureza, de baixa tecnologia e ecologicamente sólidas, como os terraços de arroz e os tanques de regulação.

Contudo, a modernização e a industrialização rejeitaram esse conhecimento vernáculo, substituindo-o por concreto e controle mecânico.

Uma das mais notáveis obras de engenharia da China é o elevador de navios na Usina Hidrelétrica de Goupitan, localizada no rio Wujiang. O equipamento que embarcações subam e desçam um desnível de mais de 100 metros, superando a barragem da hidrelétrica para continuar navegando(Foto: Xinhua / República Popular da China)
Foto: Xinhua / República Popular da China Uma das mais notáveis obras de engenharia da China é o elevador de navios na Usina Hidrelétrica de Goupitan, localizada no rio Wujiang. O equipamento que embarcações subam e desçam um desnível de mais de 100 metros, superando a barragem da hidrelétrica para continuar navegando

O rio Wujiang foi canalizado, e os lagos e sistemas de irrigação tradicionais foram enterrados, transformando sua paisagem romântica da infância em um sistema de tubos de concreto, vulnerável a inundações e secas.

A destruição de seu próprio paraíso foi o que o levou a acreditar que era necessária uma revolução.

 

 

O nascimento da Cidade Esponja 

A filosofia de Yu se baseia na distinção entre a "alta cultura" dos jardins ornamentais, que serviam apenas ao prazer da elite, e a "baixa cultura" funcional da agricultura e da irrigação, essencial para a sobrevivência das massas.

Para ele, a arquitetura paisagista deve ser encarada como a arte da sobrevivência, abordando questões de subsistência e não de mero ornamento ou prazer.

Após testemunhar as catastróficas inundações do Yangtze em 1998, que demonstraram o colapso da infraestrutura rígida cinzenta do progresso, Yu desenvolveu o conceito de cidade esponja.

Fenghuang, a rodovia de 12 quilômetros na província chinesa de Hainan recebeu soluções baseadas na natureza desenvolvidas por Yu(Foto: Turenscape)
Foto: Turenscape Fenghuang, a rodovia de 12 quilômetros na província chinesa de Hainan recebeu soluções baseadas na natureza desenvolvidas por Yu

A cidade esponja é uma estratégia de planejamento urbano que visa a restaurar os padrões hídricos naturais para construir resiliência climática.

O conceito foi adotado como política nacional na China, com milhares de projetos implementados em mais de 200 cidades, e serve como um modelo global.

O cerne da filosofia da cidade esponja é a antítese da engenharia moderna: o conceito de "água lenta".

Em vez de lutar contra a água canalizando-a e acelerando seu fluxo, a infraestrutura ecológica verde deve reter a água na sua fonte, abrandar o escoamento e permitir a permeabilidade.

Sanya Mangrove Park, na China, um projeto do arquiteto Kongjian Yu, um pioneiro do conceito da cidade de esponja(Foto: Turenscape)
Foto: Turenscape Sanya Mangrove Park, na China, um projeto do arquiteto Kongjian Yu, um pioneiro do conceito da cidade de esponja

Ao retardar a água, cria-se tempo e espaço para que a vida floresça, o solo absorva os poluentes, o lençol freático seja reabastecido, os extremos climáticos sejam amortizados e a beleza surja, transformando rios e planícies aluviais "Planícies aluviais são as terras argilosas ao redor de um rio, naturalmente mais suscetíveis a enchentes" em espaços comunitários e habitats.

Yu advogava pela substituição do urbanismo centrado no desenvolvimento econômico por um urbanismo ecologicamente prudente.

Seu conceito de Planeamento Negativo (ou Abordagem Reversa), desenvolvido em 2003, sugere que o planejamento paisagístico deve liderar o desenvolvimento.

Isso significa que a infraestrutura ecológica – integrando sistemas de gestão de águas pluviais, corredores verdes e conservação da biodiversidade – deve ser planeada primeiro, antes que a urbanização dite o uso da terra, salvaguardando, assim, os processos naturais.

 

 

O legado do Planeta Esponja

Para operacionalizar sua filosofia, Yu fundou a Turenscape em 1998, um dos primeiros escritórios privados de arquitetura paisagista na China.

O nome Turenscape é uma fusão das palavras chinesas Tu (terra) e Ren (ser humano), com o sufixo "scape", de landscape, palavra inglesa para "paisagem", significando "homem da terra" e refletindo a busca pela harmonia entre terra e pessoas.

A Turenscape cresceu para ser uma das maiores do mundo, com mais de 500 profissionais, e construiu mais de 1.000 projetos em mais de 250 cidades.

 

Conheça os projetos de Kongjian Yu


Yu dedicou sua carreira a lutar contra o urbanismo autodestrutivo. Para além do seu trabalho prático, ele foi um incansável ativista e educador.

Ele fundou a primeira faculdade de arquitetura paisagista da Universidade de Pequim e ajudou a mudar as políticas chinesas através de inúmeras cartas aos líderes e mais de 600 palestras a prefeitos e funcionários de todos os escalões.

Em 2003, ele escreveu o livro The Road to Urban Landscape: A Discussion with Mayors (O Caminho para a Paisagem Urbana: Uma Discussão com Prefeitos) para educar os gestores públicos, criticando os erros de design urbano e propondo o paisagismo como infraestrutura.

Yu, nascido em Zhejiang em 1963, era professor, doutor pela Universidade Harvard, consultor do governo chinês e referência em projetos urbanos voltados para adaptação às mudanças climáticas(Foto: Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil)
Foto: Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil Yu, nascido em Zhejiang em 1963, era professor, doutor pela Universidade Harvard, consultor do governo chinês e referência em projetos urbanos voltados para adaptação às mudanças climáticas

Pelo seu trabalho em integrar ambientes construídos, urbanos e naturais, e por defender o conceito de Cidades Esponja, Kongjian Yu recebeu o prestigiado Prêmio Internacional de Arquitetura Paisagista Cornelia Hahn Oberlander em 2023, o Prêmio IFLA Sir Geoffrey Jellicoe em 2020 e o Prêmio Nacional de Design Cooper Hewitt em 2023. Ele também era um membro honorário internacional da Academia Americana de Artes e Ciências desde 2016.

Suas pesquisas pioneiras em Padrões de Segurança Ecológica (1995) e Infraestrutura Ecológica, Planeamento Negativo e Cidades Esponja (2003) foram adotadas pelo governo chinês em 2013 como teoria orientadora para campanhas nacionais de proteção e restauração.

Parque Florestal de Banjakitti, em Bangkok na Tailândia, um dos projetos da Turenscape (Foto: Turenscape )
Foto: Turenscape Parque Florestal de Banjakitti, em Bangkok na Tailândia, um dos projetos da Turenscape

Para enfrentar a magnitude da crise climática, Yu argumentava que o conceito de cidade esponja deve ser expandido para um "Planeta Esponja".

Isso exige que o planeamento vá além dos limites urbanos e pense em termos de bacias hidrográficas e biorregiões, restaurando planícies aluviais e florestas de altitude.

A transição para um Planeta Esponja exige a institucionalização dos princípios de permeabilidade, retenção de água e design adaptativo em normas globais, exigindo uma mudança cultural: a água deve ser vista como vida a ser abraçada, e não como resíduo a ser drenado.

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Apesar de a China ser o "campo de batalha" onde essas ferramentas ecológicas são mais urgentemente necessárias devido aos severos problemas ambientais e à escassez de recursos, Yu acreditava que o planeta é um ecossistema único.

A natureza já demonstrou como absorver, adaptar-se e perdurar, e o Planeta Esponja é uma resposta pragmática e cheia de esperança ao futuro incerto.

Seu conselho final é simples: pense como a água – adaptável, fluida, que busca o equilíbrio – e projete com a natureza. A beleza não é um luxo, mas o combustível para a conexão emocional e a gestão a longo prazo.

Em vez de construir monumentos ao medo, a humanidade deve começar a criar paisagens de resiliência, lugares que curam, adaptam-se e devolvem a vida às nossas cidades.

  

 

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