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Padre Júlio Lancellotti: contra a exclusão, a sensibilidade
Reportagem Seriada

Padre Júlio Lancellotti: contra a exclusão, a sensibilidade

Ele era um menino quando ouviu: "você vai sofrer muito, porque é sensível como um passarinho". A criança cresceu e se tornou um homem que transforma o sentir em lutar
Episódio 50

Padre Júlio Lancellotti: contra a exclusão, a sensibilidade

Ele era um menino quando ouviu: "você vai sofrer muito, porque é sensível como um passarinho". A criança cresceu e se tornou um homem que transforma o sentir em lutar
Episódio 50
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Radicalmente humano. É possível que nenhum outro conceito defina de forma tão adequada a essência do sacerdote que conquistou, ao longo da vida, admiradores e opositores pelo caminho da fé.

Sempre acompanhado de sua fiel companheira, a bengala Guilhermina, Padre Júlio Lancellotti segue firme,  passos pausados, que carregam mais escuta do que pressa, mais acolhimento do que destino.

Caminhando pelos corredores do O POVO, em visita à sede do jornal, numa tarde de setembro de 2025, o padre carregava no peito o broche de São Pier Giorgio Frassati "estudante e militante católico italiano (1901-1925), conhecido pelo seu amor pela caridade e pela sua devoção à fé, que o levou a ser considerado o "Santo das Montanhas" devido à sua espiritualidade ligada às caminhadas. Foi beatificado pelo Papa João Paulo II em maio de 1990[7] e canonizado pelo Papa Leão XIV no dia 7 de setembro de 2025, por ocasião do Ano Jubilar (Wikipédia)" , o santo antifascista.

Padre Lancellotti não titubeia, por um segundo sequer, ao afirmar: “A Igreja não está desconectada da sociedade. A religião e a política podem ser campos diferentes, mas estão inter-relacionadas.”

Em 2021, padre Júlio Lancellotti viralizou nas redes sociais em um vídeo em que ele aparecia destruindo a marretadas pedras colocadas pela prefeitura de São Paulo abaixo de um viaduto para impedir a instalação de pessoas em situação de rua(Foto: Reprodução/ Instagram @padrejulio.lancellotti)
Foto: Reprodução/ Instagram @padrejulio.lancellotti Em 2021, padre Júlio Lancellotti viralizou nas redes sociais em um vídeo em que ele aparecia destruindo a marretadas pedras colocadas pela prefeitura de São Paulo abaixo de um viaduto para impedir a instalação de pessoas em situação de rua

Era fevereiro de 2021 quando a imagem de um padre idoso, munido de uma marreta, quebrando pedras pontiagudas sob um viaduto na Zona Leste de São Paulo, correu o país. Não se tratava de vandalismo, mas de um ato profundamente simbólico contra a chamada arquitetura hostil.

O sacerdote classificou a instalação de obstáculos para impedir o descanso de catadores e pessoas em situação de rua como uma obra “higienista, desumana e hostil” e, em sua essência, cruel.

O gesto, que resultou na criação da Lei Padre Júlio Lancellotti, encapsula a trajetória de um homem que dedicou a vida a estar do “lado que Jesus queria” — entre os excluídos, os invisíveis, aqueles que a sociedade insiste em não enxergar.

Hoje, aos 76 anos, certo de suas escolhas, o padre dedica sua fé a lutar contra o ódio e a miséria, postura que angaria ataques, mas também um amor tão vasto quanto aquele que dedica aos seus companheiros de quase meio século de convivência nas ruas.

 

 

As raízes do inconformismo

Júlio Renato Lancellotti nasceu em 27 de dezembro de 1948, no Hospital São José do Brás, em São Paulo. Era o segundo dos três filhos de Milton Fagundes Lancellotti, comerciante, e Wilma Ferrari, ex-secretária de advocacia.

A mãe, culta e dedicada, abandonou a carreira profissional para cuidar da família por imposição dos costumes da época. Contribuía para o sustento da casa cozinhando e foi a responsável por ensinar as primeiras letras aos filhos.

A vocação religiosa de Júlio não seguiu um caminho linear. Ele iniciou os estudos no Educandário Espírito Santo e, aos doze anos, ingressou no seminário de Araraquara. A rigidez institucional, que incomodou profundamente o espirito sensível do jovem, o fez retornar a São Paulo antes de concluir a formação.

Padre Júlio Lancellotti ao lado das crianças Juçara e Davi, portadores do vírus HIV atendidos pela Casa Vida(Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal Padre Júlio Lancellotti ao lado das crianças Juçara e Davi, portadores do vírus HIV atendidos pela Casa Vida

Preparou-se novamente e chegou a vestir o hábito de frade. Mas, aos 19 anos, decidiu deixar a batina mais uma vez.

Nesse intervalo, forjou uma experiência que marcaria seu futuro. Concluiu o curso de auxiliar de enfermagem na Santa Casa de Misericórdia de Bragança Paulista. Depois, buscou formação acadêmica sólida: graduou-se em Pedagogia e fez especialização em Orientação Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Atuou como professor em diversas faculdades e trabalhou no então Serviço Social de Menores, hoje Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS).

À esquerda, padre Júlio Lancellotti sendo ordenado por Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida(Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal À esquerda, padre Júlio Lancellotti sendo ordenado por Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida

O ponto de inflexão decisivo que direcionou seu ministério para a área social ocorreu em 1980, quando ele conheceu Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida, então bispo-auxiliar de São Paulo. A afinidade foi imediata.

Juntos, estabeleceram as bases da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo. Poucos anos depois, já formado em Teologia, Júlio foi ordenado sacerdote em 20 de abril de 1985.

Para o padre, sua trajetória pode não ser linear, mas é contínua. Ele sempre soube de que lado queria estar — fruto de sua formação social — e tinha consciência de que não seria uma tarefa simples.

 

 

O chamado conflitivo e o diálogo da fé

Padre Júlio Lancellotti atualmente é pároco da Paróquia São Miguel Arcanjo, na Mooca, e vigário episcopal para a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo. Seu trabalho pastoral alcança crianças e jovens infratores, detentos, pacientes com HIV/Aids e, sobretudo, a população em situação de rua.

Para ele, a fé está intrinsecamente ligada à prática social — ainda que esse diálogo, muitas vezes, seja árduo. Questionado sobre como sua espiritualidade se conecta ao cotidiano, o padre responde com brutal honestidade:

Padre Julio Lancellotti durante entrevista ao programa OP News(Foto: DANIEL GALBER/ESPECIAL PARA O POVO)
Foto: DANIEL GALBER/ESPECIAL PARA O POVO Padre Julio Lancellotti durante entrevista ao programa OP News

“Às vezes é um diálogo conflitivo, difícil, cansativo. Às vezes vira até um monólogo. Porque, quando falamos em diálogo, parece que é sempre fácil. Mas não é. O diálogo pode ser conflitivo, pode ser monólogo. A gente vive numa realidade de muita desigualdade. E quem está muito em cima não quer ouvir quem está muito embaixo.”

Seu foco no social não passou incólume. Gerou questionamentos internos e externos: “Mais do que eu me questionar, me questionam. Se é esse o caminho. Se um padre tem que estar metido nisso, se não deveria cuidar apenas da salvação das almas.”

 



Mas Lancellotti insiste: a verdadeira evangelização não está em moldar o outro à própria imagem, e sim em escutar.

Acima de tudo, o padre acredita na pessoa humana, vista “como imagem e semelhança de Deus”. E defende, sem concessões, que todos os cidadãos tenham seus direitos respeitados.

 

 

A luta contra a indiferença e a real defesa da vida

A luta de Padre Júlio concentra-se em tornar visível aquilo que a sociedade prefere ignorar. Ele enxerga a indiferença como um “comportamento aprendido”, uma espécie de defesa. Para ele, as pessoas são socialmente condicionadas a olhar apenas para os próprios interesses, tornando-se indiferentes ao que não lhes diz respeito.

O padre costuma ilustrar essa seletividade com exemplos simples: uma planta que murcha sem ser notada, uma bandeira hasteada de cabeça para baixo sem chamar a atenção. Se a pessoa não percebe “nas coisas”, ele alerta, não perceberá “nem nas pessoas”.

Júlio Lancellotti posa para uma self ao lado de flores que cultiva(Foto: Reprodução/ Instagram @padrejulio.lancellotti)
Foto: Reprodução/ Instagram @padrejulio.lancellotti Júlio Lancellotti posa para uma self ao lado de flores que cultiva

Em uma reflexão marcante sobre a rejeição social, comparou a relação da sociedade com a população em situação de rua a um distúrbio de comunicação: “A comunicação é seletiva, voltada quase sempre para quem nos parece semelhante ou próximo”, explica.

O trabalho de Lancellotti em São Paulo é marcado por ações concretas de resgate da dignidade. Em 1991, fundou a Casa Vida I e, em seguida, a Casa Vida II, para acolher crianças portadoras do vírus HIV. O projeto teve como madrinha Diana, a Princesa de Gales.

Com a chegada do coquetel antiAids, em 1997, o padre percebeu uma mudança decisiva na perspectiva dessas crianças: “Há seis anos, a gente não tinha perspectiva de futuro para as crianças. Agora as estamos vendo crescer, e muitas delas sem a doença.”

 

 

Na defesa da infância e da adolescência, colaborou na formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e denunciou os maus-tratos na Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem).

No programa de liberdade assistida, que buscava reinserir jovens em conflito com a lei, enfrentou sua “maior luta”: encontrar trabalho para eles, a fim de “construir neles o sentimento da esperança perdida.”

 

 

As cicatrizes da luta

O envolvimento direto com as populações marginalizadas trouxe a Padre Júlio custos pessoais e espirituais. No entanto, ele nunca hesitou em denunciar. Criticou o uso de crianças e jovens por policiais como “olheiros” do tráfico de drogas e condenou operações como o arrastão de 1997, que, segundo ele, tinham como único objetivo intimidar a população de rua e deixá-la com medo, empurrando-a para longe das regiões mais nobres da cidade.

Padre Julio Lancellotti fala sobre criticas, riscos e ameaças pelo seu ativismo(Foto: DANIEL GALBER/ESPECIAL PARA O POVO)
Foto: DANIEL GALBER/ESPECIAL PARA O POVO Padre Julio Lancellotti fala sobre criticas, riscos e ameaças pelo seu ativismo

Seu ativismo também o expôs a riscos. Em março de 2001, ao tentar acalmar uma rebelião na Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem), unidade de Franco da Rocha, foi agredido fisicamente por monitores: levou socos, pontapés e teve os óculos arrancados. Ainda assim, sua reação foi de compaixão e perdão.

Durante entrevistas após o ocorrido, o padre afirmou compreender a situação, que era marcada por tensão e revolta. Apesar de reconhecer o rosto de seus agressores, disse preferir rezar por eles em vez de processá-los.

Anos depois, enfrentou talvez um dos episódios mais dolorosos de sua vida. Entre 2004 e 2007, Anderson Marcos Batista, um ex-interno da Febem, e a esposa, Conceição Eletério tentaram extorqui-lo, ameaçando acusá-lo falsamente de pedofilia.

As investigações, no entanto, comprovaram a farsa. Lancellotti foi reconhecido como vítima de extorsão, e o casal acabou condenado em 2011 a sete anos e três meses de prisão. A condenação considerou que as ameaças de falsas acusações e a pressão financeira eram comprovadas.

Sobre as críticas, Lancellotti é contemplativo. Afirma que não existe luta pela vida sem conflito com a morte. 'Eu acho que estou muito velho para desistir', diz, ao pensar nos incontáveis julgamentos que enfrenta por dedicar sua vida à população desassistida.

 

 

Guilhermina, a bengala

O cansaço e o sofrimento fazem parte intrínseca de sua missão. Questionado se permite a si mesmo chorar, o padre responde afirmativamente, mas distingue as diferentes naturezas da dor:

“Sim, há coisas que fazem chorar. E às vezes a gente não chora para fora, chora para dentro. Tem diferença. A lágrima de fora você enxerga; a lágrima de dentro queima. Pode até doer, né? Sim.”

O nome da bengala que dá suporte à caminhada de Padre Júlio é homenagem a uma amiga idosa que se tornou próxima à sua família(Foto: DANIEL GALBER/ESPECIAL PARA O POVO)
Foto: DANIEL GALBER/ESPECIAL PARA O POVO O nome da bengala que dá suporte à caminhada de Padre Júlio é homenagem a uma amiga idosa que se tornou próxima à sua família

É nessa profunda sensibilidade que nasce a homenagem que deu nome à sua bengala: Guilhermina. Ela era uma senhora idosa, sem família, que se apegou à família de Júlio.

Ele lembra vividamente de um dia em que a ajudava a subir em um ônibus movimentado. Pouco depois, o ônibus se envolveu em um acidente, e ele teve que forçar a porta para resgatá-la. Guilhermina estava caída e, crucialmente, havia perdido sua antiga lente bifocal — essencial para enxergar.

A bengala, que hoje o acompanha nos passos, carrega consigo a memória dessa fragilidade e da necessidade de perceber o essencial.

A relevância de sua vida e obra foi reconhecida com inúmeras honrarias, entre elas o Prêmio Franz de Castro Holzwarth da OAB (2000), o título de Doutor Honoris Causa pela PUC-SP, o Prêmio Poc Awards (2020) por sua atuação contra a homofobia, o Prêmio Juca Pato (2022) e as condecorações da Ordem do Mérito do Ministério da Justiça e da Segurança Pública (Grã-Cruz, 2023) e da Ordem de Rio Branco (Comendador, 2023).


 

No cerne de sua missão, Padre Júlio Lancellotti permanece um farol de esperança e um crítico contundente da exclusão. Seu trabalho é um lembrete de que "todo encontro marca, porque cada encontro é único", e que a verdadeira fé exige a coragem não apenas de ver, mas de confrontar as pedras que a sociedade constrói para afastar os seus mais vulneráveis.

Seu legado é a prova de que a salvação das almas passa necessariamente pelo resgate da dignidade humana, mesmo que para isso seja preciso usar uma marreta contra a indiferença internalizada.

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