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Soberania econômica: a missão do Brasil para imprimir identidade nacional nas relações internacionais
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Soberania econômica: a missão do Brasil para imprimir identidade nacional nas relações internacionais

| Mercado internacional | Afetado pelo tarifaço dos Estados Unidos e sujeito a mais ataques de Trump, o Brasil pode reforçar áreas estratégicas para depender menos do Exterior
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Após mais de 20 anos, Brasil volta a produzir insulina (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil Após mais de 20 anos, Brasil volta a produzir insulina

O tarifaço imposto pelo presidente Donald Trump (Estados Unidos) a produtos brasileiros e a possibilidades de novos ataques comerciais por ver nas importações do Brasil uma ameaça aos americanos deflagrou uma emergência no comércio internacional do País, na qual a independência econômica em áreas estratégicas surge como opção mais sensata e assinala uma busca do Brasil pela soberania econômica.

Missão que incorpora às medidas empregadas por governos - alinhados às empresas - uma identidade nacional aos negócios com o exterior. Ou seja, a ação imprime a vontade brasileira nas vendas e nas compras, em uma defesa dos interesses nacionais.

Ao comentar sobre o cenário nas últimas semanas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já afirmou que “não vamos fazer nada para piorar as nossas relações”, mas ressalvou: “Se tiver mais coisas, nós vamos fazer para os trabalhadores. Porque nesse país, a gente aprendeu que ninguém larga a mão de ninguém. A única coisa que precisamos exigir é que a soberania é intocável”.

Na mira de Trump, além de justificativas políticas que mascaram os interesses comerciais, está a relação do Brasil com China e Rússia. Enquanto o primeiro, que é o maior parceiro comercial das empresas brasileiras, não está envolvido em questões que motivem sanções comerciais pelos americanos, o segundo dá margem para ataques a partir da guerra na Ucrânia, o que pode resvalar nos negócios brasileiros.

O temor recai principalmente na compra de fertilizantes e derivados de petróleo - especialmente diesel - da Rússia. Em 2024, o principal item importado pelo Brasil foi o diesel russo. Um total de US$ 5,3 milhões. Já os fertilizantes vindos daquele país somaram US$ 2,5 milhões, entre cloretos de potássio e derivados da amônia, e representam 90% do que é consumido nas lavouras brasileiras.

Dependência histórica

“O Brasil está há mais de cem anos com a mesma pauta de exportações, de commodities. É quase um enigma porque o país é um celeiro e não consegue desenvolver a produção de adubos e fertilizantes”, comenta Carla Beni, economista e professora de MBAs da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Para ela, é necessário mais investimento em pesquisa, a exemplo do que o agronegócio faz em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), onde são injetados recursos públicos e privados na promoção de animais e plantas mais adaptados ao clima das diferentes regiões do País.

Mas quando se volta para a questão do diesel, Carla Beni aponta a necessidade de uma atenção do governo, controlador da Petrobras, pois só via esta empresa é possível reverter a dependência do diesel e de outros derivados de petróleo estrangeiros.

“A Petrobras fez movimentos recentes nos quais não priorizou a parte do refino. Além de ter feito outra coisa bem ruim, que foi vender a BR Distribuidora”, recordou sobre o plano de desinvestimento efetuado pela companhia.

Perguntada sobre a reação negativa do mercado financeiro a cada sugestão da Petrobras de retomar o refino, a economista observou: “Quando se dá muita importância para o mercado é preciso tomar cuidado porque se abre mão das questões estratégicas do país. Porque o que o mercado quer é abertura e o País acaba ficando mais dependente do setor externo. Esse é o objetivo do mercado financeiro. Então, o Brasil tem atendido a essa demanda, tanto que a gente chegou nesta pauta”.

Nova oportunidade

De olho no futuro da economia internacional, Carla Beni ainda observou que há uma nova oportunidade de o Brasil se destacar no comércio exterior: as terras raras - um conjunto de minerais utilizados em equipamentos de ponta em vários setores, desde smartphones até automóveis. No entanto, ela defende mais do que a simples exploração.

Estudos apontam o território brasileiro como o segundo maior detentor de terras raras do mundo e, para a economista, “não se pode fazer de novo o que o Estado de Minas fez, que é virar uma peneira, esburacar tudo e ter problema de afundar cidades”.

 

“O Brasil tem uma oportunidade espetacular na mão. O que vai fazer agora? Atender as necessidades de Donald Trump e vender tudo isso bruto ou vai fazer um planejamento de longo prazo?”, provocou.

Via o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), a embaixada dos Estados Unidos sinalizou o interesse em envolver as reservas de terras raras brasileiras nas negociações do tarifaço, ainda em julho, antes das ordens administrativas serem publicadas pela Casa Branca. A possibilidade foi cogitada pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda), mas aparentemente descartada pelo presidente Lula, que declarou em evento que “os recursos pertencem ao povo brasileiro”.

Quebra de patentes e o risco de insegurança jurídica

Mais uma possibilidade de independência econômica brasileira do Exterior e, recentemente citada por políticos e analistas como arma de retaliação ao tarifaço, é o desenvolvimento de patentes - os títulos de propriedade sobre uma invenção ou um modelo produtivo.

A quebra de patentes, que é a produção de artigos ou adoção da invenção sem pagar ao criador pelos direitos, já foi adotada pelo Brasil. Mas em um caso específico: em 2007, o governo Lula 2 quebrou a patente do medicamento Efavirenz, utilizado no tratamento da Aids. Porém, o caso respeitou a legislação nacional, a qual permite a prática apenas em casos de interesse público ou emergência nacional.

No contexto do tarifaço dos EUA, a quebra como uma retaliação provoca insegurança jurídica e empresarial internacional, segundo Frederico Cortez, fundador do escritório Frederico Cortez Advocacia, especializado em propriedade intelectual e atual presidente da Comissão Especial de Propriedade Intelectual da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Ceará (OAB/CE).

"O Brasil, infelizmente, não teve um amadurecimento adequado em relação à proteção da propriedade intelectual no que tange a patentes. Por não ter essa cultura, o INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), o único órgão federal autorizado a conceder as patentes, tem um sistema um pouco atrasado e uma fila enorme. A média de patentes concedidas por ano é de 5 mil e, em 2021, apenas 19% do número de patentes depositadas no INPI eram de brasileiros. Ou seja, a maioria era de estrangeiros aqui", acrescentou.

Como estratégia de reduzir a dependência do Exterior em áreas estratégicas, Cortez apontou o investimento na modernização do sistema e no apoio ao desenvolvimento de patentes por brasileiros.

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Projetos de amônia verde podem reduzir a dependência de fertilizantes do exterior

Apostas dos estados do Nordeste para dar uma reviravolta na economia, os projetos de hidrogênio e amônia - principalmente - verdes são apontados como a principal via de redução da dependência do Brasil dos fertilizantes importados.

No ano passado, os fertilizantes (e adubos químicos) foram responsáveis por 5,2% das importações brasileiras. O percentual representa a movimentação de US$ 13,5 bilhões e tem na Rússia o principal fornecedor, o que abre mais um temor de retaliação pelo presidente Donald Trump (Estados Unidos) ao Brasil.

Mas, hoje, o país possui sete projetos em grande escala de hidrogênio e amônia com decisão final de investimento prevista para o próximo ano, segundo levantamento da Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde (ABIHV). Destes, cinco estão localizados no Ceará, enquanto os outros dois estão em Pernambuco e Minas Gerais.

“Certamente a indústria de hidrogênio, metanol, amônia e fertilizantes verdes desenvolvidas no Brasil pode reduzir essa dependência das nossas importações de fertilizantes, sim. É bom destacar que o Brasil, apesar de ser um dos celeiros do mundo, importa 90% dos fertilizantes que usa hoje”, observa Fernanda Delgado, CEO da ABIHV.

Ela explica que, atualmente, o processo de produção dos fertilizantes em fábricas brasileiras envolve o gás natural, que chega “a um preço muito caro, muito distorcido”. Com as unidades de amônia verdes implantadas é possível ter “uma base mais competitiva do ponto de vista de custos”.

Ceará em destaque

Dos cinco projetos esperados para 2026 no Ceará, quatro planejam produzir amônia verde no Complexo do Pecém. A Qair projeta 1,6 milhões de toneladas por ano; Casa dos Ventos mais 900 mil toneladas/ano; a FRV, 400 mil toneladas/ano; e a Voltalia outras 250 mil toneladas/ano. Além delas, a European quer produzir 100 mil toneladas anuais no Complexo de Suape (PE).

Complexo do Pecém concentra maior parte dos projetos de amônia verde em desenvolvimento(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Complexo do Pecém concentra maior parte dos projetos de amônia verde em desenvolvimento

“As indústrias que estão chegando no Nordeste tem aí o condão do mercado exportador para uma indústria sofisticada, complexa, de alto valor agregado, visando o mercado exportador, principalmente para o aço verde. São outras potencialidades”, diz Fernanda.

Os 3,2 milhões de toneladas de amônia visados pelas empresas com decisão de investimento no próximo ano ainda são acompanhados de outros dois esperados para 2027 e que envolvem mais 3,1 milhões de toneladas anuais.

Como funciona a amônia no processo dos fertilizantes?

Hoje, o Brasil importa principalmente os chamados fertilizantes nitrogenados, fosfatados e potássicos da Rússia. A amônia produzida pelas usinas a serem instaladas no Brasil, com destaque para o Nordeste, deve reduzir a importação deste primeiro tipo de fertilizante.

As lavouras de soja são as que mais consomem o fertilizante russo no Brasil(Foto: Wenderson Araujo/Trilux)
Foto: Wenderson Araujo/Trilux As lavouras de soja são as que mais consomem o fertilizante russo no Brasil

Isso porque a amônia é matéria-prima para a fabricação de fertilizantes nitrogenados, como a ureia, nitrato e sulfato de amônia. Os itens são aplicados em larga escala pelo agronegócio brasileiro, especialmente as grandes plantações de soja do Centro-Oeste e do Matopiba - área formada por Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

Além disso, as culturas de milho, cana-de-açúcar e algodão, também com produção em larga escala, utilizam os fertilizantes russos.

Fortaleza, CE, BR 17.07.25 Operações de carga no Porto do Pecém (Fco Fontenele/O POVO)
Fortaleza, CE, BR 17.07.25 Operações de carga no Porto do Pecém (Fco Fontenele/O POVO)

Reduzir peso do Exterior na balança comercial é mais desafiador para o Ceará

O Ceará tem um desafio maior que o do Brasil quando o assunto é reduzir a dependência do mercado externo, pois precisa olhar para as duas vias da balança comercial simultaneamente.

No contexto do tarifaço, o Estado foi o mais impactado uma vez que a maior parte das exportações (60%, em 2024) tem o território americano como destino. Já quando o assunto é importação, os itens mais comprados do Exterior não dão margem para produção ou desenvolvimento de uma cadeia produtiva local.

Este cenário exige uma atenção redobrada ao comércio internacional. Ao mesmo tempo que deve variar os destinos da produção local, dependendo menos de um só país comprador para assegurar os negócios, necessita ver quais são os mercados de onde mais compra e o quê compra desses mercados.

Igor Lucena, economista e PhD em relações internacionais, classificou como, no mínimo difícil, alterar a pauta importadora do Estado na velocidade que é preciso para enfrentar o que acredita ser "uma nova disputa geoeconômica internacional".

"Não é um processo de curto prazo e não é simples. O que a gente importa? Material elétrico, produto químico, equipamentos mecânicos, metalurgia… Temos uma pauta de produtos semi e manufaturados que não tem como substituir", expôs.

Os dados da balança comercial corroboram a fala de Lucena, mas apontam ainda dois outros itens de difícil produção local como de maior peso nas importações em 2024: carvão mineral (14,6% - maior percentual das importações) e trigo (7,5%). O primeiro movimentou US$ 440,8 milhões, enquanto o segundo, US$ 19,9 milhões.

Para impor uma soberania nos negócios internacionais, o Ceará, apontou o economista, precisa atuar para ampliar as relações comerciais no mundo. Ele sugeriu, além do desenvolvimento de cursos de relações internacionais no Estado, uma estratégia de longo prazo para marcar e ampliar a presença em mercados estratégicos.

Sobre os pacotes de socorro às empresas afetadas pelo tarifaço, Lucena disse ter sido dois acertos, tanto o plano federal quanto o estadual. Mas reforçou que é preciso mais empenho em uma atuação internacional, defendendo os interesses cearenses em escritórios localizados nos países de maior interesse do Estado.

"O que o Trump está fazendo é o primeiro degrau de uma guerra econômica e vários outros países também vão entrar nesse conflito, cada um olhando para os seus interesses", alertou.

Na linha de frente das tratativas do Ceará com o mundo, a secretária estadual Roseane Medeiros (Relações Internacionais) ressaltou ao O POVO que o trabalho do Estado na busca de novos mercados acontece constantemente, mas reforçou que uma mudança na pauta exportadora e importadora leva tempo.

"Tanto na exportação quanto na importação, não é o caso de ir ao supermercado e comprar ou vender um produto. A nossa capacidade de negociar e de entender essa nova geopolítica vai ser muito importante", afirmou.

Roseane reforçou o foco do Ceará nessas primeiras semanas no amparo às empresas afetadas pelo tarifaço, com diálogo alinhado com o Governo Federal, medidas complementares e sugestões diretas na conversa com o setor produtivo, e assegurou que as tratativas por novos mercados de compra e venda acontecem simultaneamente.

Nas últimas semanas, a secretária encontrou, on-line, comitiva do Chile para trocas de informações sobre os projetos de hidrogênio verde, tem programado apoio a evento da Dessal para captação de parceiros para compra de salmoura da usina de dessalinização e planeja juntamente ao governador (Elmano de Freitas-PT) ações alinhadas ao tarifaço.

Ela também mencionou a participação do Ceará na independência do Brasil dos fertilizantes russos citando o Projeto Santa Quitéria. Com R$ 2,3 bilhões de investimento, o empreendimento deve gerar 1 milhão de toneladas de fertilizantes fosfatados - além de 220 mil toneladas de fosfato bicálcico e 2,3 mil toneladas de concentrado de urânio. Mas ainda depende de licenciamento ambiental, tentado há pelo menos 20 anos pelo Consórcio Santa Quitéria, cujo estudo já passou pela 8ª tentativa de aprovação pelo Ibama. O último teve 37 pontos de inconsistências apontados.

"Nós temos a missão de correr atrás de novas oportunidades. É um compromisso meu, um compromisso que o governador Elmano de Freitas tem, e é nisso que estamos trabalhando", reforçou.

Ana Karina Frota – Mestre em Ciência Política pela Universidade Clássica de Lisboa, Pós-graduada em Comércio Exterior pela Universidade Católica de Brasília, Presidente da Câmara Setorial de Comércio Exterior e Investimentos da Adece, Gerente do Centro Internacional de Negócios da FIEC, Membro do Conselho de Relações Internacionais da FIEC – CORIN.
Ana Karina Frota – Mestre em Ciência Política pela Universidade Clássica de Lisboa, Pós-graduada em Comércio Exterior pela Universidade Católica de Brasília, Presidente da Câmara Setorial de Comércio Exterior e Investimentos da Adece, Gerente do Centro Internacional de Negócios da FIEC, Membro do Conselho de Relações Internacionais da FIEC – CORIN.

Importação como vantagem competitiva

A importação já foi considerada como uma ameaça para a economia do Brasil. Era compreendida como sinônimo de concorrente da indústria nacional e fator crítico na blindagem do País nas crises internacionais. Hoje, as importações desempenham um papel relevante no cotidiano das empresas.

O número de empresas importadoras no Ceará cresce dia a dia. São empresas que buscam reduzir custos de aquisição e começam a fazer importação direta. Tais empresas, mesmo diante da atual flutuação cambial, conseguiram maximizar resultados.

Em tempos de economia conturbada e consumo limitado, reduzir custos é mais do que nunca a palavra de ordem para as indústrias. Desta forma, o processo de aquisição de bens no Exterior possibilita o acesso a novas tecnologias, como, por exemplo, insumos, máquinas e equipamentos com tecnologia de ponta, muitas vezes, sem a existência de um similar nacional. Empresas modernizam o seu processo produtivo e consequentemente geram ganhos de competitividade.

Além disso, a importação de insumos, componentes e matérias primas ganha cada vez mais relevância como diferencial competitivo nas operações das empresas, ao permitir a compra destes a um custo menor em relação ao concorrente local.

Importar é realidade para mais de 40 mil empresas brasileiras. Com um processo bem estruturado, a importação pode trazer ganhos de competitividade empresarial relevante.

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