
Batizada em homenagem à personagem de O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, a atriz e criadora de conteúdo carioca Anaterra Oliveira, 33, sente-se completa quando ocupa a rua. No ensino médio, fez teatro de rua e mais tarde cantou e apresentou-se no transporte público — mas foi na internet, esse lugar onipresente e abstrato, que ela impulsionou a própria voz ao dar espaço para o outro.
Somando o Instagram e o TikTok, são mais de 992 mil seguidores. Os vídeos geralmente são entrevistas no meio da rua, com pessoas do cotidiano discursando sobre temas como violência contra a mulher, papéis de gênero, infância e relações sociais. Nos vídeos, Anaterra quase não fala: vestida em ternos coloridos, o papel dela é perguntar e costurar os relatos entre si.
Isso não significa que o trabalho é fácil. São dezenas de entrevistas por dia; cada segundo em vídeo resume horas de conversa, ensaios e trocas. E nem sempre os desabafos chegam ao público geral: "Tem pessoas que querem muito falar, mas que realmente não conseguem (gravar), conversam sem ligar a câmera", comenta a artista e estudante de Psicologia na Universidade Santa Úrsula, do Rio de Janeiro.
Se para os outros as entrevistas são uma forma de desabafo, para Anaterra é uma forma de revigorar e, quem sabe, ressignificar um passado de violências — tanto em uma família disfuncional, quanto em um relacionamento abusivo. "Eu passei por violência também, então isso me move a criar esse conteúdo. Acho que o artista tem muito disso, de usar sua dor para trazer reflexão", diz.
Em uma troca mediada por microfones, tripés e calçadas, o trabalho de Anaterra traduz o poder da entrevista. Para os entrevistados, é um raro momento de protagonismo. Para a entrevistadora, é a possibilidade de transformar perspectivas. Conheça Anaterra e o trabalho dela n'O POVO+:

O POVO+ - Como você entrou nesse universo de gravar vídeos, principalmente nesse formato de entrevistar as pessoas na rua?
Anaterra Oliveira - Eu sempre estive na rua. Eu comecei a fazer teatro de rua bem nova, eu tava no ensino médio ainda, e durante uma época eu cantei no trem. O rapaz tocava junto comigo, paguei uma parte do meu aluguel dessa forma também, passando chapéu no trem. Então, antes do formato existir, houve a minha relação com a rua, né?
Tinha uma época que eu fazia uma performance, na qual eu ia pra rua, levava roupa, levava chá e conversava com pessoas em situação de rua. Então, eu sempre tive essa necessidade de estar na rua, de estar em contato com as pessoas.
Visto isso, que eu já tava na rua ali, eu sentia a necessidade de criar algum tipo de conteúdo para internet, porque a vida tá na internet hoje em dia. As pessoas conseguem vender coisas com mais facilidade na internet, e eu tinha uma lojinha, um sex shop. Eu queria divulgar os meus produtos, então eu comecei fazendo um vídeo de entrevista.
Primeiro eu fiz um vídeo que teve uma repercussão boa, mas eu estava num momento muito difícil da minha vida. Tinha acabado de terminar um relacionamento muito abusivo, eu tava com menos de 20 quilos (kg) do que eu tenho hoje, tava bem abaixo do peso… Desde esse término eu ganhei mais de 20 kg; assim, foi bem impactante na minha vida.
Então, gravei o primeiro vídeo, eu tinha um perfil com mil e poucos seguidores e o vídeo deu 16 mil visualizações — o que é uma coisa bacana comparado à projeção que eu tinha.
Leia mais
Aí, um ano depois, eu criei coragem. Eu trabalhei isso na terapia, e depois de muito tempo trabalhando isso dentro de mim, um belo dia fui para a rua, sozinha, com o tripé, criei coragem e gravei o vídeo que eu queria. Aí ele foi compartilhado por uma moça no Twitter, eu nem tenho Twitter e eu não me lembro agora quantas foram, mas assim, mais de 20 milhões de visualizações, sabe?
A coisa explodiu no Twitter e começou a tomar uma proporção que eu não esperava. Eu estava muito mal de grana, vivendo uma fase muito difícil… Eu costumo dizer que foi uma das piores fases da minha vida, e o fato de eu começar a criar esse conteúdo fez com que eu me mantivesse viva até hoje. Porque eu estava muito sem esperança e esse conteúdo me salvou.
Então, o TikTok me deu monetização e pensei: "Ah, por que não fazer mais?” E eu comecei a fazer mais, e dentro de meses eu recebi minha primeira proposta de publicidade. Isso foi em 2023 e cá estou eu agora, em 2025, vivendo disso. Quem diria?
OP+ - É interessante porque, como sociedade, a gente tem muito medo da rua. Antes era um espaço de convivência, agora é um espaço de medo, a gente não quer estar na rua. A sua relação com a rua mudou de alguma forma, a partir da gravação dos vídeos?
Anaterra - Eu não sei se é uma mudança de relação que você diz, mas essa mudança de perspectiva do que eu estava fazendo na rua. Eu acho que eu não classificaria como medo da rua o que eu sentia. Era mais um medo do julgamento e medo da interação com o conteúdo.
É porque esse vídeo que eu fiquei muito nervosa para poder gravar envolvia perguntar para os homens: "Quando a mulher tá menstruada e ela tá usando absorvente interno e precisa fazer xixi, ela precisa tirar o absorvente interno?". Era mais uma vergonha. Eu precisei criar coragem em relação a isso, mas medo de estar na rua, eu acho que foi um processo contrário, sabe?
Foi um processo de me apropriar cada vez mais da rua, e eu acho que o medo de estar ali é uma coisa que eu já não sinto há tanto tempo… Eu entendo também que existe uma transição, de um processo de muito privilégio para mim, porque eu cresci na Baixada Fluminense, em Mesquita (RJ), que é uma cidade que não é segura.
Fui assaltada várias vezes morando lá, mas depois eu comecei a fazer faculdade de Artes Cênicas no Urca, que é um bairro super privilegiado no Rio de Janeiro… Depois de alguns anos, eu me mudei para o Botafogo.
A maior parte do conteúdo, eu gravo no centro do Rio. Muitas pessoas têm medo do centro da cidade; eu não tenho porque tem bastante polícia ali. Acho que no período que eu gravava sozinha, que eu levava só o telefone e o tripé, eu ficava com um pouco de medo, sim, mas o que me fazia ter mais tranquilidade era fazer contato com as pessoas, sabe?
Por exemplo, o primeiro vídeo que eu gravei com pessoas em situação de rua, gravei só eu e eles. E eles participando ali, o telefone solto, sabe? O telefone não tinha cordinha, já era um iPhone no tripé. O que me fazia sentir tranquilidade era entender e perceber que eles gostaram da ideia, que eles entendiam o que aquilo significava e eles mesmos estavam ali fazendo a contenção e a segurança, para que ninguém de fora viesse e fizesse qualquer outra coisa.
Já teve um vídeo que eu gravei em 2023 mesmo, que era perguntando para as pessoas sobre o que significava o Natal para elas. Nessa perspectiva de que o Natal não é uma coisa igual para todas as pessoas, existem pessoas que sofrem no Natal.
E houve uma parte que eu fiz uma gravação com menores em situação de rua que estavam usando thinner (um solvente volátil). Eles estavam baforando durante (a gravação), a menina estava ajeitando ali a câmera, fazendo enquadramento, e baforando ao mesmo tempo. Mas por quê? Como que isso é possível, né? Que eu deixei meu telefone ali na mão deles, entendeu?
E chegou até rolar uma briga do tipo: "Não, deixa que eu tô filmando agora!”. Porque eles entendiam que aquilo ali fazia sentido para eles, de ser publicado, de ser feito, de ser gravado.
O que distancia do medo, talvez, seja não olhar para o outro de uma forma alheia, do tipo “aquela pessoa vai me causar perigo, vai acontecer qualquer coisa”, e sim conversar e fazer com que a pessoa entenda que aquilo ali faz sentido para ela.
E também tem a consciência de que, às vezes, as pessoas têm medo de pessoas em situação de rua, mas há uma compreensão muito nítida de que, se a pessoa dorme ali naquele ponto, mora ali naquele ponto, ela não vai fazer nada com você. Porque aquilo ali é a casa dela. Aquilo ali é o território dela, então, tem um respeito àquele ambiente, ele é conservado e é respeitado.
OP+ - E as pessoas que você entrevista nem precisam estar em situação de vulnerabilidade, mas elas são anônimas. Como você percebe essa experiência de troca, com as pessoas se percebendo nesse papel de protagonismo, de poderem falar?
Anaterra - Acho que tem de tudo um pouco. Desde pessoas que precisam muito desabafar e querem muito falar. Também tem pessoas que precisam falar e não sabem que querem falar, e não sabem se conseguem, acham que não têm coragem. Tem pessoas que querem muito falar, mas que realmente não conseguem (gravar), conversam sem ligar a câmera. Acho que eu percebo como uma troca muito grande, porque eu aprendo muita coisa, sabe?
Tem aquele formato de vídeo que eu vou andando com as pessoas e a gente geralmente constrói a frase com a pessoa, um processo que demora. Eu explico que quero falar sobre tal tema, aí pergunto o que a pessoa pensa sobre aquilo, se já passou por alguma situação alguma vez na vida…
Tem coisas que ficaram muito marcadas (em mim). Uma vez eu estava gravando sobre violência contra a mulher, e era para completar a frase: “Se ele fosse o amor da sua vida, ele não…” Aí uma moça falou a seguinte frase: "Se ele fosse o amor da sua vida, você não teria uma medida protetiva contra ele e ele é seu próprio filho". E saiu andando. Ela respondeu e disse: “Mas eu não consigo falar sobre isso”. E ela só falou isso e saiu, sabe?
Caramba, como é que deve ser uma medida protetiva contra o próprio filho, né? Cara, deve ser difícil isso. Às vezes, a pessoa só fala, joga aquilo e sai, tipo, “não consigo lidar com isso agora”. Teve uma moça que falou uma vez que ela foi estuprada e que ela teve que manter a gestação. Ela disse: “Tive que deixar meu filho vir. Meu trem chegou”, e entrou, sabe? Não deu tempo nem (de manter uma conversa).
Pesa um pouco o lance de que, às vezes, você quer conseguir trocar mais com a pessoa, mas nem sempre a pessoa tem tempo para poder conversar e desabafar na medida certa. São encontros muito corriqueiros, a pessoa tá passando na rua.
Tem muita gente que se recusa a falar, que não quer, que tá com pressa, que tá atrasado, que não tem almoço, que não tem tempo. E tem muita gente que fala. Mas é muito gostoso, é muito rico. Eu gosto muito de fazer o que eu faço, de verdade.
OP+ - Mas como é chegar em casa depois de gravar vídeos que o teor seja muito pesado? Como é que você lida com isso?
Anaterra - Eu vou te falar, recentemente eu tava gravando um vídeo e… Assim, eu encontrei uma mãe e uma filha, e o vídeo era sobre violência contra mulher, e a menina falou assim: "A gente acabou de sair da delegacia para dar parte".
Ela contou que foi agredida pelo pai da filha dela, acho que era uma bebê de 2 anos. Ela foi dar parte e a sogra dela tava fazendo pressão, dizendo para ela não dar parte, que esse tipo de coisa acontece, ele é seu marido, ele te ama, foi uma vez só… E o vídeo falava basicamente sobre isso, sabe? Do tipo, não é uma vez só.
E eu mostrei o que outras pessoas já tinham falado — a gente deixa anotado para não repetir — exatamente isso. Aí ela falou: "Esse vídeo tá me confirmando que era isso mesmo que era para fazer". E a mãe dela tava junto: "É isso aí, minha filha, não é para você voltar para ele, você fez a coisa certa". Porque parece que quando ela chegou na delegacia, ela não foi tão bem acolhida e tratada na delegacia.
É sempre uma coisa gostosa, porque a gente está fazendo isso (os vídeos) pensando nas mulheres que ainda estão dentro da relação abusiva.
Teve uma vez que eu conversei com uma senhora que disse que ela estava dormindo e acordou com o cara jogando álcool ou gasolina na cama dela. Isso virou uma frase do vídeo, inclusive: “Ele não me bateu, mas ele tentou tacar fogo na cama enquanto eu dormia”.
É bom porque quando a gente conversa com as mulheres, são mulheres que já superaram, são mulheres que estão pensando num processo futuro. Eu acabei deixando muito da minha vida social (de lado), porque eu acho mais gostoso estar na rua gravando, interagindo, trocando com essas pessoas do que estar num bar conversando com amigos.
Muitas vezes eu chego em casa cansada, mas é sempre revigorante. Mas tem entrevistas que me quebram.
OP+ - Como qual, por exemplo?
Anaterra - Uma vez eu estava perguntando qual foi a pior coisa que o homem já te fez e qual foi a pior coisa que a mulher já te fez. As pessoas mais marcantes do vídeo foram pessoas que não foram abordadas, mas que vieram até a gente. Teve um senhor que falou: "Ela me traiu. Eu também traí ela.”
Já uma moça falou que queria participar e disse: "Eu queria muito poder contar a minha história.” Perguntei qual foi a pior coisa que um homem fez pra ela, e ela: “Me deixou deficiente visual.”
Ela tem 20% da visão porque o marido dela espancava ela, batia na cabeça dela, conseguiu tirar guarda das filhas… E tem uma frase que é muito marcante no vídeo; assim, eu tava chorando nessa hora da entrevista, ela tava chorando também, e ela disse: "Eu só consegui recuperar a guarda das minhas filhas quando a minha filha disse na frente do juiz: ‘O meu pai bate na minha mãe’”, sabe?
Ela falou aquilo de um jeito que me rasgou por dentro. É uma realidade difícil, mas também é muito bom saber que ela saiu dessa situação. Que hoje em dia ela tá cursando Direito, inclusive. Já tem quase dois anos esse vídeo, não sei se ela já se formou, mas na época ela tava cursando Direito justamente porque ela queria ajudar outras mulheres que estavam passando por isso assim.
Ela tava usando ali a história dela para poder ajudar outras pessoas, e eu sinto um pouco isso também. Eu passei por violência também, então isso me move a criar esse conteúdo.
Acho que o artista tem muito disso, de usar sua dor para poder fazer o bem para outras pessoas. Para trazer reflexão. Acho que nem seria fazer o bem, mas seria usar sua dor para trazer um questionamento do tipo: será que isso aí que você tá vivendo é bom mesmo? Será que te faz bem? Será que realmente você não consegue viver sozinha?
OP+ - Então você se define como uma artista, não como influenciadora.
Anaterra - Sim, eu sou artista. Eu comecei a fazer teatro quando eu tinha 11 anos de idade, sabe? Eu comecei a estudar música quando eu tinha nove. Eu sempre fui artista, eu me considero… Eu acho que eu sempre fui artista de rua. Tudo bem que eu fiz, ao todo, 32 peças de teatro, e dessas duas foram de teatro de rua.
Fiz a performance na rua, então acho que eu continuo sendo artista de rua. A única diferença é que hoje em dia eu tenho um canal na internet, mas a maior parte do meu conteúdo é na rua. Também sou estudante de Psicologia, mas uma que quer trazer o estudo da psicologia para o processo artístico mesmo.
OP+ - Você começou a Psicologia antes de começar a gravar os vídeos ou foi depois?
Anaterra - Antes. Eu sou atriz, mas aí veio a pandemia. Aí não tem teatro, não tem peça… E aí você fica como? Eu pensava: “Meu Deus, meu Deus. Tô mal da cabeça, meu Deus, pandemia, meu Deus, e agora?” Eu não tinha perspectiva de futuro como artista.
Legal, eu tenho registro de atriz. Mas e agora? Então, eu comecei a pensar no plano B, que foi a Psicologia. Eu tô bem atrasada (na faculdade), porque vivendo essa vida a gente acaba pegando, às vezes, três matérias, mas se for contar assim certinho mesmo, eu tô no décimo período. Então tem cinco anos que eu tô na faculdade de Psicologia.
E foi uma surpresa, porque foi uma coisa que eu não esperava. Era meu plano B, a carreira artística sempre foi meu plano A, então parece que as coisas se juntaram.
OP+ - Mas te ajuda muito, então, estudar psicologia e fazer o seu trabalho?
Anaterra - Principalmente fazer terapia, porque você não pode misturar a sua relação com a relação com o outro ali. Essa coisa de conseguir distanciar e entender, e não me afetar, por exemplo, com umas histórias, por mais que muitas vezes sejam histórias parecidas (à minha).
Se eu não fizesse terapia, eu jamais conseguiria realizar entrevistas ou conversas com pessoas que narram histórias de abuso sexual na infância, porque eu vivi isso.
É como se eu olhasse de uma forma distanciada. Isso vem muito por conta do processo terapêutico. Foi muito tempo de terapia para conseguir olhar para isso de uma forma que não me afete. Eu sinto muito que o estudo da psicologia me traz ferramentas para conseguir lidar com as entrevistas, mas principalmente a terapia (me ajuda) muito.
OP+ - Agora, os comentários são um fenômeno à parte… Alguns são de pessoas que trazem histórias muito boas, mas muitas vezes tem muita gente com comentários maldosos.
Anaterra - A primeira vez que um vídeo viralizou, recebi muitos comentários bem pesados. Eu levei isso para terapia, nos primeiros meses era bem difícil. Tinham pessoas criticando, desejando minha morte, comentários violentos. Trabalhei isso na terapia e depois de um tempo passou a ser uma coisa normal que eu entendo que acontece, sabe?
Quando você passa a entender que a maior parte das vezes quando a pessoa está sendo agressiva ali com você, ela está falando bastante sobre ela também. E aí também tem um outro ponto: vem uma pessoa me criticar, e vêm outras 10 para defender. É entender que a visão de mundo daquela pessoa também está limitada.
Também tem um outro elemento: a maior parte da minha vida eu sempre estive muito, muito mal financeiramente. Pela primeira vez na minha vida eu cheguei num lugar onde o meu trabalho me permite ter acesso (a algum conforto).
Durante a pandemia, eu morei com o meu ex e com a mãe dele, e era catastrófico. Eu não podia usar o banheiro principal da casa, tinha que usar o banheiro dos fundos, eu não podia ir na sala porque ela não deixava… Era uma relação muito doentia com a casa, ele chegou a me agredir por ciúme. Era uma vontade muito grande de morrer, de verdade.
Enfim, eu acabei perdendo uma gestação, foi uma coisa que me fez muito mal. Eu cheguei muito no fundo do poço e hoje em dia eu tenho um trabalho que me permite estar onde eu tô. Então, (o hate) é engajamento também. De verdade, a pessoa tá falando besteira ali, ela tá contribuindo financeiramente para minha vida.
Se eu coloco na balança o que a pessoa tá falando e o quanto o comentário dela ajuda com o que eu tenho, a vida que eu tenho hoje… De verdade, esse trabalho salvou minha vida. Eu não tenho a certeza de que eu estaria aqui hoje se não fosse isso. Então, sinceramente, eu já fui no inferno e voltei. Não é um comentáriozinho desse (que vai me abalar).
E, poxa, eu tenho 33 anos já, sabe? Já passei do meu tempo de bater de frente. Eu entendo hoje que não adianta, se eu tentar convencer você de alguma coisa, eu não vou conseguir te convencer.
O meu conteúdo não existe para convencer absolutamente ninguém. Até porque um conceito, um pensamento, é formado de vários elementos.
Para você mudar de ideia sobre alguma coisa, foi uma conversa com uma pessoa, foi um vídeo que você assistiu, foi um artigo que você leu, foi uma experiência que você teve, uma música que você ouviu… E aí todos esses elementos se juntaram e você pensou: “Caraca, acho que não era bem o que eu estava pensando”.
Então, que o meu conteúdo seja um farelo dentro de um mix de várias coisas para aquela pessoa refletir — ou não. Mas esse cara que tá me xingando por um fake, ele não tem coragem de fazer isso pessoalmente, sabe? Então, é isso. Obrigada por engajar, valeu.
OP+ - E tem também o reconhecimento do outro lado, né? Por exemplo, você foi convidada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) junto com outros criadores de conteúdo para um encontro sobre influência digital e democracia. Como é que foi esse dia?
Anaterra - Cara, foi mágico. Porque é isso: quando você foi uma criança que cresceu sofrendo violência física, psicológica, sexual, você acaba se tornando um adolescente, um adulto muito inseguro. É até um processo que eu trabalho na terapia, de não construir minha validação a partir do trabalho somente, dos números, do alcance, do público, de tudo…
Mas assim, acaba sendo uma coisa que me nutre e acaba sendo aquela (sensação) de “caramba, que legal!”. Então, é muito gratificante, e foi muito rico, sabe? Foi um processo muito legal. Rolou muito hate, claro. E o hate de um público novo.
Uma coisa é você receber aquele hate de casa, que você já tá acostumado: as mesmas coisas que te falam, tipo me mandar lavar louça. Já falaram isso tantas e tantas vezes, para eu ir lavar louça, que sou feia, que feminista não tem que entrar na internet…
Agora, (dessa vez deu) uma certa angústia, porque a gente não recebeu cachê para esse evento, a gente foi convidado. E as pessoas falam assim: "Você está rica por causa desse STF, você está ganhando dinheiro com isso, é o dinheiro do povo, é o dinheiro das pessoas". E, gente, não é isso que está acontecendo! Deu uma certa angústia por ser um formato de hate novo, que eu não estava pronta para lidar.
Mas fora isso, foi muito legal estar no meio de outros influenciadores que eu já admirava, pessoas que eu já conhecia. Foi muito bom poder falar sobre esse tipo de conteúdo também. Eu gosto muito de falar de instituições, tanto o vídeo do STF, quanto o vídeo do Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Falar sobre o que as pessoas muitas vezes não entendem, não conhecem, não têm acesso.
Eu voltei muito feliz dessa viagem. Foi muito bacana a troca com os ministros, aprender um pouco mais… Principalmente com o ministro Alexandre de Moraes.
As pessoas têm muito ranço dele. Eu recebo comentários dizendo “deixando de seguir porque você defendeu Alexandre de Moraes, ditadura.” E eu fico: "Gente, como é que é ditadura, se você tá falando isso? Se fosse uma ditadura, você estaria preso por falar esse tipo de coisa". As pessoas não têm essa compreensão.
OP+ - Eu queria voltar ao que você disse de que não faz vídeo para convencer ninguém… Mas você já recebeu algum relato de alguém que foi afetada verdadeiramente pelo teu conteúdo?
Anaterra - O que mais eu recebo é relato do tipo: terminei um relacionamento por causa de um vídeo seu. Não voltei para a relação por causa desse vídeo. Meu namorado te odeia, porque eu citei um vídeo seu numa discussão nossa. Então, principalmente os vídeos que falam sobre relacionamento abusivo, é o que me traz muita vontade de produzir.
É porque, quando você cresce num ambiente violento, no qual os seus pais te espancam por coisas superficiais, se o namorado te dá um tapa na cara, tipo… Poxa, o que é isso, né? Eu lembro de ser criança e ser levantada pelo pescoço por motivos banais. Então, assim, um tapa, um soco no braço, não é uma agressão comparado a tudo que eu vivi, entendeu?
Hoje em dia eu consigo entender, mas quando eu tomei um tapa na cara, eu pensei: “Poxa, ok. É chato, mas tudo bem, nada comparado a tudo o que eu vivi.” Sacou? Então, (eu recebo esses relatos) sempre quando eu bato nessa tecla. De falar sobre relações familiares também, porque tem essa coisa da sociedade de ver a família como algo sagrado. "Sua família pode te fazer muito mal, mas é sua família, sabe?" Aí você não vai se afastar dessa dor.
Falar sobre esse tipo de coisa, que as pessoas pensam às vezes, mas não têm coragem de falar, faz com que eu receba relatos de pessoas dizendo que refletiram, perceberam que fazia sentido.
Já rolou mais de uma vez de encontrar mulheres que falaram isso. “Cara, teu vídeo me fez sair da relação. Teu vídeo me fez repensar o meu namoro.” O que é um comentário negativo comparado a uma pessoa vir a você e falar: "Terminei o relacionamento por causa do vídeo”? Pô, tamo no lucro pra caramba.