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Dona Fátima: um bolo para alegrar a vida
Reportagem Seriada

Dona Fátima: um bolo para alegrar a vida

Confeiteira e empresária, Dona Fátima, da Fátima Tortas e Bolos, mantém com facilidade a tradição de oferecer qualidade e afeto para seus clientes, muitos deles fiéis há décadas, e se agarra no lema de "quem faz o bem, recebe em dobro".

Dona Fátima: um bolo para alegrar a vida

Confeiteira e empresária, Dona Fátima, da Fátima Tortas e Bolos, mantém com facilidade a tradição de oferecer qualidade e afeto para seus clientes, muitos deles fiéis há décadas, e se agarra no lema de "quem faz o bem, recebe em dobro".
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Em uma das reuniões semanais de pauta na Redação do O POVO, agraciadas por café quentinho e bolo, de preferência o crocante, a dúvida sobre quem era aquela que dava nome ao sabor que animava as tardes das quartas-feiras surgiu.

Como ela aprendeu a fazer bolos? Qual seria o seu sabor favorito? Será que fazer bolos todos os dias a faz feliz, assim como fazem aqueles que saboreiam uma fatia ainda quentinha?

Trilhando seu próprio caminho de forma honesta e sincera, Maria de Fátima dos Santos, a Dona Fátima, conquistou uma clientela fiel há mais de 20 anos e vem ampliando seu negócio a cada nova fornada.

Maria de Fátima dos Santos é a fundadora do Fátima Tortas e Bolos(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Maria de Fátima dos Santos é a fundadora do Fátima Tortas e Bolos

Ainda criança, Fátima deixou a cidade de Viçosa do Ceará para trabalhar em Fortaleza, partindo em busca de uma vida melhor daquela a que estava acostumada. Na Capital, aprendeu sozinha e por esforço próprio a fazer bolos, tortas, biscoitos e todo o tipo de preparo de doces e salgados.

Sem negar ou esquecer a ajuda de inúmeras pessoas, muitas delas que já partiram e compartilharam o gosto pelos bolos da Fátima com filhos e netos, a confeiteira equilibrou os desafios do mercado com a superação de questões pessoais e familiares.

“Abençoada por Deus”, como ela mesma afirma ser, Dona Fátima se mantém com o coração leve, fazendo bolos todos os dias, educando os filhos, fazendo amigos e não deixando a memória da mãe ser apagada de sua história.

 

O POVO - A senhora sempre morou por aqui, nessa casa? Como foi o seu começo, ainda na infância?

Fátima - Com oito anos, eu morava em Viçosa do Ceará, mas nessa idade já sabia exatamente o que eu queria. Então, o que eu queria era não ficar em Viçosa, porque eu tinha muito problema com os meus pais. Era uma família muito pobre, de muitos filhos e eu sempre botei na minha cabeça que eu não queria ver aquela situação na minha vida, que eu não queria aquilo para mim.

Tinha uma tia que tomava conta de um sítio de uma senhora aqui de Fortaleza. E, quando criança, ela sempre me levava para o sítio. Então, um dia, eu perguntei: “A senhora não quer me levar para o sítio, não? Me leve, eu sei trabalhar, você me ensina”. E ela: "Não, mulher, tua mãe não vai deixar".

'Com oito anos já sabia o que eu queria, eu sempre fui uma menina determinada e independente porque eu já cuidava dos meus irmãos'(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA 'Com oito anos já sabia o que eu queria, eu sempre fui uma menina determinada e independente porque eu já cuidava dos meus irmãos'

E eu: "Vai sim. Tem dia que ela bebe, ela fica legal. Tem dia que ela bebe e ela não fica legal. No dia em que ela estiver legal, eu aviso e a senhora vai lá em casa e pede, só dizer assim: ‘Deixa essa menina ir comigo, ela vai trabalhar e vai te mandar dinheiro para ajudar a criar os filhos’. A senhora tem que falar dessa maneira".

OP - Isso a senhora com apenas oito anos?

Fátima - Com oito anos já sabia o que eu queria, eu sempre fui uma menina determinada e independente porque eu já cuidava dos meus irmãos. Quando a minha mãe bebia, ela ficava muito bêbada, e aí não tinha quem fizesse comida para os meninos e eu tinha que resolver a situação. E eu sou a mais velha.

Uns dias depois, a mãe amanheceu super legal, e mandei chamar a tia. Ela chegou e fez exatamente o que eu tinha pedido. Foi quando a mãe disse: “Pode levar, não tem problema não. Eu conheço você. Sei que a minha cunhada trabalha com você há muitos anos, vocês são umas pessoas muito boas”.

Então, a dona Zilmar disse: “Eu vou levar ela e todos os meses vem 'X' para você”. O que na época era muito pouquinho, não dava nem para dar de comer aos meninos, mas tudo bem, ajudava. Foi quando eu vim pra cá, para a casa dessa mulher e, quando eu cheguei, ela estava montando uma fábrica de bolo na Aldeota.

OP - Aquele foi o seu primeiro contato com a confeitaria, então?

Fátima - Sim. Nessa época, não tinha concorrência de bolo. Eram poucas pessoas. Eu não queria ir embora, então arrumava o que fazer. Acho que com dez anos eu já ia para a fábrica e me acostumava com o ambiente. Toda hora eu corria na produção e perguntava como fazia os biscoitos, os bolos… Eu ia todo dia e queria fazer tudo o que as meninas faziam, eu queria estar lá dentro.

OP - Então a senhora aprendeu a fazer bolos ao ver as outras cozinheiras produzindo?

Fátima - Sim. Eu, com 13 anos, já tomei conta da produção dela [risos].

OP - E sua mãe durante esses anos?

Fátima - Eu nunca mais tinha ido lá [em Viçosa]. Então, naquela época, eu era adolescente, e não tinha telefone, eram fichas e eu mandava o dinheiro que ela usava para colocar as fichas e me ligava uma, duas vezes por mês.

O dinheiro continuava sendo mandado para eles, a senhora que cuidava de mim juntava umas roupas e enviava para os meus irmãos. Mas uns cinco anos depois, eu voltei lá e encontrei a mesma situação de quando fui embora.

OP - Como você reagiu?

Fátima - Eu perguntei pra ela: "Mãe, por que a senhora bebe tanto? O que acontece com a senhora? Eu só vou lhe dizer uma coisa, a próxima vez que eu vier aqui, se eu deparar com mesma situação, eu vou tomar os seus filhos todos e a senhora vai ficar sem filho, mas você tem outra opção, você pode deixar o meu pai, ir embora lá para o meu avô, que eu faço uma casa para a senhora lá. E lá a senhora vai ter a sua vida. Eu lhe garanto que de fome você não passa”.

'Nunca cheguei a ir ao colégio, então aprendi muita coisa com ela. E aprendi também com a minha coragem'(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA 'Nunca cheguei a ir ao colégio, então aprendi muita coisa com ela. E aprendi também com a minha coragem'

Eu disse que tinha vergonha e que era o motivo de eu ter saído de lá. Ela olhou para a minha cara e disse: “Pois ontem foi a última vez que tu me viu bêbada. A partir de hoje, eu nem fumo mais nem bebo. Ainda que eu passe fome, mas nunca mais. Foi a última vez”. Aí foi isso… Ela foi viver a vida dela e eu voltei para Fortaleza para trabalhar.

OP - Então, quando você retornou para Fortaleza, foi um novo momento na sua vida que te ajudou a construir quem você é hoje?

Fátima - Sim. A senhora com quem eu morava aqui me ensinou a escrever meu nome. Nas horas vagas, quando ia dormir, ela me ensinava. Nunca cheguei a ir ao colégio, então aprendi muita coisa com ela. E aprendi também com a minha coragem.

Eu botei na cabeça que ia trabalhar e aprender tudo para no futuro ter alguma coisa. Adolescente já dominava a produção, então, quando faltava algum funcionário eu corria pra fazer o que era necessário e aprender a fazer minhas coisas.

OP - Foi uma infância difícil, mas a senhora teve garra para mudar essa realidade…

Fátima - Tive porque eu queria que isso acontecesse.

OP - E como era a vida em Fortaleza?

Fátima - Tinha dias que trabalhava direto, mas eu não queria ir embora. Com 20 anos, eu não queria ir. Eu era uma santa [risos]. Não saía de casa com medo dela me mandar pra fora. Não fazia nada para desagradar. Eu vim para uma família maravilhosa, muito boa, e ela me ensinou muita coisa boa.

Sempre deixou bem claro que era a casa e a empresa dela. Me ensinou algo que levo até hoje: eu tinha que ser quem sou, não era para querer ser outra pessoa, ser humilde. Quando passava gente pedindo esmola, eu ia lá entregar, então, ela me ensinou a não deixar estragar nada, de compartilhar o que sobrava com os pobres. Eu sou grata a ela e a mim também, pela minha coragem de sair de Viçosa e ir atrás de mudar minha realidade.

'Tudo que fiz foi com sacrifício. Foi no horário em que eu poderia estar dormindo, mas eu ia aproveitar o tempo para aprender.'(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA 'Tudo que fiz foi com sacrifício. Foi no horário em que eu poderia estar dormindo, mas eu ia aproveitar o tempo para aprender.'

OP - E seus irmãos? Algum veio para cá?

Fátima - Eu trouxe duas irmãs e elas foram trabalhar em casas de família de clientes meus. Uma trabalhou por 15 anos e a outra, acho que 12. Eram tudo "de menor", mas trabalhadeiras.

Enfim, a gente mandava dinheiro pra minha mãe e para o meu pai. Ele ficou muito doente um tempo depois e o botamos para morar com a minha irmã, ajudamos e tal. E hoje elas vivem bem, conquistaram muitas coisas boas, estudaram.

OP - Elas não chegaram a trabalhar com você aqui na empresa?

Fátima - Não. Elas passaram muitos anos comigo. Quando eu me casei, elas eram pequenas e moraram comigo por um tempo. Mas depois se mudaram para São Paulo para trabalhar lá.

OP - A senhora aprendeu a fazer os bolos, biscoitos quando estava na empresa da Zenaide. Você chegou a fazer algum curso, uma formação específica em confeitaria depois?

Fátima - Foi tudo vendo os outros fazerem. Não tem curso melhor do que você conviver num ambiente que faz. E você tem que querer e ter coragem para fazer. Porque quando eu trabalhava, às vezes eu passava mais de 11 horas lá.

Tinha um rapaz que fazia biscoitos pela noite, porque a produção dos biscoitos teria que ser em um horário que não fosse quente, então, ele ia à noite com a mulher e eu ia com eles fazer biscoito. Eu fazia questão de preparar a massa, de aprender a fazer esses biscoitos.

Então, tudo que fiz foi com sacrifício, não foi no meu horário com a Zenaide. Foi no horário em que eu poderia estar dormindo, mas eu ia aproveitar o tempo para aprender. Tinha um pessoal que virava 24 horas e eu passava o dia com eles.

Porque, na verdade, eu nunca fiz comida de casa, de ser doméstica ou do lar, assim, eu nunca fiz. Sempre fui mais para essa área, o meu interesse era lá dentro, não era fora. Se você pegar os meus clientes mais velhos, eles sempre estão aqui, eles continuam comigo.

Essa semana chegou o seu Chagas e ele contou para os meus filhos que ele chegava lá [na fábrica da Zenaide] e eu era bem pequenininha, loirinha das pernas grossas, bem gordinha e ia atender ele [risos]. Corria para um canto, corria para o outro. Então, tem muita história, sabe?

OP - Então, foi vivendo o dia a dia dentro da empresa, botando a mão na massa mesmo, que a senhora aprendeu o essencial para ter a sua própria produção em atividade?

Fátima - A gente tem que aprender dessa maneira. Você não tem noção de como era a qualidade lá, era tudo muito bom. Daí eu comecei a avaliar a qualidade com ela e passou um tempo que eu era que via a qualidade já sozinha.

'Tudo que tu pudesse imaginar, eu ganhei com ajuda das pessoas'(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA 'Tudo que tu pudesse imaginar, eu ganhei com ajuda das pessoas'

Ela já confiava em mim. Mas eu aprendi muita coisa sobre fazer com qualidade. E hoje sou eu que tenho que ter a minha própria qualidade, porque o que aprendi lá foi isso.

Não que ela dissesse o que eu tinha que fazer, mas eu via a maneira como ela trabalhava. Nessa época não existia concorrência, então na confeitaria tinha fila porque as coisas dela eram boas. Comidas muito boas e de muita qualidade.

OP - E quando você decidiu que era hora de seguir seu próprio caminho e trabalhar para si mesma?

Fátima - Chegou um momento que desafiei ela, eu tinha 22 anos, acho, e nunca tinha dito “não” para ela. Eu arranjei um namorado, que foi o pai dos meus filhos, e ela mandou eu escolher entre ele ou ficar lá. E eu não gosto que me coloquem para escolher. Ninguém tem que me dar opção de nada, porque eu, com oito anos, já sabia o que eu queria.

Aí eu desafiei: “Não vou dizer que eu vou ficar com ele, mas eu vou sair da sua casa agora. Você está me dando a opção, então, eu vou escolher a opção de sair daqui”. Foi isso, eu não tinha muita coisa porque lá eu não tinha nem salário, né… Aliás, o salário era para a minha mãe.

Enfim, saí de lá, fui para a casa de uma amiga, eu disse: “Gente, eu preciso fazer um bolo para mim. Não tenho nada, não tenho dinheiro”. Eu tinha contato com vários clientes do outro lugar, aí comecei a ligar para eles e avisar que estava montando meu próprio negócio, só que eu precisava de ajuda porque não tinha nada para começar, nem dinheiro.

Aí, uma cliente minha, a Maria, que até faleceu, falou: “Não, vou conversar com todo mundo que te conhece”. Ela falou com essas pessoas e eu consegui alugar meu primeiro espaço e ganhei tudo o que precisava: geladeira, forma, instrumentos, mercadoria. Tudo que tu pudesse imaginar, eu ganhei com ajuda das pessoas.

OP - Esse apoio dos clientes que você tinha conquistado antes foi essencial?

Fátima - Bastante. Eu ganhei mercadoria que deu para trabalhar um mês sem tirar R$ 1 meu. E depois comecei a comprar minhas coisas. Na vila em que morei também, lá tinha um telefone público, então, os clientes ligavam para ele e quem atendia eram os vizinhos.

Eu saía na vila, andava um pouquinho, entregava o bolo, elas tinham como entrar. Fazia muito biscoito, muito bolo. Passei ainda quatro anos sozinha nesse telefone público. Resolvi me juntar com o pai dos meus filhos e estava ficando pequeno, então, a gente foi para uma outra vila em frente. E ele trabalhava fora e também com os bolos.

Mas eu vou ser sincera contigo, eu tive muita ajuda. Tem a Gláucia, que era da Caixa Econômica, que encomendava os biscoitos comigo e distribuía para o pessoal do trabalho. Então, ela foi muito importante.

Tudo que consegui foi com o meu trabalho e a ajuda de muita gente boa na minha vida. Que eu sou muito grata a elas, algumas já faleceram, mas as outras estão vivas. A gente não consegue nada sozinha.

'Eu acho que pelas coisas boas que fiz pela minha mãe e meu pai, acredito que Deus me compensou'(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA 'Eu acho que pelas coisas boas que fiz pela minha mãe e meu pai, acredito que Deus me compensou'

OP - E quando a senhora veio para esta casa? Já abrindo a fábrica da Fátima Bolos?

Fátima - Eu tô há 23 anos nesta casa. E assim, ganhando, pagando e por aí vai. Em dez anos, eu consegui um patrimônio muito bom. Eu acho que pelas coisas boas que fiz pela minha mãe e meu pai, acredito que Deus me compensou. Enfim, só tenho a agradecer a Deus.

OP - Como foram os anos iniciais aqui?

Fátima - Era o pessoal conhecido ainda, mas era tanto cliente que trabalhava quase 24 horas. Porque na época era só eu e meu ex-marido. A gente não fazia esses bolos enfeitados que tem hoje [risos]. A gente fazia bolo mais simples e tinha a cobertura. Então era chocolate, limão... O maracujá sempre foi o “bam bam bam”, o carro chefe daqui.

Os bolos mais simples a gente dominava, eu e ele, só éramos nós dois. E os clientes já eram de casa, sabe, eles entravam na cozinha e raspavam a panela, que eles diziam ser a melhor parte.

Eu sinto muita falta disso, porque hoje eles não podem mais. Cansou de chegar um cliente que ainda hoje diz que tem saudade de ver eu cobrindo bolo, ir lá dentro, raspar as panelas.

OP - A senhora ainda faz os bolos, então?

Fátima - Faço sim. Tem aqueles clientes mais antigos que agora não podem mais entrar na cozinha, que reclamam por não poder acompanhar o processo ou que eu não posso atendê-los diretamente.

Eu atendo ainda, mas só que eu ainda faço muita coisa lá dentro. Tem coisa que só é feita comigo. Porém, tem alguns clientes que entram, bota uma touca, e vão lá pegar a panela, uma colher, raspa a panela e come [risos].

'Tem muita gente que não me conhece. Quem me conhece só é o público antigo, ou os que o contato passou de vó para filho, de filho para neto e de neto para bisneto'(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA 'Tem muita gente que não me conhece. Quem me conhece só é o público antigo, ou os que o contato passou de vó para filho, de filho para neto e de neto para bisneto'

OP - Então, o contato com os novos clientes acabou mudando…

Fátima - Tem muita gente que não me conhece. Quem me conhece só é o público antigo, ou os que o contato passou de vó para filho, de filho para neto e de neto para bisneto.

Ontem mesmo, teve um que veio porque a avó faleceu e ele não sabia quem eu era. Ele chegou e falou: “Dona Fátima, eu trouxe o convite da missa de sétimo dia da minha avó”. E eu reconheci quem era a avó dele.

Daí ele disse: “A senhora me desculpe, eu vim aqui porque eu não consegui falar com a senhora, mas você era tão importante para minha vó e para minha mãe, tão importante”.

OP - São várias famílias, várias pessoas. A senhora se sente parte da história deles de certa forma?

Fátima - Eu procuro fazer de tudo para dar o melhor para eles. E procuro ajudar, conversar... Não sei, é um carinho muito grande. Teve o Dr. Pinho, lá de Viçosa, ele morreu agora com 106 anos. Ele foi muito importante na minha vida, porque quando ele vinha de Viçosa para cá, sempre passava por aqui.

Então, ele passou esse carinho que tinha por mim para os filhos, para os netos, os bisnetos. Ele era muito humilde e foi uma pessoa que me ajudou e também ajudou toda a minha família de Viçosa.

Então, assim, quando ele faleceu, eu fui uma das primeiras pessoas a ser comunicada pelos filhos dele. E o carinho que eles têm comigo, tu não tem noção, dinheiro no mundo paga, bolo nenhum paga, nada paga. Para mim, isso é receita de sucesso. Eu sou feliz por conta de tudo isso.

'Todas essas memórias (com clientes) me marcaram muito porque foram coisas que fiz e não que deixei de fazer'(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA 'Todas essas memórias (com clientes) me marcaram muito porque foram coisas que fiz e não que deixei de fazer'

OP - Teve algum cliente especial, uma memória que a senhora guarda até hoje?

Fátima - Todos, no geral, são marcantes. Mas teve um cliente que sempre comprou um bolo aqui no seu último aniversário, que eu não sabia que seria o último, ele me convidou para o aniversário dele. E aquilo me surpreendeu porque eu nunca fui em aniversário de cliente, por não ter tempo, mas dessa vez, eu fui.

Cheguei lá antes dos parabéns e foi um momento bom. Eu falo desse bolo, desse cliente, porque ele comprava comigo desde a época da Zenaide, então, era alguém que confiava no meu trabalho desde o início.

Tem outra história de outro cliente que fez questão de eu estar presente no aniversário dele, era de 87 anos. Tinha muita gente, cantamos parabéns, eu parti o bolo e servi o bolo para todo mundo. Isso também me marcou porque eu consegui ir e participar de todos os momentos do aniversário, entende? E era algo que todos os anos ele me chamava, mas eu não encontrava tempo suficiente para ir.

Aí passou um mês e eu fiquei sem notícias dele, por ser um cliente que tinha uma certa frequência com os pedidos, esse sumiço me deixou preocupada, sabe. Então liguei para o filho dele, que me contou que o pai tinha falecido devido a um infarto e tinha acabado de enterrar…

Teve também uma cliente, que a filha dela me ligou às 22 horas pedindo um bolo de laranja. Eu sempre fiz bolo de laranja para essa cliente, mas pelo horário era complicado preparar tudo. Só que a filha dela disse que a mãe estava doente e pedia uma única coisa: o meu bolo de laranja.

Eu fiz o bolo, pedi para levarem na casa dela, acho que demorou uns 40 minutos no total. Essa cliente também era parte do grupo que me ajudou lá no início, que esteve comigo durante todos esses anos. No dia seguinte, ela faleceu.

Então eu pensei: “E se eu tivesse recusado fazer esse bolo?”, eu ia estar com remorso até hoje, com aquela dor no coração e isso é algo que eu não quero sentir. E fazer esse bolo, mesmo tarde da noite, não custou nada, o que eram 40 minutos, entende?

Todas essas memórias me marcaram muito porque foram coisas que fiz e não que deixei de fazer. Não tenho remorso de nada sobre o que deixei de fazer, meu coração é tranquilo. Se eu tivesse deixado de fazer, eu hoje estaria triste.

OP - E a dona Zenaide, você voltou a ter contato com ela em algum momento após ter firmado sua própria empresa?

Fátima - Depois que saí de lá, ainda jovem, ela não conseguiu manter a loja, tanto que os clientes que conheci enquanto estava com ela vieram pra mim. Passaram os anos, ela adoeceu e, por não ter tido filho, acabou ficando em uma casa para idosos.

'Todos (os meus filhos) são meninos incríveis, eu não sei de onde eu tirei tantos filhos bons na minha vida'(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA 'Todos (os meus filhos) são meninos incríveis, eu não sei de onde eu tirei tantos filhos bons na minha vida'

Então, eu ia algumas vezes lá nessa casa passar um tempo com ela, quando eu não podia, o meu filho mais velho ia e a acompanhava, e ela tinha um carinho muito grande por ele.

Depois que saí da casa dela, mantivemos o contato, a amizade continuou normalmente, não é porque eu saí e ela não ter me ajudado nos primeiros meses que eu ia guardar mágoa. Eu era grata, ela me acolheu e eu a agradeço por tudo isso.

Nesses anos, ela ainda ficava com os meus filhos, todos tiveram contato com ela, passava dias na casa dela e os tratava muito bem.

OP - Aqui na empresa, os seus filhos também ajudam?

Fátima - Tem um na produção, que é o Mário Filho. O Matheus me ajuda em tudo e também atende no financeiro. E o Victor trabalha fora, mas me ajuda demais. E tem o Lucas que também está por aqui. Todos são meninos incríveis, eu não sei de onde eu tirei tantos filhos bons na minha vida. Eu pedi a Deus para me mandar um filho homem.

OP - Como é trabalhar em família?

Fátima - Sabe como é o pessoal mais jovem, né? Meus filhos e os funcionários, eles querem trabalhar de forma diferente, mas o meu jeito é mais antigo. Eu continuo no jeito antigo, só que eu não dou mais conta, né?

OP - E de que forma a tecnologia ajudou na produção e trabalho na Fátima Bolos?

Fátima - Olha, mudou porque agora eu estou trabalhando mais. Eu amo o que faço, só não viro a noite fazendo bolo por não ter mais idade.

Mas assim, o Mário fica na produção e no atendimento aos clientes no WhatsApp. Já com as vendas no iFood, lá facilita muito as nossas vendas e também para os motoqueiros, eles são todos meus inquilinos. São pessoas que estão aqui e são nossos amigos, a gente se ajuda.

'A pessoa que está acostumada a trabalhar não pode parar'(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA 'A pessoa que está acostumada a trabalhar não pode parar'

OP - A senhora já pensou em aposentadoria?

Fátima - Sim. Mas não vou deixar de fazer bolo. A pessoa que está acostumada a trabalhar não pode parar. Eu vou diminuir o ritmo, sim, futuramente vai ser do meu filho, mas eu vou continuar por aqui ajudando.

O Mário vai assumir tudo por ser o que está com a mão na massa, por viver lá dentro. E a produção é o que mais importa em tudo aqui, porque é de lá que sai o que vai parar nas mãos do cliente.

 

 

OP - A senhora come bolo todo dia?

Fátima - Todo dia vão dois bolos lá para a mesa de casa, um para o café da manhã e outro para o fim da tarde.

OP - E qual o seu bolo favorito?

Fátima - O de maracujá [risos].

OP - Sobre a produção no Fátima Bolos, como vocês lidam com o desperdício?

Fátima - Olha, todo bolo tem uma data de vencimento. E o desperdício é muito pouco. Um bolo que não é vendido após dois dias de ter sido feito, eu levo para a geladeira e, aqueles bolos que sobraram, eu dou para os garis que passam com o carro de lixo aqui na rua.

Eles já sabem que podem esperar na segunda-feira e sexta-feira. No total, são seis bolos que “sobram”, ou seja, não foram vendidos, mas a gente consegue distribuir para que outras pessoas possam comer com ele ainda bom e de graça.

'Eu não tive convivência com a minha mãe, nunca dei um abraço nela, porque realmente sempre travou aquilo'(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA 'Eu não tive convivência com a minha mãe, nunca dei um abraço nela, porque realmente sempre travou aquilo'

OP - Ao olhar para a sua trajetória, como você avalia esses anos?

Fátima - Tudo valeu a pena na minha vida. Está valendo. Deu tudo certo. Eu sempre me conformei com pouco, eu não quero muito, só queria seguir e engrandecer o meu trabalho, criar meus filhos e pagar minhas dívidas. O pouco é suficiente e para mim tá bom.

OP - E a religiosidade sempre esteve presente na senhora, né?

Fátima - Eu sempre tive muito Deus, eu não tenho uma igreja ou religião, mas meu Deus me ajuda em tudo. Eu acredito muito em promessa e acho que a fé é o que manda. E se você não tem fé, nada acontece.

Eu fiz uma promessa, de dar cestas básicas para os mais carentes, e é algo divino na minha vida. Meu filho também fez uma promessa por acreditar na minha. Então é isso, em todos os anos eu dou cesta básica para as pessoas pobres, e a gente está sempre ajudando da forma que pode.

OP - A senhora ainda visita Viçosa do Ceará?

Fátima - Agora eu vou mais, porque tenho mais tempo livre. Deixo os meninos cuidando de tudo e vou. Vou a cada três meses, às vezes, fico mais de uma semana por lá… É um lugar maravilhoso, quando você puder, vá lá visitar que você vai gostar.

OP - Depois de todos esses anos em Fortaleza, com empresa própria e família formada. Como ficou a relação com a sua mãe?

Fátima - Eu não tive convivência com a minha mãe, nunca dei um abraço nela, porque realmente sempre travou aquilo, mas ela sempre vinha para a minha casa, depois que eu me casei ela vinha três vezes no ano, passava um mês comigo, me ajudava em tudo. E eu continuei ajudando ela, como fazia antigamente.

A minha mãe começou com o Alzheimer com 55 anos e ela veio morar comigo. Ela ficou em cima de uma cama durante três anos, nesse tempo eu banquei tudo, hospital, cuidados, remédios, vinha uma equipe médica a cada semana verificar ela, mas também tive muita ajuda de outras pessoas.

Uma delas foi a Dra. Silvana, que eu conheci quando ela ainda era criança, que vinha comprar com a mãe e eu sempre dava biscoitos. Depois de alguns anos, ela já formada, médica, acho que isso faz uns sete anos, ela veio aqui e esbarrou com a minha mãe. Daí contei a situação e ela pediu para eu levar a minha mãe lá no Hospital da Polícia, que era onde ela trabalhava.

A minha irmã se mudou pra cá e ajudava nos cuidados dela também, mas a Dra. Silvana estava sempre a acompanhando durante esses tempos. Quando minha mãe faleceu, a Dra. que fez todos os procedimentos, ajudou a gente bastante com o que precisava.

'Tudo o que a gente faz de bom, sem intenção por trás, Deus nos dá em dobro lá na frente'(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA 'Tudo o que a gente faz de bom, sem intenção por trás, Deus nos dá em dobro lá na frente'

Sabe, aquela criança que conquistei com um biscoito há muitos anos cresceu, virou uma mulher, uma médica, ajudou a minha mãe e me ajudou. Hoje, a Dra. Silvana cuida da minha família, de mim, dos meus filhos e também dos meus amigos. Então, o que acontece é que tudo o que a gente faz de bom, sem intenção por trás, Deus nos dá em dobro lá na frente.

OP - Essa ajuda deve ter sido importante para lidar com os anos em que sua mãe estava com o Alzheimer…

Fátima - Bastante, eu disse tudo isso porque não dava pra falar sobre como ficou a relação com a minha mãe sem comentar sobre essa ajuda especial. Mas voltando, eu nunca tinha conseguido dar um abraço na minha mãe.

Antes dela falecer, eu subi para o quarto dela, logo no começo do dia, eu li a Bíblia para ela e a gente conversou sobre tudo. Meu filho mais novo apareceu no quarto e pediu pra eu dar um abraço na avó dele. Eu acho que ele foi usado por Deus para que eu tivesse essa oportunidade de dar um abraço na minha mãe a tempo.

 

Eu consegui dar aquele abraço, eu senti o coração dela. Antes eu nunca havia dado um abraço nela...

 

Eu tinha vergonha de abraçar ela, entende? Na hora, eu pedi desculpas, falei que não tinha raiva dela e agradeci por tudo o que ela tinha feito por mim.

Eu falei para ela: “Obrigada por ter me dado para aquela mulher, porque foi ali que pude ajudar a nossa família, o meu pai, a senhora, pude conhecer a Dra. Silvana, que está lhe ajudando em todos esses anos. A senhora pode ir, vá em paz, eu nunca guardei rancor, eu sempre te agradeci”.

Eu consegui dar aquele abraço, eu senti o coração dela. Antes eu nunca havia dado um abraço nela, minhas irmãs eram mais do carinho, davam beijos e abraços, mas comigo era ajudar com o que dava, dinheiro, roupa, comida… Não tinha como eu dar algo se nunca recebi antes.

'Na hora, ao abraçar a minha mãe e falar o que tinha para falar, foi quase uma hora de conversa, e eram as lágrimas dela caindo e esse alívio em meu coração'(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA 'Na hora, ao abraçar a minha mãe e falar o que tinha para falar, foi quase uma hora de conversa, e eram as lágrimas dela caindo e esse alívio em meu coração'

Com a Zenaide, eu aprendi o que era certo e o que era errado, eu aprendi a ser boa. Mas eu não tive carinho. Acho que minha mãe não tinha coragem de demonstrar esse carinho por achar que, se eu não procurava, era por não querer. Além do pessoal do interior, sempre foi muito reservado.

OP - A senhora sentiu um alívio?

Fátima - Eu sou uma outra pessoa. Eu sempre fui uma pessoa muito boa com os outros, mas eu não mudava de ideia, era firme nos meus pensamentos. Então, você dá o que você tem.

Na hora, ao abraçar a minha mãe e falar o que tinha para falar, foi quase uma hora de conversa, e eram as lágrimas dela caindo e esse alívio em meu coração. Quando eu terminei de falar, ela faleceu. Essa última conversa com a minha mãe mudou o meu coração, em questão de carinho, de dar e demonstrar afeto.

 

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