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Gamers usam sua influência para criar senso de comunidade e impacto social
Reportagem Seriada

Gamers usam sua influência para criar senso de comunidade e impacto social

Nos bastidores dos esportes eletrônicos, figuras como Baiano e AMD mostram como o mundo dos jogos pode ir além da competição. Com trajetórias marcadas pela determinação, ambos utilizam sua visibilidade para promover inclusão e transformação social. Ele com a criação de um torneio que une entretenimento e solidariedade em prol de causas; enquanto ela ajuda a quebrar barreiras no cenário competitivo feminino, sendo inspiração para novas jogadoras
Episódio 2

Gamers usam sua influência para criar senso de comunidade e impacto social

Nos bastidores dos esportes eletrônicos, figuras como Baiano e AMD mostram como o mundo dos jogos pode ir além da competição. Com trajetórias marcadas pela determinação, ambos utilizam sua visibilidade para promover inclusão e transformação social. Ele com a criação de um torneio que une entretenimento e solidariedade em prol de causas; enquanto ela ajuda a quebrar barreiras no cenário competitivo feminino, sendo inspiração para novas jogadoras
Episódio 2
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O universo dos games não é apenas um palco de batalhas online, mas também um poderoso aliado de causas filantrópicas no Brasil. De streamers que mobilizam multidões em prol da solidariedade a jogadoras que abrem caminhos para uma nova geração, o cenário gamer se apresenta como um grande mosaico de histórias que transformam paixão em impacto social.

O streamer Gustavo "Baiano" Gomes (@baianolol), que já teve parte de sua história contada por aqui, é um exemplo vivo dessa revolução silenciosa. Mas ele não está sozinho.

Ao lado de figuras como Amanda "AMD" Castro (@amd22k), ex-jogadora profissional e ícone do Counter Strike: Global Offensive, o cenário gamer revela que no universo digital as vitórias vão muito além dos jogos, dos campeonatos e dos rankings.


Gustavo "Baiano"

Ex-pro-player e streamer de League of Legends

Amanda "AMD"

Ex-pro-player de CS:GO e apresentadora de torneios de games


No segundo episódio da série de reportagens Games e solidariedade, O POVO+ apresenta iniciativas que estão mudando a face do cenário competitivo brasileiro e transformando o frenesi dos games em uma força coletiva.

Entre partidas, batalhas e vitórias, esses gamers despontam como agentes de solidariedade e inclusão, ressignificando o conceito de sucesso e provando que o impacto ultrapassa as telas.

 

 

Gustavo Baiano, um nordestino que transformou o LoL em uma comunidade solidária

De Bom Jesus da Lapa, na Bahia, Gustavo Gomes cresceu distante dos videogames. Sua diversão estava nas ruas, nas brincadeiras com os amigos. Os jogos eletrônicos faziam parte de sua vida apenas ocasionalmente, em visitas à casa de parentes ou nas clássicas locadoras de bairro.

Ainda assim, não demoraria para que seu nome fosse elevado ao topo do mundo dos games, sob o apelido de “Baiano”, acompanhado pela missão de trazer novas perspectivas para o cenário brasileiro.

Na adolescência, Baiano jogava diferentes títulos por diversão, mas o sonho de se tornar um jogador profissional já começava a surgir. Aos 16 anos, ingressou no curso de Engenharia Ambiental na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Quando não estava estudando sobre recursos naturais e meio ambiente, porém, ele atendia aos convites de amigos para participar de campeonatos de games.

Gustavo Baiano é um dos streamers de games mais influentes do Brasil e do mundo, sendo responsável por realizar transmissões de League of Legends (LoL) que alcançam audiências históricas(Foto: Ricardo Godoy / CBolão)
Foto: Ricardo Godoy / CBolão Gustavo Baiano é um dos streamers de games mais influentes do Brasil e do mundo, sendo responsável por realizar transmissões de League of Legends (LoL) que alcançam audiências históricas

“Aos 17 anos, comecei a perceber que os jogos estavam me ajudando a crescer em vários aspectos. Além disso, senti que a competição, o trabalho em equipe e jogar com outras pessoas estavam se tornando assuntos muito discutidos dentro e fora da faculdade. Foi então que decidi correr atrás de um sonho”, relembra.

Até então, os torneios dos quais participava ofereciam prêmios modestos de R$ 50 — quando havia premiação. Mesmo assim, Baiano decidiu abandonar a faculdade para se dedicar integralmente ao universo dos games, escolhendo o League of Legends (LoL), jogo de batalha multiplayer online "Quando vários jogadores se conectam ao mesmo tempo para jogar em equipe, sem a necessidade de estarem no mesmo espaço físico" (Multiplayer Online Battle Arena, ou Moba), desenvolvido pela Riot Games.

Baiano se preparando para um torneio The Brasil Mega Arena (BRMA) realizado em São Paulo em 2015(Foto: LoL Fandom / Arquivo pessoal)
Foto: LoL Fandom / Arquivo pessoal Baiano se preparando para um torneio The Brasil Mega Arena (BRMA) realizado em São Paulo em 2015

O game foi o grande responsável por levá-lo a São Paulo, movido pela vontade de competir e por uma sensação de que “em alguns anos aquilo poderia dar bom”.

“Assinei meus primeiros contratos ganhando R$ 300 por mês, que era basicamente para comer e tentar viver em São Paulo. Mas, obviamente, não dava para se sustentar ou construir algo com isso. Era mais acreditar no futuro mesmo”, comenta.

Naquele início dos anos 2010, o cenário competitivo do LoL no Brasil ainda era embrionário, com premiações baixas e pouca estrutura.

No entanto, o progresso não tardou a chegar. O jogo ganhou popularidade, atraiu patrocinadores, organizou campeonatos e cativou uma das comunidades mais engajadas dos esportes eletrônicos.

Baiano aproveitou esse contexto de crescimento e evoluiu junto com a cena. Passou por equipes como INTZ, Vivo Keyd e CNB, até assinar, em 2017, com a Big Gods Jackals, dos Estados Unidos. Com esse contrato, Baiano entrou para a história como o primeiro brasileiro a atuar em uma organização estrangeira de LoL.

Gustavo Baiano foi o primeiro brasileiro a atuar em solo estrangeiro jogando League of Legends após assinar contrato com a equipe americana Big Gods Jackals em 2017(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Gustavo Baiano foi o primeiro brasileiro a atuar em solo estrangeiro jogando League of Legends após assinar contrato com a equipe americana Big Gods Jackals em 2017

Ganhando em dólar, Baiano encontrou nos EUA a estrutura profissional dos sonhos, que o ajudaria ainda mais a se tornar uma referência para toda uma geração de lolzeiros no Brasil. Sua passagem pela equipe americana também abriu portas para que outros brasileiros começassem a imaginar um futuro com menos fronteiras.

De volta ao Brasil em 2019, ele ainda atuou como jogador profissional até se aposentar no fim do ano – poucos meses antes, portanto, do mundo passar a sentir e viver os impactos devastadores da pandemia de Covid-19.

Naquele momento com os grandes campeonatos e eventos presenciais suspensos — muitos deles até então capazes de lotar estádios de futebol —, Baiano anunciou sua aposentadoria para focar na criação de conteúdo por meio de lives na Twitch.

Observando que as transmissões oficiais de campeonatos reuniam milhares de pessoas, mas rapidamente perdiam o engajamento quando as partidas terminavam, ele apostou em algo que sentia falta: um sentimento de unidade entre os inúmeros fãs de LoL no Brasil.

Em 2015, a final do 2º Split do CBLOL  foi realizada no estádio do Palmeiras, o Allianz Parque, em São Paulo(Foto: Riot Games)
Foto: Riot Games Em 2015, a final do 2º Split do CBLOL foi realizada no estádio do Palmeiras, o Allianz Parque, em São Paulo

Além das lives que já realizava, Baiano abraçou como missão o fortalecimento da comunidade. Ele também introduziu a ideia de que era preciso ir além das telas, causando um impacto positivo que alcançasse tanto quem estava online quanto aqueles que sequer sabiam da existência do jogo.

Foi assim que nasceu o CBolão, um campeonato beneficente de LoL que combina entretenimento, engajamento e solidariedade de maneira única no universo dos esportes eletrônicos.

O torneio, inclusive, nasceu em 2020, durante uma das fases mais críticas da pandemia de Covid-19, quando o Brasil enfrentava escassez de insumos básicos, como máscaras, álcool em gel e oxigênio nos hospitais.

Após mobilizar e convencer amigos que jogavam profissionalmente, Baiano iniciou uma empreitada que uniu jogadores e espectadores a um compromisso solidário: arrecadar recursos para trabalhadores da saúde, serviços essenciais e outras pessoas impactadas pela crise sanitária.

Com um pico de mais de 100 mil espectadores simultâneos, a primeira edição do CBolão foi um sucesso, atingindo mais de R$ 125 mil destinados ao combate ao vírus.

Gustavo Baiano se diverte durante o CBolão presencial(Foto: Cbolão)
Foto: Cbolão Gustavo Baiano se diverte durante o CBolão presencial

Desde então, o CBolão tornou-se um marco no calendário competitivo do League of Legends brasileiro, reunindo atletas nacionais e estrangeiros.

Na edição de 2024, as doações foram destinadas ao Hospital de Amor, em São Paulo, que atua na prevenção e tratamento do câncer. Com uma meta inicial de R$ 100 mil, o evento superou as expectativas, arrecadando mais de R$ 113 mil para a causa.

Ao longo de quatro anos, o CBolão já captou mais de R$ 1 milhão para causas filantrópicas, o que, para Baiano, é a confirmação de um trabalho que soube envolver a comunidade de forma genuína.

Segundo ele, o equilíbrio entre entretenimento de qualidade, senso de comunidade, propósito social e transparência são o segredo do sucesso do evento.

“Quando a gente transmite o CBolão, o jogo vira um coadjuvante, porque o protagonismo é das pessoas, de como vamos ajudar a galera e nos fortalecer como comunidade. O evento reúne médicos, engenheiros, jogadores de futebol. Tem também muita gente do Nordeste, que pega dois ou três dias de ônibus só para participar. Isso prova que uma ideia bem trabalhada, mesmo sem muita estrutura no início, mas com muita fé, pode mudar tudo e transformar vidas”, reflete Baiano.

 

 

A atleta pioneira de CS:GO que luta por respeito e visibilidade para o cenário feminino

Nas experiências compartilhadas por influenciadores de jogos eletrônicos, percebe-se um potencial revolucionário ao transformar o teclado e o mouse em ferramentas de mudança social.

Para Amanda "AMD" Castro, ex-jogadora profissional e ícone do Counter-Strike: Global Offensive (CS:GO), as emoções vividas no ambiente virtual podem se tornar sementes capazes de cultivar igualdade e inclusão.

Apaixonada pelas intensas disputas do famoso FPS "Sigla para First Person Shooter, jogos de tiro em primeira pessoa" da Valve Corporation, AMD construiu uma trajetória marcada por coragem e determinação. Nascida em Belford Roxo, no Rio de Janeiro, ela percebeu um vazio significativo no cenário competitivo do game, que, embora já contasse com brasileiros bicampeões mundiais, carecia de torneios direcionados ao público feminino no Brasil. O ano era 2017.

Fundadora do Lotus, projeto que busca desenvolver e incentivar mulheres no cenário de games, AMD é uma das principais vozes femininas nos esportes eletrônicos do Brasilt(Foto: Riot Games / Arquivo pessoal)
Foto: Riot Games / Arquivo pessoal Fundadora do Lotus, projeto que busca desenvolver e incentivar mulheres no cenário de games, AMD é uma das principais vozes femininas nos esportes eletrônicos do Brasilt

Diferente dos esportes tradicionais, os esportes eletrônicos não possuem uma divisão entre homens e mulheres em suas disputas. Sem embates em que o físico possa oferecer vantagens ou desvantagens a determinado gênero, os esports permitem que homens e mulheres joguem juntos, tanto em partidas casuais quanto em competições.

Historicamente, no entanto, diversos fatores contribuíram para que o ambiente dos jogos se mantivesse, de maneira velada (ou muitas vezes escancarada), como predominantemente masculino.

Papéis de gênero, assédio e o machismo enraizado na sociedade refletem no universo virtual, ajudando a excluir ou afastar as mulheres dos videogames. Esses registros vêm de décadas passadas e continuam existindo nos dias atuais.

Portanto, embora não haja formalmente uma separação entre categorias masculina e feminina (hoje chamadas de "inclusivas"), AMD ressalta que as mulheres enfrentam barreiras e discriminações que dificultam sua inserção e progressão no cenário competitivo.

Segundo ela, a cultura de incentivo aos jogos e à competitividade desde a infância é mais direcionada aos meninos, favorecendo o desenvolvimento de habilidades e a busca pela profissionalização.

Para ilustrar a situação, AMD menciona sua própria experiência: enquanto seus primos eram estimulados a jogar videogames, ela era orientada a realizar tarefas domésticas.

AMD é caster de diferentes games FPS competitivos da atualidade, como CS2 e Valorant(Foto: Riot Games / Arquivo pessoal)
Foto: Riot Games / Arquivo pessoal AMD é caster de diferentes games FPS competitivos da atualidade, como CS2 e Valorant

Essa diferença cultural, aliada à constante presença de assédio, misoginia e violência direcionada às mulheres no ambiente virtual, criou um cenário hostil que desencoraja muitas jogadoras a seguir no meio. AMD cita pesquisas que apontam que 49% das mulheres sofrem algum tipo de insulto ou assédio durante partidas online, número que salta para 75% entre jogadoras de 18 a 24 anos.

Diante dessa realidade, ainda em 2017, AMD e outras players, que costumavam se reunir em grupos no Facebook para jogar online, decidiram levar suas partidas para uma lan house.

Elas propuseram à organização do Power Lounge Cup, uma tradicional competição de CS:GO realizada em São Paulo, a inclusão de uma categoria voltada exclusivamente para mulheres. A organização aceitou, mas sem garantir premiação para as participantes.


Confira publicação realizada no Facebook sobre a campanha

 

Sem patrocínio, as atletas decidiram lançar uma campanha para arrecadar recursos que seriam destinados à premiação. Durante uma semana, diversas jogadoras se revezaram em lives de 24 horas, em uma iniciativa que ficou conhecida como “24x7”.

O esforço coletivo foi recompensado: em poucos dias, os valores arrecadados superaram os oferecidos na categoria masculina do torneio.

Mais de R$ 10 mil foram levantados para a premiação, e o evento despertou tanto interesse que parte dos espectadores precisou acompanhar as partidas em um telão instalado no lado de fora da lan house. Para muitos, essa competição é considerada o primeiro campeonato brasileiro feminino presencial de CS:GO da história.


Melhores momentos da final do Power Lounge CUP 2017 - Feminina

 

Em um duelo melhor de três mapas (MD3), a equipe da Alientech venceu a Team One, de AMD, por 2 a 1. Apesar do vice-campeonato, AMD ganhou ainda mais motivação para seguir na luta por títulos, respeito e reconhecimento nacional e internacional no cenário feminino.

Como prova de seu impacto, em 2020, ela foi eternizada no jogo ao receber uma skin em sua homenagem, tornando-se, até hoje, a única mulher do mundo inserida dentro do jogo de tiro.

Skin em homenagem a AMD no jogo Counter-Strike: Global Offensive(Foto: 2Minds Studio / Divulgação)
Foto: 2Minds Studio / Divulgação Skin em homenagem a AMD no jogo Counter-Strike: Global Offensive

Embora orgulhosa de suas conquistas, AMD afirma que o objetivo é que seu pioneirismo deixe de ser necessário no futuro. Ela sonha com o dia em que a presença feminina nos esports seja tão natural que não haja mais a necessidade de destacar "primeiras vezes".

Sua trajetória, ela espera, na verdade deve servir como inspiração para que outras mulheres ocupem seus espaços e escrevam suas próprias histórias de sucesso.

Para contribuir com essa mudança, AMD fundou a Lotus, uma iniciativa online que visa criar “um espaço seguro e acolhedor para que jogadoras possam se conectar, compartilhar experiências e aprender umas com as outras”. O projeto busca não apenas transformar a indústria gamer, mas também encorajar mais mulheres a seguirem carreira no setor, rompendo barreiras e construindo um futuro mais igualitário.

Deste modo, AMD ressalta que só vai realmente comemorar suas conquistas quando puder dizer que foi “a última” a precisar lutar por questões básicas como respeito e igualdade de oportunidades para mulheres nos games.

“A minha maior meta de vida é inspirar cada vez mais mulheres. E não por ego, não para, sei lá, me engrandecer, mas porque eu quero que mais mulheres estejam em destaque. Quero que, um dia, a gente não precise falar que eu fui a primeira mulher a ter uma skin, a primeira nisso, a primeira naquilo. Ter sido a primeira em algumas coisas não é o que me enche os olhos”, afirma.

“Eu vou comemorar no dia em que eu for a última a precisar falar sobre essas coisas, tá ligado? Se eu estou inspirando mulheres, para mim significa que todo o hate (ódio) que às vezes recebo por causa de uma comunidade ou outra, quando falo de pautas como respeito às minas, valeu a pena.”

 

 

>> Quer ler mais sobre games? Acesse nossos colunistas Miguel Pontes e Wanderson Trindade

 

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Games e solidariedade

Série de reportagens mostra como o universo game incorpora o espírito da solidariedade e atua na mobilização de causas sociais