O secretário da Administração Penitenciária do Ceará (SAP), Mauro Albuquerque, tomou como um “desafio” o convite para trabalhar com os presídios cearenses, em 2019.
Havia passado brevemente pelo Estado três anos antes, em uma ação pontual. Resolveu voltar de vez, frustrando um pouco os planos da recém-eleita governadora, Fátima Bezerra (PT), do Rio Grande do Norte, que também o convidara para a gestão.
Tomou a decisão pela complexidade do trabalho. “Baixar a bola” do crime no Ceará influenciaria a ação dele em todo o Nordeste, segundo sua percepção.
Seis anos depois, Mauro continua no cargo e, ainda que menos intenso do que quando chegou, reconhece a persistência do peso das facções no território estadual. Elas seguem aqui, em meio a altos investimentos. O que falta para o fim?
A Segurança Pública sempre foi uma das principais pautas eleitorais e de Governo. Atualmente, não é diferente. Das 114 últimas
Desde 2019, muita coisa mudou nas pastas como a SAP e a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS). Políticas cada vez mais especializadas de combate ao crime foram lançadas. O Governo divulga com frequência os altos investimentos.
O primeiro quadrimestre de 2025 movimentou R$ 45.421.000,00 referentes ao cumprimento das Metas Integradas de Segurança Pública (Misp), instituídas em fevereiro. Elas miram a redução dos índices estratégicos de criminalidade e defesa social, por meio de colaboração entre diferentes entes de segurança.
Em seis meses, foram 3.544 armas de fogo apreendidas, uma média de 19,5 por dia - aumento de 8,7% em relação ao mesmo período do ano anterior. Houve ainda a reestruturação de todas as forças estaduais, com um impacto de R$ 40.266.240,76, de olho em “descentralizar e modernizar os serviços de segurança pública”.
É um seguimento de curso. O investimento em Segurança Pública quase triplicou em dez anos no Ceará. No primeiro ano de Camilo Santana (PT), quando as facções ainda ganhavam força, o orçamento anual foi de R$ 2.111.211.858,55. Já 2024 fechou com R$ 5.778.216.578,26.
A porcentagem no orçamento geral também aumentou. De 9% em 2015, chegou a atingir 14,14% no último ano do Governo Camilo. Em 2024, resultou em 12,26%.
Investimentos em Segurança pelo Ceará
Desse montante, em dez anos, o Governo do Ceará investiu R$ 511.510.294,30 em estratégias, ações e equipamentos de inteligência. “O valor foi revertido em modernização de aparelhos de tecnologia, produção de análises, frotas de veículos, entre outros”, informa a SSPDS.
Somente no Governo atual, foram R$ 225.349.818,68 em manutenção e funcionamento de equipamentos tecnológicos, além da produção de relatórios.
Outro destaque é o Centro Integrado de Segurança Pública (Cisp), considerado o “maior investimento da história na Segurança Pública do Ceará”. Inaugurado em novembro de 2023, o complexo reúne todos os núcleos de comando e já recebeu R$ 196 milhões do Tesouro Estadual.
A gestão atribuiu resultados positivos aos investimentos, com base em dados compilados da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp) da SSPDS.
As mortes violentas apresentaram redução de 16,6% em todo o Estado, no primeiro semestre de 2025 - 1.429 Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs), contra 1.714 no mesmo período de 2024.
As ocorrências de roubo caíram 23,9%. Foram registrados 14.658 casos, entre janeiro e junho de 2025 - 4.592 a menos que os 19.250 do mesmo recorte de tempo do ano anterior.
Os números, no entanto, contrastam com cenários de terror que percorrem as ruas de Fortaleza e do Interior. Dados de 2024 - recorde no orçamento absoluto em segurança - revelaram destaque estadual no ranking de cidades mais violentas do Brasil: das dez, três são cearenses, incluindo a primeira do rankink - Maranguape.
Já em julho de 2025, doze pessoas foram mortas somente no conjunto habitacional Alto da Paz. Moradores do local no bairro Vicente Pinzón, em Fortaleza, preferem não relatar o pesadelo diário. No Mondubim, outro bairro da Capital, criminosos fizeram pichações com ameaças à população.
Cidades como Morada Nova, têm bairros inteiros esvaziados pela ação de facções criminosas, que ainda exerceriam influência em outros municípios do Vale do Jaguaribe e na Serra da Ibiapaba.
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Guerra Sem Fim: Facções e Política
Opositores do Governo criticam o destino dos aportes, mas afirmam que jamais a situação pode ser considerada sem “jeito”.
Para Capitão Wagner (União), ex-deputado federal, é preciso mais “investimentos em tecnologia e inteligência policial”. Ele ainda foi contra a escolha do Governo por um gestor “de fora”, se referindo ao titular da SSPDS-CE, o fluminense Roberto Sá. “Todos os estados que estão diminuindo a violência têm gestores de casa. Trazer gente de outro estado que não conhece nossa realidade não funciona”, comenta.
Sargento Reginauro (União), deputado estadual e aliado de Wagner, também elencou a ostensividade do Ceará desequilibrada com a inteligência. Por sua vez, esta última precisaria considerar a conjuntura internacional do crime e sua relação com política e empresariado.
“E não tem como jogar essa responsabilidade nas costas das forças de segurança sem dar a devida retaguarda para os nossos policiais”, completou o deputado. Segundo ele, agentes como o Poder Judiciário e o Ministério Público precisam ser incluídos de forma mais efetiva.
Por fim, ele citou questões legais. Reginauro defende uma revisão do Código de Processo Penal pelo Congresso Nacional. “Para se adequar a esses novos tempos que nós estamos vivendo. Um crime muito mais estruturado do que no passado, sob risco de que daqui a pouco nós estarmos vivendo de fato o que eu tenho falado já há algum tempo, que é a situação do Ceará e o Brasil como um todo virá um narco-estado”, diz ele.
Ambos citaram como positivo o caso de Goiás, estado governado por Ronaldo Caiado, do mesmo partido deles, onde diminuíram os percentuais de crimes desde que o gestor assumiu. No entanto, por lá, circulam contestações sobre a brutalidade da força policial: a quarta mais letal do Brasil.
Repressão e inteligência foram aspectos citados pelos especialistas ouvidos. São importantes, porém não bastam. As facções já estão enraizadas “dentro de setores das classes médias e altas”, segundo o doutorando em Sociologia e membro do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), Artur Pires.
O pesquisador é autor de artigos sobre o enfretamento a facções em Fortaleza e estudou ações do Governo ao longo dos anos.
Para acabar com o crime organizado de vez, seria “preciso repensar a nossa forma de fazer política e a nossa forma de pensar o mundo sócio econômico. Portanto, eu digo, é muito profundo. Já há um enredamento muito visceral do mundo faccional em um complexo de interdependência. Eu não vejo uma solução a curto e médio prazo, sabe? Não vejo mesmo”, diz ele, citando a si mesmo como um “pessimista”.
Na visão de Artur, “o que a gente pode pensar, sempre vão ser políticas paliativas” e, assim, o combate às facções estaria direcionado aos fatores que as geraram.
Primeiro, é preciso olhar para a origem. Facções expandiram-se, dentre outros aspectos, pelo abandono de populações periféricas e por carências no sistema penitenciário. Para Mauro Albuquerque, citado no início da reportagem, um dos desafios iniciais na SAP foi cultural, de firmar o sistema prisional como parte da segurança.
“Questão de informação, combate e isolamento das lideranças dentro do sistema prisional. As prisões são um local onde tudo você ganha dinheiro, desde um lugar para dormir melhorzinho, um cigarro e uma Coca-Cola”, diz. E completa: “Se não segurarmos o crime dentro do sistema prisional, a coisa evolui muito na rua”.
O secretário defende não apenas o reforço de integração do sistema prisional no combate, como de demais políticas sociais. O mesmo é defendido pelos sociólogos.
Estes citam outro aspecto de atenção: as reações governamentais, consideradas muitas vezes demoradas e com foco somente em repressão.
A demora é exemplificada por situações como a de 2015, na qual o Governo minimizou a atuação de facções no Estado, em meio à queda de 37% no número de homicídios por mortes violentas no Ceará. Nas universidades e nas ruas, os índices já eram atribuídos ao fenômeno da “pacificação” de duas facções criminosas.
Para Ricardo Moura, jornalista de Segurança e colunista do O POVO+, a negação fez com que o Governo perdesse tempo. “Nisso muitas vidas são perdidas e muitas áreas passam a ter predomínio do crime”, explica.
Quando veio, o foco na repressão seria mais um dos problemas no enfrentamento aos grupos organizados. Artur Pires considera um dos maiores erros do Estado o olhar da Segurança como pura “zona de guerra”. “Nas propagandas a estética sempre remete a essa ideia de combate, de guerra, de que o estado está preparado para enfrentar as facções”, diz.
A insistência nesta "guerra" é histórica no Ceará, desde os planos de Segurança pós-redemocratização e estava presente durante o Governo de Cid Gomes, época na qual as facções ganhavam força pelas beiradas.
Enquanto a conjuntura do crime mudava, as políticas do governador teriam apresentado algumas falhas, segundo a professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Jânia Aquino.
Ao citar o programa “Ronda do Quarteirão”, ela considerou que, desde já, havia a ideia de polícia de combate, em vez da proximidade. “Ao invés dos recursos gastos em propaganda, para mostrar os carros e o uniforme, poderia ter havido campanhas de explicar para a população o que é polícia de proximidade, polícia comunitária, essa questão da importância da confiança”, explicou Jânia, membro do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da UFC.
Apesar disso, ela considera “importante o investimento no policiamento comunitário” nesse período.
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A postura de estado “de guerra” fortaleceu-se no Governo Camilo Santana (PT) especialmente após janeiro de 2017, quando o então secretário de Segurança, Delci Teixeira, deixou a SSPDS. Em seu lugar, assumiu André Costa, delegado com atuação no combate ao tráfico de drogas, crimes patrimoniais e, justamente, crime organizado.
Pouco depois da posse, a “pacificação” chegou ao fim. O número de homicídios saltou. O crime corria e o Governo regia. “O Estado está mostrando quem é que manda, e vai continuar firme nessas ações. E não vai ter acordo, ‘conversinha”, foi uma das falas de Costa, na época.
O outro foco no combate é o olhar para o hoje. Mais que grupos entranhados nas mais variadas áreas do poder e da vida cotidiana, as facções são uma ideia. Objetos de desejo, para além de necessidade, de adolescentes e adultos. São o presente e, para muitos, o horizonte.
“Guerrear” não é suficiente pois, a cada criminoso preso, novos são recrutados. Este seria o principal desafio: a integração da Segurança Pública a demais políticas. Dar alternativas de habitação, opções culturais e de esportes, de modo que haja pertencimento em espaços diversos.
Para Mauro Albuquerque, a solução circula a seguinte lógica: “Como é que eu vou tirar essas pessoas do crime? Dando o que nunca tiveram”. Um dos focos de integração, defende, deve estar no sistema penitenciário, embrião das facções.
O secretário cita a criação de espaços de sala de aula e a retirada de aparelhos televisores para fomentar a leitura. “O problema deles é que na época em que deveriam estar indo na escola, ainda meninos, já tinham contato com arma de fogo”, diz.
E completa: “A partir do momento que eu começo a ampliar o conhecimento dessa pessoa, podem pensar: ‘Cara, eu posso mais do que isso’. E aí você começa a mudar a cabeça dessa pessoa”.
Sobre as acusações de maus-tratos nos presídios, denunciadas por órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Defensoria Pública e o Ministério Público do Ceará, o secretário afirmou: "A gente faz toda a apuração, sou bem transparente nisso. Eu não sou contra o uso da força e sou contra o uso excessivo da força. Se a pessoa usar a força desnecessariamente, ela tem que responder pelo ato dela".
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Para Artur Pires, é preciso aumentar ainda o diálogo com pesquisadores, como foi feito com César Barreira, ouvido pelo Estado para planejamentos da Segurança. “Temos um dos melhores grupos de estudos do Brasil”, disse, se referindo ao Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da UFC, fonte de pesquisa para este especial do O POVO+.
Já Jânia Aquino enxerga avanços neste sentido no governo de Camilo Santana. “De perceber que a segurança pública não é uma questão política. Ela não vai ter resultados a longo prazo, se não investir em equipamentos, em educação”, diz.
“Não podemos cometer o erro de pensar a segurança pública como sendo uma pasta que a longo prazo não tem resultado. É preciso pensar políticas associadas aos jovens, à educação, formações profissionais e também, oportunidades para adolescentes e jovens”, completa ela.
O POVO+ entrou em contato com a SSPDS e recebeu um posicionamento do secretário Roberto Sá sobre as perspectivas do Governo atual no combate às facções criminosas. Roberto é delegado da Polícia Federal e foi convocado para a pasta da gestão Elmano em meados de 2024. Assumiu após a saída de Samuel Elânio, em meio à alta de homicídios no Estado.
O secretário primeiro salientou medidas do Governo como quatro concursos em andamento, a convocação de 3.053 novos profissionais de segurança e o aumento do efetivo de Inteligência de 135 para 791 profissionais.
Também considerou fundamentais ações de tecnologia, como a rede integrada de radiocomunicação em segurança pública do Brasil e de videomonitoramento, com mais de 4.100 câmeras à disposição para dar suporte às equipes em campo.
Roberto Sá comentou da integração, citada pelos sociólogos. Primeiro, entre as pastas de Segurança do Estado, em diálogo com as prefeituras e com o Governo Federal. Citou, em seguida, o Comitê Estratégico de Segurança Integrada do Ceará (Coesi), com a reunião dos três poderes: executivo, legislativo e judiciário, para o combate a grupos criminosos.
Considerou a importância de projetos de “disputa simbólica em defesa da vida” do Estado, como o Comando de Prevenção e Apoio às Comunidades (Copac) da Polícia Militar do Ceará (PMCE), que promove aulas de música, artes marciais, inglês e outras atividades.
Na prevenção, destacou o Programa Integrado de Prevenção e Redução da Violência (PReVio), voltado para políticas públicas em regiões selecionadas com base em indicadores e diagnósticos sociais de vulnerabilidade.
Para ele, o Estado enfrenta "de forma eficaz os grupos criminosos". Mas, há inegáveis desafios. Roberto Sá considera necessário um aprimoramento entre base de dados estaduais. “Com atualização em tempo real nos permita acompanhar caso a caso para dialogar e tomar decisões que beneficiem a sociedade”, diz.
Por fim, voltou ao sistema prisional. Defende a atualização na Lei de Execução Penal. “A ressocialização é, sem dúvidas, muito importante e digna. Mas é inconcebível que uma pessoa que comete crimes graves como homicídios ou latrocínios, seja solto em pouco tempo”, informou.
“As nossas polícias Militar e Civil prendem, investigam, mas pouco tempo depois, o suspeito está na rua, fazendo a mesma coisa. Precisamos olhar a periculosidade desse suspeito e o impacto que essa liberdade pode trazer para a sociedade”, completou.
Roberto Sá, assim como Capitão Wagner e Sargento Reginauro declararam mais acima, defende que o problema jamais pode ser considerado "sem jeito". Nisso, os três concordam. Mauro Albuquerque e demais representantes do Governo como o próprio Elmano de Freitas (PT) ainda enxergam que hoje há "estrutura bem mais tranquila de trabalhar", estas palavras do secretário.
Na verdade, ele já enxerga vitórias, o que reforçaria a possibilidade de um eventual fim. "Porque se você fosse em 2019, estava lá nos muros: "Nós não vamos parar os ataques enquanto esse secretário não sair". Eu não saí e os ataques pararam. Já vencemos nisso e agora vamos continuar sem parar, com o investimento crescendo sempre mais e avançando cada vez mais".
"Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras; (..) Que elas não favoreçam qualquer classe em especial; protejam igualmente cada membro da sociedade"
- Cesare Beccaria, jurista italiano do iluminismo
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Série de reportagens ancorada no lançamento do documentário Guerra Sem Fim - Facções e Política mostra não só o olhar do Audiovisual do O POVO+ sobre esse fenômeno que vem avançando no Brasil, como traz abordagens sobre o avanço das facções no Ceará