Ela não era para ser nada na vida, mas conseguiu. Essa é uma frase, não exatamente com essas palavras, mas que a própria entrevistada tem como uma de suas descrições. Nascida no fim da década de 1950, a agrônoma Mariangela Hungria relata que sentiu o peso do machismo.
Foi seguir carreira em uma área dominada por homens, engravidou por acidente, teve uma filha especial. Os requisitos, para quem lê no século XXI, encaixam-se com muitas realidades. Mas, à época, poderiam ser motivo para deixá-la de escanteio.
O que não aconteceu devido ao seu talento e dedicação, e também por duas principais ajudas em seu caminho. Por toda a vida, teve na avó Edina o incentivo a ser o que quisesse, e da qual ela guarda, além de boas memórias, dois livros de presente: “A vida dos microbiologistas” e outro sobre a história da cientista polonesa
Teve também a sua mentora científica, Johanna Döbereiner, que chefiava a Embrapa Biologia e foi uma guia na carreira.
Hoje, Mariangela leva como luta o crescimento do uso de fertilizantes biológicos e tem no extenso currículo o Prêmio Mundial da Alimentação de 2025 (World Food Prize - WFP), conhecido como o "Nobel" da Agricultura.
Sua pesquisa de mais de 40 anos é dedicada ao desenvolvimento de tecnologias em microbiologia do solo. A principal ênfase é na substituição total ou parcial de fertilizantes químicos por microrganismos.
Neste ano, seu papel feminino na pesquisa também foi reforçado com o Prêmio Mulheres e Ciência, do CNPq, em parceria com o Ministério das Mulheres, British Council e Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe.
Ainda fez parte do comitê coordenador do projeto N2Africa, financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates para projetos de fixação biológica do nitrogênio na África, é membro do Conselho do Comitê de Nutrição Responsável da International Fertilizer Association, e tem parceira em projetos com quase todos os países da América do Sul e Caribe, além de países da Europa, Austrália, EUA e Canadá.
Foi também classificada entre os 100 mil cientistas mais influentes no mundo pela Universidade de Stanford em 2020 e ocupou a primeira posição brasileira em Fitotecnia e Agronomia pelo Research.com em 2022, confirmada em 2025.
Mariangela Hungria é cientista, é professora, é reconhecida, mas, sobretudo, é mulher que quer apoiar outras mulheres. Juntou o dinheiro dos prêmios que ganhou para fundar o Instituto H3, para reconhecer meninas em suas áreas de atuação, e também para garantir o futuro das filhas.
O POVO - Eu queria revisitar essa sua menina que disse que tinha uma avó mágica, que deu o livro “A vida dos microbiologistas” a você. Como a leva hoje na sua pesquisa, na sua vida, na sua carreira?
Mariangela Hungria - Eu tive duas pessoas, duas mulheres, que foram muito importantes na minha vida. E, às vezes, eu fico pensando o que teria acontecido se não tivesse essas mulheres? Eu acho que, certamente, eu não teria tomado o rumo que eu tomei se não fossem essas mulheres.
Quando eu era criança, o mundo era realmente muito voltado para meninos. Mesmo a minha mãe… Meus pais tinham curso superior.
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Mas hoje, quando eu analiso, vejo que os dois tinham uma mentalidade muito machista. Por exemplo, na casa, com os meus pais, era assim: meu irmão falava que queria ser aviador e daí minha mãe já virava para mim e falava: ‘Então você pode ser aeromoça’. Meu irmão falava que ia ser médico: ‘Então você pode ser enfermeira’. E eu ficava assim, mas por que eu não posso ser médica?
Por que eu não posso ser aviadora? Eu nunca era vista como uma protagonista. Era sempre o apoio à pessoa central e importante que era meu irmão homem. Minha avó (Edina) já era super o contrário. Ela nunca falou disso. Ela sempre era a que dizia que eu ia conseguir, que eu ia poder ser e tal.
Então a minha avó me deu a confiança… Por exemplo, esse livro da vida dos microbiologistas eram todos homens. E eu falei: “Eu vou ser?”. E a minha avó: ‘Não, você vai ser sim!’. E daí eu não sei se na época ela achou que eu não estava 100% segura, porque daí ela talvez tenha caído a ficha, que era o só homem… Eu só sei que logo depois ela me deu o livro da vida da Madame Marie Curie.
Eu guardo esses dois livros com muito carinho. E eu falei: “Ai, vó, e tem mulher cientista?” E ela: ‘Claro, tem mulher cientista, você pode ser’. Então foi uma pessoa assim, acho que também foi a única pessoa da minha infância, que foi muito importante, porque ela sempre me apoiou. E assim, sabe, quando, por exemplo, acontecia alguma coisa errada, ela não falava: ‘Ai, você errou’. Não! Ela sempre falava assim: ‘Vamos ver como nós vamos ultrapassar isso’.
Ela descobriu minha vocação, ela sempre achava tempo para ler comigo, me explicar as coisas. Então, acho que esse olhar das famílias, para olhar que vocação tem os filhos, para tomar o tempo, sabe, porque sei que hoje em dia parece que as pessoas são super ocupadas e não dão o tempo necessário, mas que, para mim, para a minha infância, foi fundamental.
O POVO - Você fala de uma segunda mulher, qual é o nome?
Mariangela - Essa segunda mulher foi o seguinte… Eu estava fazendo mestrado nessa área de (fertilizantes) biológicos, que não tinha praticamente ninguém no Brasil, e que não era bem-vista, porque a gente estava no apogeu do uso dos químicos na agricultura, e tinha essa mulher que era a mais poderosa do Brasil nessa área.
Era também conhecida internacionalmente. Vi que ela quem acabava decidindo quem que era empregado na área, no Brasil. Daí eu falei assim: “Acho que tem que lá fazer doutorado com essa mulher”.
Daí, então, eu deixei Piracicaba (Centro-Oeste de São Paulo), que eu estudava lá na Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, que é uma unidade da Universidade de São Paulo - USP), que fiz o mestrado lá também, graduação e mestrado, e fui lá para a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) fazer o doutorado, que ela me convidou fazendo a tese lá no centro, que era a Embrapa Agrobiologia, da qual ela era chefe.
E ela era a doutora Johanna Döbereiner, e era uma cientista brilhante. Ela foi minha mentora científica, porque ela realmente me ensinou até o básico… Como você deve ler um trabalho científico, como você deve criticar, como você deve saber se aquele artigo científico está bom ou não.
E inspiração de ensinar que você tem que correr atrás, que você tem que ir atrás dos recursos. Cientificamente ela foi minha grande mentora. E eu também tenho uma grande dívida com ela, porque, ainda mais agora, no ano passado, ela faria 100 anos…
Nós fizemos até um workshop, teve exposição no Congresso, homenageando a doutora Johanna, e eu penso que, além de ser uma cientista brilhante à frente do tempo, ela também era uma mulher à frente do tempo dela.
Sou extremamente grata, porque depois que eu estava há oito meses fazendo o doutorado, ela me chamou e falou que queria me contratar, e ela falou que só seria eu.
E eu fiquei assim: “Nossa! Doutora Johanna, tem tanta gente aí esperando”. Tinham homens, tinham mulheres… E eu estava lá só há oito meses, eu tinha duas filhas, uma delas com necessidade especial, e não tinha nenhum parente morando perto. Meu parente mais próximo estava a mais de 400 quilômetros de distância (em Itapetininga).
Ela não viu essas limitações em mim, ela viu meu amor, minha dedicação, e ela falou: ‘Não! É você! E não vai ser mais ninguém se não for você… É você quem eu quero!’. Eu tenho certeza que se tivesse um homem ali veria minhas limitações e não a minha vontade de aprender e minha dedicação, ou mesmo se fosse uma outra mulher, talvez…
E eu vejo como ela era à frente, isso foi quase 45 anos atrás… Como ela era uma mulher à frente no tempo, principalmente se a gente considerar que, mesmo hoje, a gente ainda vê as situações de pessoas que acham que você não vai ser capaz no trabalho, porque você tem filho, porque você é mulher, porque você tem um filho com problema de saúde, que vai ter que levar o filho do médico.
E o pior ainda é que quando a gente vê esse tipo de preconceito, o que realmente magoa muito, é quando a gente vê esse preconceito vindo de mulheres. Tem algumas mulheres que parece que chegam lá e daí abdicando de tudo, entendeu, e daí realmente elas parecem que ficam até mais intolerantes, às vezes, do que determinados homens.
O que eu posso fazer nesse sentido é realmente distribuir isso que a doutora Johanna me deu, que é essa oportunidade, sempre incentivando em bancas, em indicações de emprego, sempre falando e apontando que não é uma limitação, falando: “Também já acharam que era limitada, mas deu certo”.
O POVO - Você já se autoidentificou como um escândalo. Porque resolveu fazer agronomia na sua época, disse que enfrentou muito machismo, que engravidou por acidente… Citou as duas filhas, uma delas com necessidades especiais, e você já orientou mais de 200 pessoas, muitas mulheres. Neste contexto, quem são as pupilas que você conseguiu ajudar, e vê alguma sucessora?
Mariangela - Eu sempre falo assim… Vamos falar dos alunos em geral, mas acaba que eu não sei separar assim: essa que é cientista, essa que é a pessoa. Porque é uma coisa só. O que acontece na relação da gente com os alunos é que ela vai muito além de uma orientação.
Aqui a gente trabalha no nosso centro de pesquisa, é um
Eu acabo, às vezes, com os alunos, as alunas, tendo mais convivência, em número de horas, do que eu tenho, às vezes, com a minha própria família, então, a gente acaba criando uma relação, sabe, que vem, que conta os problemas. Tanto que eu sou madrinha de casamento de vários deles.
O que acontece? O que uma mãe sabe? A mãe sabe direitinho para que o filho tem vocação. Então eu não gosto da palavra sucessora, porque eu acho que cada pessoa é única e muito melhor do que aquela… Porque é evolução, eu acredito em evolução em todos os sentidos, não sou da Terra plana.
Tenho uma ex-aluna, que hoje é professora... Nossa! Ela é brilhante na parte de idealizar novas ideias, novos conceitos, tem uma capacidade incrível disso. Tenho uma outra, que também é professora, que é impressionante… Ela tem um carisma, sabe, ela consegue inspirar jovens.
A gente aqui, às vezes, tem dificuldade de manter um aluno com bolsa, ela bota as fotos lá que ela está com 15 alunos sem bolsa, no sábado, fazendo mutirão no laboratório. Por quê? Porque ela é inspiradora.
Daí eu tenho aquela lá que está super bem numa indústria privada, colocando, desenvolvendo novos produtos e... Então, sabe, você realmente olhar o potencial de cada aluno, tentar estimular aquilo… E é muito bom a gente ver os alunos todos espalhados por todo lugar, tem até aluna que é pesquisadora no Japão, aluna que está fazendo empreendedorismo na Itália, outro trabalhando na Espanha, e aqui no Brasil, do Norte ao Sul.
Não é um sucessor, é toda uma rede que vai permitir que seu trabalho continue. E muito importante é que a gente sempre consegue, nós temos um grupo de Whats (WhatsApp), onde os ex-alunos todos participam e vão trocando experiências e vão se ajudando, mostrando que isso... A ciência de hoje, a pesquisa de hoje, sabe, foi-se o tempo, que o século passado, que era tudo muito individual.
Hoje é tudo muito coletivo, a gente constrói as coisas juntos, a gente se ajuda e a gente cresce junto. Então, existem N sucessoras nos diferentes caminhos, que certamente vão estar muito melhor e mais capacitadas do que eu, para enfrentar os desafios do mundo moderno.
Eu fui capacitada para enfrentar a maioria dos desafios do meu tempo, mas os desafios de agora são outros e essas alunas, esses alunos, eu tenho certeza que estão bem preparados, principalmente pelos valores de ética, de colaboração, que a gente passou aqui, que não é só a parte científica. São outros valores que a gente tem que dar para eles.
O POVO - Você é o próprio fertilizante, então, Mariangela (risos)...
Mariangela - (risos) É biológico, tá, fertilizante biológico (risos)
O POVO - Vamos falar do prêmio, então. Você recebeu esse prêmio que é considerado o "Nobel" da Agricultura. Como isso já conseguiu impactar sua pesquisa, além do reconhecimento, já tem louros aí desse reconhecimento?
Mariangela - Está sendo uma grande oportunidade de divulgação. Porque desde que foi anunciado, eu só estou divulgando a pesquisa. Até estou atrasada nos relatórios. Hoje eu já acordei três horas da manhã para fazer um relatório, então não está atrasado. Mas olha a oportunidade que é para a gente realmente falar dos biológicos, que era zero. Ninguém acreditava e hoje está aqui…
De falar dos benefícios, de estimular agricultores a usarem cada vez mais. Essa bandeira de poder falar que lá fora, que o Brasil tem sustentabilidade. Sou muito honesta, transparente… Falo assim, nas entrevistas, principalmente lá fora: “O Brasil tem maus agricultores, mas a gente tem maus profissionais em todas as áreas.
Mas a grande maioria dos agricultores, dos super pequenos até os grandes, ela é preocupada com sustentabilidade, eles perguntam da saúde do solo, eles estão preocupados com as mudanças climáticas globais”.
Então, esses agricultores são os que a gente tem que mostrar para o mundo que a gente tem. Se nós não tivéssemos uma agricultura sustentável, nós não íamos ser os líderes no uso de biológicos na agricultura como nós somos, nós não íamos ser os líderes no uso do
Vejo também essa oportunidade de falar da sustentabilidade do nosso País, que deve ser elogiada e que temos muito que progredir, mas vamos progredir juntos. Não é que é tudo horrível, nós estamos bem, mas temos muito chão e podemos caminhar muito para ser cada vez melhores.
O POVO - Falando de atualidades, a gente vê os cenários de guerra, como do Irã e Israel... Muitos especialistas falam justamente do impacto no mercado de importação de fertilizantes, principalmente os nitrogenados. Como analisa isso e como a sua pesquisa pode colaborar?
Mariangela - Sempre que surgem coisas ruins, existem oportunidades. E nós, dos (fertilizantes) biológicos, a gente vinha crescendo, crescendo, crescendo a adoção, mas numa taxa que me deixava triste, porque eu achava que poderia ser melhor e maior.
O que aconteceu em 2020? A gente teve a pandemia, com a pandemia o transporte escancarou… Ainda ontem eu estava lendo um texto antigo, que eu escrevi, de uns oito anos atrás, e falava que o Brasil estava importando 65% dos fertilizantes que estava utilizando. E, aí, o que aconteceu? Agora ficou escancarado que não era mais 65%, a gente estava importando 85% de todos os fertilizantes.
E com a pandemia, então, lembra, os navios não estavam conseguindo sair dos portos, e então a gente não conseguia trazer o fertilizante para cá.
Para piorar a situação, a gente teve a guerra da Rússia com a Ucrânia, que são dois países dos quais a gente importa a maior parte dos fertilizantes. E daí a situação ficou feia, nos grupos de Whats estavam os agricultores desesperados.
Como que pode um País onde a agricultura é tão importante estar importando 85% dos fertilizantes? Então foi um estresse, os preços foram à altura, muita gente quebrou, mas, para nós, dos biológicos, foi uma grande oportunidade.
Por quê? O que acontece? O marketing dos químicos é mil vezes maior do que o marketing dos biológicos, e o marketing dos biológicos fica 100 mil vezes maior do que o marketing da pesquisa. Então a gente chegava lá com um resultado de 100, 200 experimentos, falava para o agricultor que pode usar o biológico…
“Está aqui os resultados em todos os estados do Brasil, eu garanto que você vai produzir, no mínimo, igual ao que você está produzindo com químico. Se tudo der certo, pode até produzir mais”.
Daí chegava lá o vendedor com uma foto, não tinha nem resultado, falava: ‘Não… Olha que tem que usar aqui o químico, que você vai produzir mais. Se você arriscar nessa coisa da biológica, você não vai produzir’.
Daí ele dava também um churrasquinho lá, um chopezinho lá, e a gente ia embora super frustrado com os nossos 100 experimentos com resultados científicos comprovados, e o cara lá com uma foto convencia o agricultor.
O que aconteceu? Não tinha fertilizante no mercado, ou estava absurdamente caro. E muitos dos agricultores que não tinham coragem de provar, eles provaram… E eles viram que o que a pesquisa estava falando era verdade.
Eles produziram, eles reduziram um monte de fertilizantes. Produziram até mais, na maioria das vezes… Conseguiram substituir fertilizante, controlar praga, tudo isso. Por causa disso, estourou o consumo de biológicos no mercado.
Então hoje a gente está numa taxa de crescimento… Toda semana ligam aqui novas fábricas, indústrias que querem produzir biológicos, novos produtos, novos estudos. Então essa guerra, agora, tomara que acabe de imediato, mas, se vier a ter mais consequências no transporte, no fornecimento de fertilizantes, eu acho que só vai fortalecer esse quadro nosso dos bioinsumos.
Os bioinsumos que a gente está produzindo aqui, a maioria com microorganismos nacionais. A gente não depende de nenhuma tecnologia do Exterior, não depende de moléculas vindas do Exterior, não tem que pagar royalties para o Exterior, nada disso. Fortaleceria o mercado de biológicos.
O POVO - Mariangela, até onde vocês conseguem chegar? Porque o Brasil é um país continental… E para onde você quer crescer?
Mariangela - Olha, hoje nós somos os líderes mundiais de biológicos, mas ainda é pouco. A gente pode crescer muito, porque a proporção é de mais ou menos, no máximo, 15% de biológicos para 85% dos químicos.
Então eu falo desses promotores de crescimento de plantas e de controle biológico de pragas e doenças. Mas nós temos muito, muito o que a gente possa crescer. Nós temos problemas? Nós temos problemas. Por exemplo, estamos fazendo agora um mapeamento do Nordeste e do Norte.
Está tudo muito concentrado no Sudeste, no Centro-Oeste. A gente tem um projeto agora com o Ministério da Agricultura e o CNPQ, que a gente está fazendo esse levantamento.
Tem uma grande demanda no Nordeste e não tem praticamente indústria. Tem uma demanda para várias culturas, que não têm produtos para essas culturas. E tem uma demanda para pequenos agricultores e as demandas são sempre para grandes indústrias, para grandes agricultores.
Hoje temos uma oferta de soluções de micro-organismos para tantas culturas. Você imagina… São quase para 100 culturas. Mas, comercialmente, você só encontra para três ou quatro, que são aquelas que as indústrias privadas…
Daí têm grande lucro, porque é grande volume. Nesse de tentando ver, porque a gente aqui trabalha, faz as parcerias e é frustrado com essa situação de pequenos agricultores não serem atendidos… Fizemos agora aqui uma tentativa diferente, a primeira na Embrapa.
Fizemos uma parceria com uma cooperativa, estamos ajudando um produto lançado com uma cooperativa, que a gente espera que possa atingir os pequenos e médios produtores, porque a cooperativa é para atender os cooperados.
Para nós da pesquisa é muito frustrante… É maravilhoso trabalhar com biológicos. Eu falo assim que é uma dádiva da vida você poder trabalhar com uma coisa que funciona para pequenos e para grandes.
Então a gente fica muito feliz com o princípio dos biológicos, só que daí você vai ao mercado e só encontra praticamente para grandes, você não encontra para pequenos.
O POVO - Qual a sua visão sobre os fertilizantes químicos? Há uma demonização ou não? Qual é o parâmetro para analisá-los e para usá-los, porque a gente sabe que essa questão do cultivo em larga escala necessita, mas qual é esse limite?
Mariangela - Não adianta a gente falar que vai fazer o tipo de cultivo que a gente faz no Brasil sem fertilizantes. Hoje, com o conhecimento que a gente tem, eu tenho quatro décadas de conhecimento em biológicos, nós não temos condições de fazer agricultura em larga escala só com biológicos. A agricultura familiar, uma agricultura orgânica, dá, mas a grande não.
Essa agricultura, que nós somos o terceiro maior produtor de grãos do mundo, essa, nós precisamos de fertilizante.
Mas a gente tem muito espaço, espaço para dobrar, triplicar, quadruplicar o uso de biológicos na agricultura. Nós temos várias estratégias, alternativas, produtos que a gente pode desenvolver para aumentar.
Quanto mais a gente aumenta a participação dos biológicos, vai ser melhor… De substituição dos químicos. Com o conhecimento que a gente tem hoje, eu não vejo, no curto prazo, uma possibilidade de substituição de 100%.
Mas também a velocidade de conhecimentos de novas técnicas que a gente vê hoje, eu nunca vi isso na minha vida. Você pode conseguir as coisas muito mais rápido do que conseguir do meu tempo.
Nós temos hoje ferramentas, por exemplo, antes para a gente fazer uma seleção de uma bactéria, nossa, era ali 10 anos e alguma coisa. Hoje você pode fazer uma edição gênica numa bactéria e melhorar ela. Você pode conseguir isso em meses de laboratório.
Talvez surjam quebras de paradigmas e que vão possibilitar uma agricultura totalmente biológica. Mas hoje não existe ainda essa possibilidade. Então, o que a gente tem que fazer é lutar para isso, para substituir o máximo possível.
Nós temos muito, muito chão pela frente para substituir o máximo possível. Nós estamos ainda substituindo muito pouco do potencial de coisas que já estão no mercado e são possíveis de serem aplicadas.
O POVO - Mas com esse crescimento do uso de biológicos três vezes maior que o de químicos, atualmente, você vê esse cenário acontecer em quanto tempo?
Mariangela - Está quase três vezes maior do que a taxa de crescimento de adoção dos químicos. Então está indo, tem de estar subindo, só que pode ser até mais rápido, porque hoje, com o conhecimento dos produtos que já estão no mercado, a gente consegue tranquilo uma substituição de 40% até 50% dos fertilizantes químicos que a gente usa.
E estamos só em 15%. Então a gente já tem hoje possibilidade de crescer muito, então a gente poderia acelerar essa taxa ainda mais do que ela está hoje.
O POVO - Desde 1970 foi descoberta uma jazida aqui no Ceará, de Santa Quitéria, e estão tentando essa exploração desde aquela época. Hoje ele está em processo de estudo do Ibama. A intenção é justamente explorar para produzir esses fertilizantes, os químicos. Você tem uma visão sobre esse projeto?
Mariangela - Hoje está muito bem elaborado o plano nacional de fertilizantes. Pela primeira vez, um plano nacional de fertilizantes fala sobre micro-organismos, sobre os biológicos. Então, o que acontece? A gente precisa, nós não podemos, de jeito nenhum, ter essa dependência absurda que a gente tem de fertilizantes químicos, porque nós precisamos desses fertilizantes. E 85% não.
Nós nunca também vamos ser 100%. A não ser que se descubra alguma coisa, mas os estudos que eu já vi falam que 100% a gente também não vai conseguir. Poxa! Mas vamos aí para uns 50%, uns 45%. Temos essas várias jazidas que não têm, não são excepcionais, elas são de menor riqueza, mas elas são importantes e precisam ser exploradas.
E várias delas, por exemplo, na parte de fósforo, vários microorganismos aumentam a possibilidade de ter esse fósforo pouco disponível para as plantas, de um modo mais disponível. Então, aumentar a disponibilidade deles. É muito importante e, portanto, a gente aumentar, diminuir a dependência externa e explorar melhor.
Agora, aquilo, explorar, explorar com consciência e todos os cuidados ambientais. É um absurdo falar que nós precisamos, nós vamos explorar, tendo impactos irreversíveis. Hoje eu acho que é intolerável, por quê? O conhecimento, no passado, nós tivemos vários problemas ambientais, mas a gente sempre tem que contextualizar o que aconteceu em cada época.
A gente não tinha conhecimento, muitas vezes, suficiente, para saber como fazer, mas hoje o nosso conhecimento sobre estratégias para mitigar impactos ambientais são muito, muito avançados.
A gente tem que investir… É barato? Não, é muito mais barato sem cuidar do meio ambiente, ir lá só explorar. Mas, a longo prazo, o barato sai caro, porque depois você vai ter que fazer remediação dessa área, e isso, sim, é caríssimo.
Esses estudos de liberação ambiental têm que de fato ser muito rigorosos, porque existe o conhecimento para fazer ótimos estudos, diminuir o impacto que possa ter no ambiente. O que vai ter algum impacto? A gente sabe que tem impacto.
Fazer agricultura impacta o ambiente, entende? O que a gente tem que fazer é melhorar muito a agricultura nas áreas em que está sendo feita para preservar 100% e não ter que derrubar uma árvore, entendeu?
Do mesmo jeito, vai ter um impacto no meio ambiente, exploração, deve ter, mas vamos tentar mitigar o mínimo possível e fazer uma compensação ambiental de alguma forma. Mas a gente não pode fechar os olhos e falar que não vamos precisar de fertilizante e vamos continuar importando e pronto. Não, a gente tem que ter... É coisa de soberania nacional não ter tanta dependência.
O POVO - Ouvi também você falar em terminar a carreira com recuperação de pastagens degradadas. Qual é a sua meta nesse sentido? Onde é que você quer chegar com essa pesquisa? E, mais importante, você vai conseguir parar?
Mariangela - Não sei… Todo ano eu falo assim: “Mais um ano, mais dois anos”. Todo ano eu falo isso aí. É que a gente tem medo de não saber a hora de parar, mas preciso achar um mecanismo de saber. E eu falo: “Olha, me avisa se eu estiver dando bola fora”.
Hoje eu ainda me sinto bem capacitada. E essa coisa como agrônoma mesmo, andando sempre, me deixou muito triste ver essas pastagens degradadas.
Mas eu nunca tinha tido oportunidade de realmente trabalhar com elas, porque eu trabalho num centro de produto, e aqui na Embrapa a gente tem os centros, cada centro tem sua missão e seus trabalhos têm que ser para completar aquela missão.
Meu centro é centro de soja, trabalhava com a soja, daí começou com o sistema soja, consegui incluir milho, trigo. E surgiu essa coisa fantástica, que é a integração lavoura-pecuária.
Isso abriu a oportunidade para trabalhar com pastagens, que sempre foi um sonho antigo meu. Por quê? Porque hoje a área ocupada com pastagens no Brasil é 2,1 vezes toda a área com todas as culturas. E 60% a 70% em estágio de degradação.
Recuperando isso, a gente pode, no mínimo, dobrar toda a área, com todas as culturas, sem ter que derrubar nenhuma árvore.
A gente está muito animado, porque os resultados que a gente tem dessas nossas estratégias biológicas estão muito bons.
Não só de aumento quantitativo, mas qualitativo da comida para o gado. Com isso a gente pode aumentar a lotação, o número de cabeças por hectare e liberando a área para a agricultura.
Essas áreas degradadas, realmente, algumas não têm nem mais vida no solo. Então recuperar essa vida no solo, você vai recuperando, vai aumentando a produtividade das pastagens.
Eu realmente queria terminar a minha carreira com isso, porque eu acho que seria uma contribuição ambiental para o nosso País fantástica.
O POVO - Você diz que sempre se incomodou com a fome. Qual foi a sua primeira vivência com ela? E qual o cenário hoje para mudar isso?
Mariangela - Criança, de novo, na minha cidade do Interior. Eu lembro que eu ficava muito triste quando eu via uma pessoa passando fome.
E, de novo, na casa da minha avó, vinha gente pedindo comida e minha avó tinha uns pratos, sabe? Um deles eu guardo até hoje, até era um prato de metal… Que minha avó também era toda cheia das microbiologias, depois ela esterilizava tudo, sabe?
A minha avó era uma microbiologista perfeita, viu? Quase me deixou louca que, quando a minha filha nasceu, ela que foi ficar comigo. Nossa! Ela fervia as fraldas, fervia os vidros…
Então, aquilo ali de vir uma pessoa pedindo um prato de comida, aquilo lá sempre me deixou profundamente tocada. E o interessante, o legal, assim, que eu acho, é você sempre está aprendendo.
Se algum dia você achar que não tem o que aprender, deve ser muito chato. Eu fui fazer agronomia, porque queria essa parte de produzir alimentos.
E aconteceu uma coisa muito interessante há três anos. Eu também sou membro da Academia Brasileira de Ciências e sou da diretoria, da última diretoria. Agora a gente renovou o mandato.
E automaticamente, como sou agrônoma, falaram: ‘Você vai pegar o grupo de trabalho de segurança alimentar’. Eu falei que ia pegar. E comecei a estudar muito, e estudei uns três, quatro meses. Procurei os maiores especialistas do Brasil em cada área.
E eu organizei esse
O que aprendi, o que foi muito legal, que eu falo assim, que eu organizei, quem mais aprendeu fui eu. É que realmente até eu tinha esse conceito de produzir alimentos. Não, produzir alimentos é 40% do problema de segurança alimentar.
Tanto que tem isso… A gente hoje está produzindo alimentos que daria para alimentar um bilhão de pessoas no mundo. E nós estamos aqui com milhões passando fome.
Na pandemia eram 33 milhões, o livro fala isso, hoje, diminuiu, porque os programas sociais voltaram, estão mais ativos. Mas, mesmo assim, são bem mais que 10 milhões de pessoas que acordam e não sabem se vai ter uma refeição por dia, o que é um absurdo.
Não é só o produzir. É o que começa com a política pública, com as ciências econômicas para definir qual deve ser o valor real de uma família para ter o mínimo de alimentação. Passa pela agricultura familiar, que põe 60% e 70% da comida na nossa mesa, e que não é devidamente valorizada no nosso País.
Passa pela extensão agropecuária. Passa pela educação da nova geração, que nós queremos ter… Uma geração que saiba comer, que tenha comida, mas comida nutricionalmente adequada e em quantidade adequada.
Porque hoje a gente tem problema da fome. Até o
Para o José Graziano falar isso, realmente é uma situação… Então, a gente conhecer o valor nutricional, a gente adequar dietas ao paladar de cada região, com os alimentos de cada região.
O POVO - O que tem a ver com a fome também... Porque você se alimentar mal, não ter acesso ao melhor alimento, comer com baixo valor nutritivo também é um fator para a obesidade…
Mariangela - Exatamente… E, no Nordeste, tantas frutas maravilhosas, que podem ser produzidas pelos agricultores locais. Colocar tipo uma maçã, entendeu? São coisas assim que você tem que respeitar…
Peixes, já vi gente importando, do Sul, Tilápia, sendo que tem peixes maravilhosos na Amazônia, entendeu? Então, a gente valorizar, fazer as cadeias regionais de alimentação.
Principalmente ver que não é um setor. Não é o governo que vai resolver o problema da segurança alimentar. São todos os setores, o público, o privado. E o terceiro setor, que é extremamente ativo, tem várias ONGs, fundamentais para tentar mitigar esse problema de segurança alimentar.
O POVO - Sobre a sua família, a sua filha segue seus passos? E quais são os seus pensamentos para quando você parar?
Mariangela - Eu brinco muito com minha filha mais velha… Se eu traumatizei muito. Por quê? Porque foi graduação, foi mestrado, foi doutorado, essas meninas iam comigo na casa de vegetação, coletavam plantas. E eu falo: “Será que traumatizei tanto você?”.
Não quis fazer Agronomia de jeito nenhum, é jornalista. Ela fala: ‘Não, mãe, não era. Era a vocação minha de ser jornalista mesmo. E, na verdade, é uma das coisas que eu acho, assim, que a vida me deu muito mais, está me dando muito mais do que eu poderia pensar.
Eu sempre fui assim, graças a Deus, eu consegui. Quem tem um filho especial pensa muito, é uma coisa assim, que até doentia, como a gente pensa: “O que vai ser quando eu morrer, eu quero deixar protegido, quero deixar com recursos”.
Então, eu já consegui me programar para deixar muito bem protegido, que acho que não vai faltar absolutamente nada na vida dela. E daí, então, eu conversei muito também com a minha filha mais velha e falo assim, olha, eu quero retribuir um pouco do que tudo está dando, do que a vida tem me dado.
Então, já ganhei um prêmio, uns anos atrás, da Lenovo, que eu já deixei separado, e agora esse prêmio ("Nobel" da Agricultura) também vai ser integralmente colocado no... Estou vendo ser um instituto, provavelmente um instituto que nós vamos fazer, que chama H3, já tem até a Logomarca, e que é para premiar mulheres, só mulheres, porque a vida é mais cruel conosco, ainda.
E acho que vai continuar sendo por um tempo. Então, nas três vertentes, que somos nós, as três Hungria (Mariangela, Carol e Marcela), por isso que são três Hs, que é da minha área, que é cientistas, na área de biológicos, na agricultura, ou microbiologia, da minha filha, que é na área de Comunicação, e da minha outra filha, que seria de mulheres fazendo ações, que contribuam para melhoria da qualidade de vida dos especiais.
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O POVO - Para quando pensa em tocar o projeto?
Mariangela - A logomarca já tem e o dinheiro já tem para começar. Agora o que preciso é ver juridicamente como eu vou fazer isso, porque a gente está bem animada de começar o mais depressa possível.
O POVO - Foi um prazer conversar com você e ouvir a sua história de superação e por ceder o seu tempo. Sabemos que o tempo é valioso…
Mariangela - Não, imagina! A gente podendo divulgar e inspirar meninas, falando: “Ela não era para dar nada na vida e deu”... Se puder inspirar…. Eu diria: “Meninas, podem ser o que quiserem, não confiem nos nãos que ouvirem, vão em frente”… Já vai ter valido a pena.
Nomeação
A nomeação de Mariangela na premiação no World Food Prize foi na noite de terça-feira, 13 de maio, na sede da Fundação World Food Prize, nos Estados Unidos. A conquista foi criada pelo Nobel da Paz Norman Borlaug, pai da revolução verde. Concedido anualmente, o WFP foi criado, em 1986. O laureado recebe US$ 500 mil e uma escultura projetada pelo artista e designer Saul Bass.
Carreira
Mariangela Hungria possui graduação em Engenharia Agronômica (Esalq/USP), mestrado em Solos e Nutrição de Plantas (Esalq/USP), doutorado em Ciência do Solo (UFRRJ) e pós-doutorado em três universidades: Cornell University, University of California-Davis e Universidade de Sevilla. É pesquisadora da Embrapa desde 1982, inicialmente na Embrapa Agrobiologia (Seropédica, RJ) e, desde 1991, na Embrapa Soja (Londrina, PR).
Mais prêmios
A cientistas já recebeu várias premiações pela sustentabilidade em agricultura, como o Frederico Menezes, Lenovo-Academia Mundial de Ciências, da Frente Parlamentar Agropecuária, da Fundação Bunge. Em 2025, recebeu o Prêmio Mulheres e Ciência, promovido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em parceria com o Ministério das Mulheres, o British Council e o Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe.
Grandes entrevistas