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Frei Xavier: Frei Tito é semente de resistência onde se debate "anistia com cheiro de amnésia"
Reportagem Seriada

Frei Xavier: Frei Tito é semente de resistência onde se debate "anistia com cheiro de amnésia"

No ano do aniversário de 80 anos de Frei Tito, Xavier Plassat relembra a convivência com o colega dominicano e revisita o legado espiritual do frade cearense, símbolo da resistência à ditadura

Frei Xavier: Frei Tito é semente de resistência onde se debate "anistia com cheiro de amnésia"

No ano do aniversário de 80 anos de Frei Tito, Xavier Plassat relembra a convivência com o colega dominicano e revisita o legado espiritual do frade cearense, símbolo da resistência à ditadura
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Prestes a embarcar em uma viagem com destino a Araguaína, o francês frei Xavier Jean Marie Plassat puxou na memória seu convívio com o dominicano Frei Tito, cearense alvo de perseguição pela ditadura militar.

Tito de Alencar Lima foi preso pela repressão em 1969 e, durante três dias, foi submetido à métodos de tortura, como palmatória e choques elétricos, a mando do delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, personagem presente na mente de Tito até a morte do frade, em 1974.

Na prisão, relatou o que viveu durante os episódios de tortura em um documento que atravessou continentes e expôs os horrores do período em que os militares ocupavam o poder no Brasil.

No entanto, Frei Xavier não conheceu Tito como líder com discurso aguerrido, mas sim como pessoa "de uma sensibilidade profunda". Os dois tiveram suas histórias entrelaçadas na França, no convento dominicano em L'Arbresle, após o exílio do frade cearense.

Ainda assim, Xavier acredita na convergência dos dois, "mesmo antes de nos conhecermos", devido à trajetória semelhante na militância. Ele dá o crédito de suas descobertas ao seu encontro com Tito.

O frade francês foi grande amigo de Tito nos meses que precederam novembro de 1974. Ao O POVO, Xavier compartilha a última conversa com o amigo, dividido entre os devaneios de uma culpa imposta e a lucidez da resistência em meio à dor, e seus pensamentos sobre a memória de Tito atualmente. Para Plassat, Frei Tito é semente da memória e símbolo de resistência em um Brasil que debate “uma anistia que tem cheiro de amnésia”.

 

Aviso de conteúdo: esta entrevista aborda temas sensíveis, incluindo suicídio, depressão e relatos de alucinações. A leitura pode ser difícil para algumas pessoas. Caso você esteja passando por um momento de sofrimento emocional, procure ajuda. No Brasil, o CVV (Centro de Valorização da Vida) oferece atendimento gratuito e sigiloso pelo número 188 ou pelo site cvv.org.br.

 

 

O POVO - O senhor conheceu Frei Tito em L'Arbresle e conviveu com ele durante os últimos meses de sua vida. Como foram os últimos momentos do Frade?

Frei Xavier Plassat - Morávamos na mesma comunidade, convivi com ele por uns 15 meses e nós éramos amigos e tínhamos pouca diferença de idade. Ele tinha 4 anos e meio a mais que eu. No momento em que aconteceu, em agosto de 1974, o Tito estava num processo de tentar reencontrar um chão onde pisar, depois de uma fase marcada por vários aparentes delírios onde ele manifestava a posse que o torturador tinha tomado dele.

Ele estava trabalhando a 25 quilômetros do nosso convento, num trabalho rural, mas estava alojado numa pensão para trabalhadores migrantes. Eu já o tinha visitado algumas vezes e, como ia sair de férias, fui visitá-lo mais uma vez para dar adeus.

Frei Xavier Plassat foi grande amigo de Frei Tito nos meses que precederam novembro de 1974(Foto: Mariana Lopes/ O POVO)
Foto: Mariana Lopes/ O POVO Frei Xavier Plassat foi grande amigo de Frei Tito nos meses que precederam novembro de 1974

Eu não lembro exatamente quantos dias antes de sua morte (a conversa) aconteceu, mas ele foi encontrado no início de agosto, no dia 10. Possivelmente, ele morreu dia 8, dia de São Domingos Domingos de Gusmão fundou a Ordem dos Pregadores, na qual seus membros são conhecidos como Frades Dominicanos

, fundador da ordem dos dominicanos.

Era uma opção que ele já havia tomado. Me convenci disso quando, mais tarde, encontrei escritos em um marca página de um livro que ele havia lido semanas antes, enigmático. Eu achei no quarto dele lá no convento, em um livro no qual vi ele ler há poucas semanas. Portanto, diz claramente que tinha só duas opções, e uma delas era continuar em uma tortura prolongada.

Bacuri Eduardo Collen Leite foi um guerrilheiro da luta armada contra a ditadura militar. Bacuri foi preso, torturado ao longo de interrogatórios no DOI-Codi de São Paulo e no Rio de Janeiro. Foi morto em dezembro de 1970 em São Paulo, após o sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher.

é um preso que morreu na tortura. Então poderia refletir isso, ou, em um nível mais elementar, dizer que uma vida dessa não vale a pena. Podemos pensar com um sentido mais profundo: “Minha vida, torturador não vai pegar, ela me pertence”.

Mas não é que eu estivesse pensando nisso de imediato, mas tenho tantas correspondências entre o sofrimento pelo qual Tito passou e figuras bíblicas de sofredores: o servo do profeta Isaías, o próprio Cristo. "Deus, por que me abandonaste?". Há essa espécie de sentimento de relicção total, e tem essas palavras no evangelho: “Minha vida ninguém tira, eu estou a entregando”.

Claro que são interpretações, não quer dizer que seja. Outra interpretação seria dizer que Tito foi assassinado pelo torturador e já saiu morto da prisão, foi morto pelos torturadores. Isso em parte é verdadeiro, pode até encontrar o texto do psiquiatra Dr. Jean Claude Rolland “Não há dúvida que Tito de Alencar morreu no decorrer de suas torturas. [...] Tito era o religioso, o lutador, mas também o homem inscrito numa história privada, doméstica, o filho, o irmão. Já não o era mais. Tito se tornou alguém outro, aquele que seu torturador teria querido que fosse. É neste sentido que se pode dizer que era um sobrevivente do qual era talvez impossível, a nós que não havíamos passado por essas provas, entendermos o que dele sobrevivia” - Artigo publicado em Nouvelle Revue de Psychanalyse, XXIII, 1986, sob o título: L´Amour de la Haine (o amor do ódio). Tradução do francês para português: Xavier Plassat.

, que o acompanhou, dizendo isso.

Rabiscos e frases em um livro que Tito folheava poucas semanas antes de sua morte(Foto: Reprodução/ Arquivo Pessoal )
Foto: Reprodução/ Arquivo Pessoal Rabiscos e frases em um livro que Tito folheava poucas semanas antes de sua morte

Mas a experiência que nós tivemos com Tito durante todo esse tempo é de um ser vivo, de um sujeito. Não era um animal, não era reduzido, mesmo se, no comportamento cotidiano entre se entregar, resistir, desistir, fazer fuga, se entregar seria obedecer ao chamado constante que ele sentia do torturador, do (Sérgio Paranhos) Fleury Delegado do Dops durante a ditadura militar. Foi acusado de tortura e homicídio de inúmeras pessoas pelo Ministério Público, mas morreu antes de ser julgado.

, dizendo:

"Acabou, eu já estou te pegando, você só pode se entregar, você é um traidor. Ninguém quer mais de vocês. Você não é digno de ficar nesse convento. Aqui é uma igreja, um convento sagrado. Você é um Judas, você é um comunista, um traidor, terrorista."

Essas acusações foram introjetadas durante a tortura e de forma extremamente brutal. Enfiando um fio elétrico na boca, e afirmando que esse fio seria a hóstia sagrada. Nós podemos entender que havia dias em que Tito se entregava, e dias em que Tito resistia. 

Eu acho que foi o ato de resistência maior dele, por dizer: “Tu não vai ter a última palavra”. Confere uma dimensão de dignidade a esse gesto, senão a gente sanciona a vitória do torturador. Claro que é uma derrota, mas somos discípulos no derrotado. Tito se levantou no que podia fazer nesse momento.

Desde 1989, Frei Xavier vive no Brasil a serviço da Comissão Pastoral da Terra. Em 1997, dedicou-se à Campanha pela Erradicação do Trabalho Escravo no Campo, na qual faz parte até hoje(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Desde 1989, Frei Xavier vive no Brasil a serviço da Comissão Pastoral da Terra. Em 1997, dedicou-se à Campanha pela Erradicação do Trabalho Escravo no Campo, na qual faz parte até hoje

OP - O senhor acredita que ele tinha medo de voltar ao Brasil e ser preso novamente?

Xavier Plassat - Em 1974, ele tinha medo constantemente de ser retomado pelo Fleury. Em um delírio dele, em uma certa noite, que conto em vários momentos, eu passei horas ao lado dele, que estava debaixo de uma árvore gemendo atrás de uma pedra, impossibilitado de entrar no convento porque Fleury havia proibido. E, nesse delírio, ele via e escutava os seus 10 ou 11 irmãos sendo torturados um após o outro.

Tito escutava eles gritando e Fleury vociferando: "Enquanto você não se entrega, eu torturo". Então esse medo era maior que o medo de ser recapturado e a única saída que lhe sobrava é Fleury recapturando ele.

E é importante lembrar que, explicitamente nas sessões de tortura, depois de ele ter cometido uma primeira tentativa na prisão, para alertar e a igreja, para romper o silêncio, eles disseram para ele explicitamente: "Nós sabemos fazer as coisas sem deixar marcas. Será quebrado por dentro pelo preço da tua valentia".

Tito escreve com todas as letras em seu relato: "Eles tentavam me tornar louco". Na verdade, tornar louco ou fazer de Tito um louco para a posteridade, seria como uma forma de absolvição dos torturadores dizendo: "Esse cara se matou porque era louco". Era uma inversão completa da responsabilidade.

Por isso, eu acho que essa é a interpretação na qual nós respeitamos Tito como uma pessoa que que resistiu, que lutou, que continuou no espaço mínimo que sobrava da liberdade aniquilada dele, fez o que era possível naquele espaço.

OP - Como o senhor recorda o momento em que recebeu a notícia da morte de Tito? E o que sentiu ao retornar ao local onde mantiveram uma convivência tão próxima?

Xavier Plassat - Apesar de ser uma hipótese na qual eu não tinha descartado, me surpreendeu. Me admirei, de uma certa maneira. Fiquei profundamente desesperado, claro, mas ao mesmo tempo não me pegou completamente despreparado porque era uma das coisas, eventualmente, possíveis.

Foi uma opção consciente tanto do psiquiatra quanto de nós, seus amigos e irmãos. Poderíamos ter mantido o Tito com vida, por meio de um tratamento de choque. Tratava-se, como disse o psiquiatra certa vez, de desalojar o torturador da mente dele. Mas para isso tem remédio brutais, nos quais você desaloja também a vítima, e a torna um legume.

Foto feita pelo Dops para a ficha de Frei Tito(Foto: Acervo O POVO)
Foto: Acervo O POVO Foto feita pelo Dops para a ficha de Frei Tito

Não era isso que a gente queria. Queríamos um Tito que tivesse direito a assumir sua vida, sua liberdade, sua dignidade. Era um risco que o psiquiatra tomou, de dizer que iria optar por uma terapia e não uma quimioterapia, que matasse o monstro e a vítima.

OP - Que lembranças ou ensinamentos da convivência com o Frei Tito permanecem vivos na sua memória?

Xavier Plassat - Tínhamos várias convivências entre nós, mesmo antes de nos conhecermos. Ele foi um militante da Juventude Estudantil Católica (JEC) nos anos 1970, início de 1960, assim como eu. Ele foi responsável pela Juventude Estudantil Católica no Recife, eu fui responsável pelo movimento na minha diocese. Em 1968, eu completei 18 anos na primavera da Revolução Estudantil em Paris, e sonhava com a América Latina, porque era pauta nossa. Com a Teologia da Libertação, Hélder Câmara Nascido em Fortaleza, dom Helder Câmara (1909-1999) se enraizou na vida religiosa como arcebispo de Olinda e Recife, em Pernambuco. No período da ditadura militar atuou contra os atos graves de violação dos direitos humanos, foi perseguido e precisou ser exilado.

 enchia as salas em Paris quando vinha expor a situação, e eu o seguia.

Melhor ainda, no meu quadro de estudante, eu convivi com um pôster de Carlos Marighella me olhando (risos) por quatro anos.

São coisas em que eu não conhecia a conexão e depois me dei conta. Eu lia aos poucos o que acontecia com os dominicanos no Brasil no jornal Le Monde, fiquei sabendo da prisão deles. Passando esse tempo em Paris, eu resolvi entrar nos dominicanos por vários motivos, inclusive pelo sonho de um mundo diferente, uma Igreja diferente.

Quando Tito veio morar na comunidade em que eu estava, já como dominicano, tudo isso funcionou como um espelho entre nós e fez com que, quando o conheci três anos depois, fizéssemos amizade quase espontaneamente. Na época, a gente falava muito da América Latina, do cinema brasileiro, tudo isso nos motivava. Eu me sentia com um dever de acolhida e porque eu, provavelmente, sonhava alguns dos sonhos dele também.

Túmulo do Frei Tito(Foto: Matheus Souza)
Foto: Matheus Souza Túmulo do Frei Tito

OP - Existe algum momento vivido ao lado de Frei Tito que, para o senhor, melhor traduz a essência dele?

Xavier Plassat - Ele era uma pessoa de uma sensibilidade muito profunda. Tem algumas fotos que mostram ele tocando violão, em uma paisagem de campo. Ele podia ficar horas tocando, matando a saudade provavelmente, escrevia poesia.

No momento que eu convivi com ele, eu não sabia que ele havia escrito algumas coisas. Ele tocava coisas bem simples, dedilhava, não era um grande músico, mas era uma forma de se reconectar com o Brasil. Esse aspecto um pouco poeta, artista, sonhador, era mais forte.

'(Para Frei Tito, era) uma dificuldade de viver, acrescentando aos sofrimentos físicos e psicológicos que teve na tortura'(Foto: Mariana Lopes/ O POVO)
Foto: Mariana Lopes/ O POVO '(Para Frei Tito, era) uma dificuldade de viver, acrescentando aos sofrimentos físicos e psicológicos que teve na tortura'

Eu não o conheci como líder militante, político, com discurso aguerrido. Soube que ele teve esse momento também, mas ele era uma pessoa quebrada. Então, ele também chamou atenção e sempre que havia uma oportunidade de se encontrar com uma família, pai, mãe, crianças, a gente via o quão feliz Tito ficava, ele mudava.

Eram poucas as ocasiões em que ele sorria, francamente. Imagina uma pessoa que estava na cadeia, que sofreu o que ele sofreu, e de repente, porque o embaixador da Suíça, Giovanni Bucher, foi sequestrado, abrem a porta e dizem: "Vocês agora estão banidos, vão pro Chile".

Ele não queria ir, mas não podia recusar, então foi. Dali para frente, a vida dele seria um corte constante do seu mundo, da sua terra, das suas raízes, da sua família. É impensável.

Então, ele estava vivendo conosco, mas sem nunca ter solicitado, desejado e sem ninguém nunca tê-lo convidado, como o estrangeiro cortado do seu chão. Uma dificuldade de viver, acrescentando aos sofrimentos físicos e psicológicos que teve na tortura.

OP - Quando foi definida a vinda dos restos mortais de Frei Tito, o senhor fez a organização desse traslado. Como foi a experiência de, nove anos depois da morte do frade, e de um amigo, acompanhar esse trajeto?

Xavier Plassat - Na época de pleno regime militar, nem no Brasil podia se falar das razões da morte dele. Quando a família, que solicitava há muito tempo da ordem dominicana, a ordem aqui no Brasil respondia: "Ainda não chegou a hora, mas vai chegar". Avaliaram no fim de 1982, quando o tempo já era maduro para isso e quando os sinais de falência da ditadura eram claros.

No túmulo de Frei Tito, lê-se: 'Preso, torturado, banido do País, atormentado... até a morte. Por ter proclamado o evangelho pela libertação de seu povo. [...] Tito agora descansa na terra onde nasceu.''(Foto: Matheus Souza)
Foto: Matheus Souza No túmulo de Frei Tito, lê-se: 'Preso, torturado, banido do País, atormentado... até a morte. Por ter proclamado o evangelho pela libertação de seu povo. [...] Tito agora descansa na terra onde nasceu.''

Assim, em um acordo passado entre um cardeal dom Paulo Evaristo, arcebispo de São Paulo, organizador do livro Brasil: Nunca Mais, da província dominicana do Brasil e da família, eles solicitaram aos dominicanos da França, principalmente naquela época, nossa organização tinha uma província em Lyon.

Eu estava nessa região, o convento dele estava ainda na região de Lyon também para preparar o retorno do Frei Tito. Durante todos esses nove anos, a figura do Tito havia sido erguida como bandeira da resistência latino-americana às regiões opressoras em vários momentos.

Quando Geisel Ernesto Geisel foi o quarto presidente da Ditadura Militar Brasileira, governando o país entre 1974 e 1979 foi convidado pelo presidente da República, Valéry Giscard d"Estaing, a fazer uma visita oficial à França, nós fizemos uma manifestação em Lyon, com Tito na frente. A imagem dele era forte na região. Havia muitos exilados chilenos na região nossa, que frequentavam bastante nosso convento.

Em 2021, uma rua no bairro Vila Leopoldina, em São Paulo, que anteriormente homenageava o torturador Sérgio Fleury foi rebatizada em homenagem a Frei Tito(Foto: Acervo O POVO)
Foto: Acervo O POVO Em 2021, uma rua no bairro Vila Leopoldina, em São Paulo, que anteriormente homenageava o torturador Sérgio Fleury foi rebatizada em homenagem a Frei Tito

Nós pensamos em fazer dessa despedida ao Tito um fato marcante. Conversamos com o arcebispo cardeal de Paris, que negou. A Igreja Católica tem, ao pé da letra, que quem tira a própria vida não tem direito a uma sepultura cristã. No nosso caso, em nenhum momento ninguém levantou essa suspeita.

Agora, o arcebispo da época em Paris se negou a abrir as portas da catedral de Paris, Notre Dame, para fazer essa celebração. Triste.

Então, fomos à catedral de Lyon e lá o arcebispo aceitou e até falou: "Eu gostaria inclusive de celebrar isso, se fosse possível, com alguns representantes da igreja do Brasil". Assim fomos nos colocando em busca de alguém que pudesse vir do Brasil.

Alguém me disse que existia um dominicano que se formou na França, fala fluentemente francês e que é bispo, fundador da Comissão Pastoral da Terra, bispo de Goiás, dom Tomás Balduíno. Ele era compadre de dom Pedro Casaldáliga. São dois bispos progressistas que nos anos 1960 e 1970 foram considerados como detonadores de uma Igreja que se levanta contra a opressão.

Então, alguém me passou o telefone, liguei: "Tomás, nós precisamos de você. Você topa?” Ele veio do Brasil e presidiu uma celebração que lotou a catedral, missa crioula, uma missa latino-americana composta no Chile, linda. Então, viajamos ao Brasil, com Tito em um avião de frete, e eu e dom Tomás em outro avião.

Chegamos a Guarulhos e houve uma primeira celebração na Catedral da Sé, presidida por dom Paulo, lotada de pessoas com faixas, como se fosse uma manifestação popular na rua, muita emoção. A segunda vítima da tortura honrada naquele dia foi Alexandre Vannucchi Leme, sobrinho do ministro da justiça Vannucchi Leme. Logo mais fomos para Fortaleza.

OP - Qual era o clima da chegada dos restos mortais de Frei Tito aqui em Fortaleza? Como as pessoas estavam? Foi diferente de São Paulo?

Xavier Plassat - Tinha uma carga emocional maior. São Paulo tinha a carga do militantismo. Todos os companheiros que se reencontravam, mas se encontravam sob a proteção da Igreja que havia dado força a todos eles durante esse tempo de chumbo.

Em Fortaleza também teve essa dimensão, mas teve uma dimensão muito mais emocional por ser o filho do País que volta, um filho da nossa terra. E logo se propagou um pouco a ideia de que Tito era santo, tanto é que se propagou a ideia que o corpo dele estava intacto.

Fotos do Frei tito Alencar, expostas em parede. Movimentos sociais ocupam a Casa Frei Tito de Alencar(Foto: O POVO)
Foto: O POVO Fotos do Frei tito Alencar, expostas em parede. Movimentos sociais ocupam a Casa Frei Tito de Alencar

Na minha modestia, não é verdade, mas muita gente se surpreendeu, porque Tito chegou em um caixão, o que significaria que o corpo dele estava lá dentro. Claro que o corpo estava lá, mas como restos mortais.

Ninguém teve como verificar nada, porque ele estava envolto em um lençol de alumínio, de zinco, selado e soldado, porque era obrigação para o transporte internacional. Mas essa ideia de que ele era um santo rapidamente se espalhou.

OP - O senhor acredita que Tito imaginava que teria toda essa repercussão da imagem dele? Acha que ele queria isso?

Xavier Plassat - Tito não imaginava nada. Acho que ele não imaginava nem que um dia pudesse ser lembrado, porque ele estava se vivenciando como uma pessoa jogada no lixo, um traidor. O jornal O Globo estampou, após a morte de Carlos Marighella, “Duplo Judas” “Frei Ivo e Frei Fernando já haviam traído a Igreja e a Ordem a que pertencem quando, renegando os votos de amor e caridade, abraçaram a filosofia do ódio (...). Essa traição foi o primeiro beijo de Judas que deram. Todo o resto decorreu dessa apostasia — ainda mais grave que a usual, pois fingiram que ainda continuavam na Igreja quando quando apenas dela se utilizavam para servir ao terror” - O Globo, 6 de novembro de 1969

, porque os frades dominicanos foram tachados de ter abraçado o comunismo, negando a sua fé cristã e, em um segundo momento, ter traído os comunistas entregando pra Polícia, para a Polícia assassinar Marighella. Então eram pessoas completamente fora e sem chances.

 

 

OP - Saindo um pouco da história do Frei Tito e entrando na sua própria trajetória: quando o senhor veio ao Brasil, inicialmente por causa do translado, acabou criando vínculos e decidindo permanecer no País. O que o motivou a tomar essa decisão?

Xavier Plassat - Na época, eu nem falava português, só que o Tomás Balduino me disse: "Xavier, eu quero te mostrar a minha diocese. Você não sai do Brasil sem vir visitar o trabalho que a gente faz com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), com os sem-terra, com os posseiros e os conflitos de terra."

Tomás Balduino vinha trabalhando muito junto a comunidades indígenas, ele tinha um pequeno aviãozinho vermelho, do tamanho de um fusquinha (risos), que ele pilotava. “Em três dias eu te mostro tudo”, falou Tomás.

Frei Xavier em seu trabalho na Campanha pela Erradicação do Trabalho Escravo no Campo, na qual faz parte até hoje(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Frei Xavier em seu trabalho na Campanha pela Erradicação do Trabalho Escravo no Campo, na qual faz parte até hoje

Então eu visitei a ocupação de terra, o trabalho da CPT, mas aqui nós vimos que esse grupo de família precisa ser apoiado. “Essa luta precisa de você, nós apoiamos, você tem que apoiar”. Eu tenho um amigo francês, advogado dominicano, que desde 1978 trabalha na comissão passada, só que no norte de Goiás, hoje Tocantins, na região de Porto Nacional e até o Bico do Papagaio, divisa entre Maranhão e Tocantins, onde o rio Araguaia e o Tocantins se encontram. Lá trabalhava o padre Josimo Morais Tavares Sacerdote católico brasileiro, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Araguaia-Tocantins, conhecida como “CPT do Bico”, por se localizar no Bico do Papagaio. Foi assassinado em 1986 por fazendeiros contrários ao seu trabalho junto a famílias na região , que foi assassinado em 1986.

Eu fui visitar Henrique, amigo que eu conheci na França, com quem eu tinha partilhado várias militâncias. Fiquei 10 dias com ele andando de jipe em todas as comunidades dos sem-terra.

Essa visita para mim foi um choque tão forte, um impacto tão impressionante que fiquei pensando que, bem, o que fazia na França não era sem interesse. Eu trabalhava com movimento sindical operário na comissão de fábrica, mas como economista. Mas aqui, francamente, é questão de vida e morte, não se compara. Então surgiu um pouco a ideia de que qualquer dia eu volto.

E, sem exagerar a dimensão romântica disso, mas se Tito tivesse tido a chance de poder viver, provavelmente ele abraçaria esse tipo de causa. Então é uma forma de dar continuidade. Eu passei a pensar que voltaria outra vez para aprofundar minha impressão.

Depois eu comecei a conversar abertamente com os meus colegas da França, acho que o meu lugar é mais para lá. Você tem que me liberar para ir. Aí me liberaram até seis anos. Aí depois me esqueceram. Fui ficando.

Para Xavier, Tito "não imaginava nem que um dia pudesse ser lembrado". Frade cearense é hoje um dos símbolos da resistencia à Ditadura Militar(Foto: Mariana Lopes/ O POVO)
Foto: Mariana Lopes/ O POVO Para Xavier, Tito "não imaginava nem que um dia pudesse ser lembrado". Frade cearense é hoje um dos símbolos da resistencia à Ditadura Militar

Eu consegui me desligar das minhas amarras na França, principalmente no fim de 1988. Não foi um negócio de um dia para outro. Cheguei no início de 1989, aprendi as coisas, me preparei para o trabalho e fui designado para ir trabalhar no Bico do Papagaio e depois na região de Araguaína, onde eu estou hoje.

Eu descobri a realidade completamente. Inclusive, nessa realidade que eu pensava já bastante conflitiva, da questão da terra, eu descobri a questão do trabalho escravo.

E nós criamos em 1997 a campanha nacional "De olho aberto para não virar escravo", na qual a CPT promove até hoje. A CPT é vista, no Brasil, como a entidade que puxou o assunto invisível do trabalho escravo e obrigou o Estado a fazer alguma coisa, levando o Brasil à Corte Interamericana de Direitos Humanos em dois casos.

Na Comissão Interamericana e na Corte Interamericana, onde o Brasil foi obrigado a adotar uma política de combate que hoje é considerada um avanço importante. Para mim, tudo que fui descobrindo, de uma certa maneira, eu credito ao meu encontro com Tito.

OP - Nos últimos anos, temas como a ditadura militar e o autoritarismo voltaram a ganhar espaço no debate público. Como o senhor avalia essa retomada, especialmente por ter vivido de perto esse período ao lado de Frei Tito, que sofreu diretamente as consequências da repressão?

Xavier Plassat - É difícil de explicar que haja tanta adesão, não somente no Brasil, porque as forças de extrema direita conseguem um apoio tão desproporcional em camadas do povo que, objetivamente, não têm nada a ganhar de um governo que colocaria em prática as teses que elas defendem.

Acho que vivemos numa situação de tamanha insegurança, que muita gente está disposta a aderir a qualquer norma, regra, sistema rígido, como uma forma de se garantir contra essa insegurança que está por todo lado. A guerra está aqui, o terrorista aqui, o crime organizado, o desemprego, enfim, estamos em um tempo em que o medo se espalhou e leva a condutas irracionais.

Agora, é lamentável que a gente não consiga reerguer com toda força a bandeira que nós temos, em nosso acervo de Igreja, de militância, de conquistas políticas, nossa história, tesouros para reerguer um povo.

Nossa igreja poderia, no lugar de competir com as igrejas evangélicas e encher de novo os templos — o objetivo de Jesus não era encher os templos, não era nada disso — era semente de vida em abundância. Então, toda postura da nossa militância, do engajamento voltado para desenvolver uma vida digna, em abundância para, sobretudo, os mais humilhados deste mundo, deveria ter a nossa preferência.

Na foto, Xavier afirma que polícia da região tentou retirar a população de um acampamento a força(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Na foto, Xavier afirma que polícia da região tentou retirar a população de um acampamento a força

OP - Frei Tito é um nome que ainda é falado. Todos os anos relembramos a figura dele e o que ele representou. O senhor acredita que, nessas novas gerações, os jovens que entram na militância e os que não estão na militância recebem uma representação correta de quem foi Frei Tito?

Xavier Plassat - Acho que não o suficiente. No auditório do Ministério Público, mais da metade das pessoas eram de jovens. Claro que eles foram convidados por algum colégio, não te dizem que cada um veio por decisão íntima e pessoal, mas eles ficaram até o fim, demonstraram interesse, se levantaram, aplaudiram, acho que eles passaram emoção.

Nas pessoas que encontro aqui em Fortaleza, que são impactadas pela história de Tito, não são pessoas da geração da Nildes (Alencar, irmã de Tito), da minha geração, nem da Lúcia, são pessoas mais novas.

Agora, jovem, às vezes eu me pergunto, inclusive entre os meus próprios confrades dominicanos, ou na Igreja em geral: será que essa dimensão do testemunho evangélico profético que esses corajosos vivenciaram nos anos 1960, 1970, 1980, às vezes eu não tenho a impressão.

A religião voltou a ser um ambiente de conforto espiritual, onde a gente equilibra a vida com pensamentos bonitos e tudo que, inclusive, o papa Francisco questionou: "Eu quero uma igreja que tenha o cheiro das ovelhas, o fedor das ovelhas".

Temos uma Igreja muito sem saída, saindo o suficiente, saindo à moda de outras igrejas ou como se o Deus de Jesus Cristo, que nós pregamos, fosse qualquer Deus, não o Deus do profeta assassinado por uma fidelidade à causa dos humilhados, dos discriminados. Então essa dimensão precisa ser resgatada e Tito nos ajuda nisso.

Na mesma semana a gente ficou sabendo que o papa canonizou dois jovens. A gente nem conhecia deles, parece que tem um milagre que aconteceu em Mato Grosso do Sul, tudo bem. Mas esse jovem Tito tinha 29 anos, ele é uma luz para muita gente, uma semente. Isso vai na mesma linha da questão da memória.

A gente inaugurou o memorial e a palavra diz claramente que é objetivo manter viva a memória para hoje, não como se fosse um museu do passado. Da mesma maneira que a gente diz que a Eucaristia é o memorial da paixão de Cristo para atualizar esse momento, o memorial do Frei Títo serve para atualizar a paixão de Tito nos dias de hoje.

Capa do O POVO com chamada sobre o especial de 40 anos sem Frei Tito(Foto: O POVO.DOC)
Foto: O POVO.DOC Capa do O POVO com chamada sobre o especial de 40 anos sem Frei Tito

Agora estamos nesse exato momento no Brasil nos debatendo num conflito bem significativo. A anistia ou memória, e é uma anistia que tem cheiro de amnésia.

Amnésia e anistia é a mesma palavra em grego, tem quase a mesma raiz, ou seja, é a negação da memória, o arquivamento, o esquecimento. Só porque invoca o fato de que houve uma anistia no fim da ditadura militar, mas uma anistia falsa que perdoou aos criminosos com o singular dizer: a gente perdoa os terroristas e os criminosos, não tem nada a ver.

Hoje, falar em anistia é uma hipocrisia total e também é desrespeitar a memória. E sabemos que, quando matamos a memória, abrimos as portas para o passado voltar com toda a força.

 

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