Teólogo e professor de filosofia, Carlo Tursi, de 61 anos, está prestes a completar quatro décadas de Ceará. É ítalo-alemão. Nasceu na Alemanha, mas foi registrado como italiano pelas regras remanescentes do pós-guerra. Prevalecia a “lei do sangue” paterno (um migrante da Itália), mesmo com a mãe alemã.
Todo esse tempo em solo cearense foi mergulhado na vivência da Igreja Católica local. Sempre com uma visão respeitosa, dedicada, mas sobretudo crítica. Era seminarista, a poucos meses de receber a ordenação de padre, quando desistiu de seguir a vida de batina. Por causa de um amor.
Tursi se apaixonou por Isabel Cristina, também professora. Deixou o abrigo religioso para morar com ela numa favela, no alto do morro. Passaram dificuldades extremas. Ambos sempre próximos de trabalho pastoral, auxiliando movimentos populares, através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Diziam-lhe que seria passageiro, estão juntos há 33 anos. Têm três filhos.
Também havia as dúvidas existenciais, sobre a igreja e sobre si. Tem a frase "Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é" como um verso de oração.
Reflexões, principalmente sobre o direito de ser crítico, que sopesaram para que não assumisse o sacerdócio. Não recuou, mesmo que tenha sido apadrinhado por um nome muito relevante: dom Aloísio Lorscheider (1924-2007).
Fosse pelo saudoso arcebispo de Fortaleza (de 1974 a 1995), Tursi teria mesmo sido padre. O cardeal vislumbrava ali um vocacionado, defensor e futuro guia de seu povo mais necessitado. Foi o religioso que viabilizou a mudança definitiva do jovem para o Ceará.
Ele até hoje se surpreende com o episódio em que dom Aloísio respondeu pessoalmente a uma carta sua. Da Alemanha, Tursi e um amigo haviam pedido a aceitação de uma transferência do seu seminário, em Osnabrück, para a arquidiocese cearense. Precisariam de uma morada. E o cardeal respondeu. “Você acredita? Eu era um zé ninguém e recebi uma resposta de carta de dom Aloísio dizendo ‘pode vir’”.
Tursi deu aulas por vários anos no Instituto de Ciências Religiosas. Lecionou História do Cristianismo para muitos que se tornaram sacerdotes. Deixou a instituição, mas segue a vida de ensinamentos.
Lamenta que o conceito de intervencionismo divino seja mais dominante que a igreja a partir de uma construção histórica, de transformar a realidade. "O reino de Deus não deve ser apenas recebido como um presente".
Ele acredita que a Igreja Católica Apostólica Romana pós-Francisco deverá voltar às mãos de um italiano - decisão que o conclave começará a decidir a partir da próxima quarta-feira, 7 de maio. “Ele (Francisco) é visto por todos esses movimentos pastorais sociais, movimentos de libertação, as minorias, como espécie de porta de abertura para poderem ser ouvidos, se tornarem mais visíveis”.
Teme que a retomada conservadora aconteça, pelas muitas divisões internas do Clero, as ideias do papa argentino sejam desfeitas.
O POVO - Você é teólogo e também filósofo?
Carlo Tursi - Na verdade, sou teólogo. Minha formação é em Ciências Religiosas. Eu dou curso de filosofia porque fiz filosofia. A teologia puxa um monte de matérias afins. Porque não tem como não trabalhar transversal.
OP - Você é alemão ou italiano?
Tursi - Eu sou descendente de um migrante italiano. Meu pai é da Campânia, sul da Itália, uma região que deu ao mundo um exército de emigrantes em busca de condições melhores de vida. Meu pai foi um deles.
Conheceu minha mãe na Suíça, eles foram morar na Alemanha, país da minha mãe. Minha mãe é alemã, meu pai italiano. E eu nasci como primeiro filho do casal em Osnabrück, Alemanha. Portanto, sou natural da Alemanha.
Mas naquela época a Alemanha ainda mantinha a primazia da lei do sangue acima do solo. Eu nasci em solo alemão, mas por causa do pai fui registrado como italiano. Então, até hoje eu sou italiano de passaporte, mas nasci e me criei na Alemanha. Osnabrück é na Baixa Saxônia, região norte.
OP - E como apareceu o Brasil no seu caminho?
Tursi - A minha paixão pelo Brasil, ela se explica através, vamos dizer assim, da minha juventude vivida muito ativamente nos grupos de jovens da Igreja Católica. Embora a região que eu nasci fosse preponderantemente protestante, meu lugar era católico. E a juventude católica nos anos 70, início dos anos 80, era muito fortemente influenciada pelo ideal da busca da justiça.
Era o tempo das grandes encíclicas papais, Evangelii Nuntiandi (emitida em 1975, escrita pelo papa Paulo VI), Pacem in Terris (1963, do papa João XXIII), Populorum Progressio (1967, do papa Paulo VI). A doutrina social da Igreja Católica inspirava muitos jovens católicos a buscarem um mundo novo.
Os grupos de jovens da paróquia da nossa época não eram preponderantemente grupos de louvor, de oração. Eram muito engajados em busca de um mundo melhor e, sobretudo, na época se fazia muita ação em favor do chamado Terceiro Mundo. Talvez fruto de uma consciência pesada de um país.
OP - Que informações você tinha do Brasil naquela época?
Tursi - Na verdade, conheci o Brasil muito através dos franciscanos lá da minha região, norte da Alemanha, que tinham casas aqui. Então, meu primeiro contato com o Brasil foi em 1983. Foi o ano que eu terminei o segundo grau, ensino médio, na Alemanha.
E eu vim ao Brasil, aqui ao Ceará, pela primeira vez, porque nosso grupo de jovens lá na Alemanha apoiava uma obra social aqui em Mundaú, município de Trairi. Um professor que era padre casado na época, hoje já falecido, José Ribeiro Damasceno, ele mantinha com sua esposa uma obra social lá em Mundaú e construía um centro comunitário, uma escola comunitária, um hospital-maternidade.
E nosso trabalho de juventude era apoiar financeiramente esse projeto lá da Alemanha. E transferimos renda para cá para ajudar. Aí o idealizador do projeto nos convidou, “venham visitar o Ceará, a obra que vocês estão ajudando a construir”. E um grupo de nove jovens, viemos em 1983.
OP - Você tinha que idade?
Tursi - 19 anos. Cheio de idealismo. E foi meu primeiro contato com a língua portuguesa, com o Brasil, aqui em Mundaú. E foi um mês de férias que transformou nossas vidas, sabe? Daquele grupo tranquilamente, mas a mim sobretudo, porque eu era uma espécie de tradutor e interlocutor.
Porque eu dominava melhor o português já nessa época devido aos meus conhecimentos do italiano. E eu retornei. Já naquele mesmo ano, 1983, eu entrei no seminário me achando vocacionado para o sacerdócio católico, mas já com planos de talvez servir em algum lugar fora da Europa. Eu não ousava na época pensar em Brasil, mas fui fisgado.
OP - Seu primeiro ponto de contato no Brasil foi mesmo o Ceará?
Tursi - Foi. Aí eu entrei no seminário dos jesuítas em Frankfurt, que era uma grande escola superior chamada São Jorge - inclusive hoje (data da entrevista, 23 de abril) é dia de São Jorge. Quer dizer, impossível não me lembrar. Eu também sou corintiano, né? Isso tem que ser registrado também, porque é dia de São Jorge (risos).
OP - E eu vi ali na parede um boné do time do Ceará também.
Tursi - Rapaz, Ceará, Corinthians, tudo alvinegro de ponta a ponta (risos). Isso é bom constar (risos). Então, nessa minha formação lá, eu era na verdade um seminarista diocesano, não era jesuíta. Apenas a faculdade era dirigida pelos jesuítas e eles apoiavam muito. Tipicamente jesuíta, a formação internacional.
Eles inclusive ofereciam bolsas de estudo para os seus seminaristas irem no além-mar estudar uma teologia diferente. E eu tinha conhecido, ainda no segundo grau, a chamada Teologia da Libertação. Todo mundo falava que era uma grande novidade da América Latina e tal.
E como eu já tinha estado duas vezes em Mundaú, já com uma paixão muito grande pelo Ceará, utilizei a chance que se ofereceu em 1985. Eu estava com dois anos de seminário na Alemanha. Tinha vindo duas vezes, de férias apenas, só para Mundaú.
OP - Você tinha vindo a primeira vez em 1983. Quando foi a segunda vez?
Tursi - Em 1984. Sempre em julho. Nas férias semestrais. Aí conheci em 1985, em Frankfurt, na Catedral, o cardeal de Fortaleza, o arcebispo dom Aloísio Lorscheider. Ele era descendente de alemães e rezou uma missa na Catedral de Frankfurt em alemão. E fez uma homilia sobre as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Uma nova forma da Igreja Católica se espalhar nas favelas, a Igreja nasce de baixo e tal.
OP - E isso entrou no seu sangue?
Tursi - Aí eu e mais quatro amigos, que nós já tínhamos fundado um grupo de trabalho do Brasil lá no seminário, nos apresentamos ao cardeal na recepção depois da missa. E nos apresentamos como pessoas interessadas em estudar teologia no Brasil.
Ele disse uma coisa para nós e foi aí que eu me agarrei. "Olha, se eu pudesse dar um conselho a vocês, não vão para São Paulo, Rio Grande do Sul, venham para o Nordeste. Se vocês quiserem ver uma coisa mesmo diferente culturalmente, o oposto do que vocês conhecem do mundo secularizado para o mundo de religiosidade popular, venham para o Nordeste”.
OP - Ele chamou para Fortaleza?
Tursi - Não, para o Nordeste. Eu que já conhecia Fortaleza, devido ao meu contato aqui, o padre casado, tomei a iniciativa de escrever uma carta pessoal ao Aloísio Lorscheider - ele tinha me dado o contato. Nessa época se escrevia carta. E você acredita, pedindo se teria condição de eu e um amigo meu virmos a Fortaleza se abrigar aqui.
E ele me respondeu. Você acredita? Eu era um zé ninguém e eu recebi uma resposta de carta de dom Aloísio dizendo "pode vir, eu tenho um padre aqui que vai receber vocês em sua paróquia". Eu disse assim, eu só tenho uma condição, dom Aloísio, eu não quero ir para o seminário. Eu quero morar em comunidade.
OP - Você ficou onde?
Tursi - Eu vim em fevereiro de 1986. Inclusive no próximo ano farei 40 anos de Brasil, 40 anos de Ceará. Então, fiquei no Pan-Americano na paróquia São Pio X, com o monsenhor Oscar Peixoto, foi um grande mentor meu. Devo muito a ele.
E foi aí que eu comecei a conhecer comunidade de base, toda a problemática social, as ocupações de terra. Era ano de Maria Luiza (ex-prefeita de Fortaleza), era ano de Tasso Jereissati (ex-governador do Ceará e senador). Era uma nova configuração no Ceará. Era muito efervescente.
Depois desse primeiro ano que era só de teste, eu decidi, e foi uma das minhas decisões mais sérias na vida, me desligar da diocese de Osnabrück. E pedi ao meu bispo uma carta de recomendação à diocese de Fortaleza para dom Aloísio me receber.
OP - Como seminarista?
Tursi - Como seminarista. E dom Aloísio me aceitou e o meu bispo fez isso por mim. Ele me liberou para servir em Fortaleza. Vim como seminarista, mas nunca morei em seminário. Eu era seminarista em situação de inserção, em campo. Porque na época existia esse modelo de formação.
Hoje não existe mais. Hoje tem que estar todo mundo no seminário com aquele modelo mais separado. Mas na época havia comunidades inseridas e eu tinha que buscar uma comunidade de religiosos que me acolhesse.
Eu queria morar em favela, para radicalizar. Da casa paroquial, ir para uma favela. E a única comunidade de padres na época que moravam numa comunidade favelada eram os padres redentoristas, os irlandeses. Essa comunidade morava no Parque São Miguel, perto da Lagoa Redonda. Eu morei lá durante dois anos com três padres redentoristas.
OP - Fazendo qual trabalho?
Tursi - Trabalho pastoral. Ou seja, eu estudava no seminário. Ia de bicicleta lá de Messejana até o Seminário da Prainha todo dia, e fora isso fazia muito trabalho pastoral. Acompanhávamos o pessoal da favela, os que ocupavam terrenos, essa coisa toda, sabe? Os desassistidos.
Nessa época a crise dos alugueis era terrível. Muitos embates. Esses anos de 1987 até 1990 foram muito mexidos na minha vida. Muita repressão policial em cima da questão social. E nós religiosos ficávamos no meio. Em 1990, eu cheguei a ser preso.
OP - Houve um episódio em que você chegou a ser espancado por policiais.
Tursi - Foi. Fui hospitalizado, processado. Era um grupo de posseiros que havia ocupado um terreno lá na avenida Curió. No dia do despejo, que não tinha sido avisado, chegou lá o Batalhão, capangas e tal, judicial, tudo, eles (posseiros) foram se refugiar na casa paroquial e pediram ajuda dos religiosos para intermediar. Para pelo menos conseguirem um prazo de 15 dias, na verdade.
Aí fui lá, me deixei sensibilizar, entrei com o monsenhor Antônio Souto, que era o nosso pároco. Entrei no terreno e me fiz lá de intercessor e o oficial de justiça, um homem ultra truculento, achou que eu estava impedindo a ação judicial. Que na verdade ele não tinha feito um aviso prévio, de 15 dias.
Tem que dar um aviso prévio pro pessoal poder retirar pacificamente seus pertences do terreno. Reintegração de posse, você não pode chegar assim de uma vez. Aí quando vi a irregularidade, eu disse: "olha, eu vou chamar o advogado da Arquidiocese, do Centro de Defesa do dos Direitos Humanos, para sustar essa ação judicial, que ela não é regular”.
Pois aí o homem mandou o Batalhão invadir e eu e meu colega seminarista fomos espancados brutalmente. Ele achando que nós éramos uma espécie de liderança.
OP - Achavam que vocês eram da comunidade?
Tursi - Foi terrível. Eu tive um braço quebrado, cacetete, blusa rasgada.
OP - Vocês foram presos?
Tursi - Ficamos presos. Na verdade só dois dias, hospitalizados no IJF. No dia seguinte, dom Aloísio veio nos visitar, nós dois seminaristas. E os dois policiais na porta da enfermaria. Foi bizarro.
Nessa época eu pesava 51 quilos. Aí eles alegaram que tínhamos resistido à ordem judicial, desacato à autoridade. Sei que o rebu foi muito grande. A Arquidiocese assumiu nossa defesa, num instante derrubou o processo contra nós.
O Tasso Jereissati teve que, diante da opinião pública, inclusive do jornal O POVO, exonerar o secretário da Segurança Pública dele (Nota da Redação: na verdade, o exonerado foi o então comandante do Policiamento da Capital, a mando do governador) devido a um seminarista italiano. Na época, as manchetes diziam “Padre italiano espancado”. Foi surreal.
OP - Quando foi?
Tursi - Em agosto de 1990. Naquele ano eu estava me formando como padre. Acabei escrevendo o meu trabalho de fim de curso sobre esse momento. O tema era “Isto é meu corpo que é dado por vocês”.
Era uma espécie de reflexão psicológica sobre mim e sobre nossa maneira de fazer pastoral, que questionava seriamente até que ponto nós não sofríamos. É um trabalho mais na linha teológica, psicológica e social também. Mas até que ponto nós não sofríamos, sobretudo nós vindos da Europa.
Eu morava com padres irlandeses também, de um complexo de Salvador. Uma espécie de vontade de assumir, de se colocar à frente nas lutas populares. Quase como quem diz para apanhar no lugar do povo. Eu fiz toda uma pesquisa depois, de campo.
OP - Você usou o seu episódio como um questionamento. Mas o seu trabalho mudou depois disso?
Tursi - Na verdade eu fiz por causa disso. Fiz como reflexão crítica em cima disso. Não apenas como engrandecimento, mas como questionamento. Sei que foi muito bem avaliado porque era autocrítico. Bom, isso foi em 1990 e eu estava certo para me ordenar.
OP - Você seria ordenado naquela época?
Tursi - Exatamente. No início do ano 1991 eu ia ser ordenado quando conheci minha atual esposa, Isabel Cristina. Ela também era dos movimentos. Era de Pacatuba. Mas a conheci aqui. Eu já tinha pedido o diaconato e escrevi para dom Aloísio. Sustei tudo na hora. “Não tenho coragem de me ordenar nessa condição que eu tô vivendo agora”. Talvez também por causa desse evento (agressão). Eu muito mexido.
OP - Você lembra a data que conheceu ela?
Tursi - A data não lembro, mas foi no final daquele ano, novembro, dezembro de 1990. Foi o ano que mudou muita coisa.
OP - A cabeça virou?
Tursi - Exatamente. E dom Aloísio respondeu assim: "Olha, eu espero por você. Eu libero você. Você não vai receber nenhuma ordem agora, mas eu espero por você". Achando que era alguma chuva de verão, sabe?
Acabou eu me juntando. Eu saí da área de Messejana. Tive que sair da moradia lá dos padres e vim me juntar com minha esposa, na época ainda minha namorada, aqui no Morro do Teixeira. Eu mudei lá de Messejana para aqui em cima, perto do Castelo Encantado.
OP - E aí passou a viver com ela?
Tursi - Exatamente. Foi uma época. Nos casamos no final daquele ano de 1991. Eu sei que foi uma pobreza lascada lá em cima, no morro. Porque eu saí fora da Arquidiocese, tive que procurar emprego. Trabalhei durante um ano como professor de religião no colégio Santo Inácio, foi o que me salvou.
E Isabel, que tinha sido também despedida da prefeitura como professora de Pacatuba, ela acabou encontrando emprego como professora no colégio Redentorista. E foi assim que nós dois, nesses dois colégios, nos sustentamos. Nossa moradia era precaríssima lá, num beco que nem carro subia, lá na areia do Morro do Teixeira.
OP - Você continuou mantendo contato com a igreja e a sua vida missionária?
Tursi - Minha sorte foi que eu consegui ser aproveitado como docente dentro do Seminário da Prainha. Muito cedo, meus professores repararam na minha eloquência, o jeito apaixonado de entender as coisas, ensinar.
Fui chamado primeiro para ser facilitador da Escola de Pastoral Catequética da Arquidiocese e, em 1994, para substituir, no Instituto de Ciências Religiosas da Arquidiocese, o famoso Monsenhor (Francisco Pinheiro) Landim, que havia adoecido, tinha um câncer de fígado, e era o titular de História do Cristianismo, História da Igreja.
E eu, com meus conhecimentos históricos, fui ocupando essa vaga dele. E passei a lecionar de 1994 até 2010. Eu era o titular de História do Cristianismo, disciplinas I, II, III e IV.
OP - E lá você não dá mais aula?
Tursi - Não. Até 2010. Aí houve a demissão. Porque em 2010 o Instituto de Ciências Religiosas da Arquidiocese foi fechando e abriu-se a Faculdade Católica. E com essa mudança houve uma substituição de muitos professores leigos, com visão mais crítica, com um pensamento mais independente, fomos todos demitidos.
Também por falta de qualificação acadêmica, pelo menos foi a razão alegada. Eu era graduado, mas eles queriam, para autorizar a Faculdade Católica, mestres e sobretudo doutores. E os doutores, a Igreja investe em padres e os manda fazer o doutorado em Roma.
Então veio uma enxurrada de padres doutorados em Roma que nos substituíram a nós leigos. Houve uma espécie de clericalização desse curso lá na Faculdade Católica. Muitos de nós realmente perdemos o emprego nessa época.
OP - A substituição da linha da Teologia da Libertação também foi um ponto que pesou?
Tursi - Pesou. Isso na avaliação da gente.
OP - Houve dom Cláudio Hummes, depois dom José Antônio. Havia esse movimento de antes?
Tursi - O arcebispo era dom José Antônio. Mas em dom Cláudio a gente percebia que o tom já era outro. Dom Cláudio havia sido mandado por Roma. Ele tinha trabalhado em Roma ultimamente. E veio para Fortaleza já para preparar essa guinada.
Embora ele fosse um cardeal com grande sensibilidade para a questão social, mas havia nessa época já um refluxo daquilo que (teólogo, filósofo e padre jesuíta João Batista) Libânio sempre chamou de a volta para a grande disciplina.
E o pastoreio e a administração diocesana de dom Aloísio eram vistas em Roma como pouco ortodoxas. Dom Cláudio Hummes já havia nos dito: "Olha, eu vim aqui em Fortaleza para apertar os parafusos frouxos”.
OP - Ele verbalizou?
Tursi - Você acredita? Dizendo isso com seu antecessor, dom Aloísio, que ainda estava na ativa em Aparecida (como arcebispo da arquidiocese do interior paulista). “Eu vim instruído por Roma para apertar os parafusos frouxos”.
OP - Você ouviu essa frase?
Tursi - Chocante, né? Digo, “olha, vem chumbo grosso aí”. Dois anos depois ele foi embora e veio dom José Antônio, que instaurou no instituto - mas não era culpa dele, era algo da pressão do papa João Paulo II - a necessidade de nós docentes todos fazermos um juramento de fidelidade à doutrina católica.
Era uma forma definida por dom João Paulo II para alinhar os docentes. Porque havia muita liberalidade. Você tá entendendo? Pelo menos na visão de Roma. Esse tipo de juramento de fidelidade, a última vez que a igreja viu isso, foi em 1907, quando Pio X impôs aos docentes católicos do mundo inteiro o chamado juramento antimodernista.
Todos para permanecer nas faculdades católicas, todo mundo tinha que fazer um juramento antimodernista. A doutrina modernista, liberdade de imprensa, liberdade de opinião, fim da censura, fim do índex, tudo isso os professores tinham que abjurar. As pautas modernistas tinham que ser abjuradas. Aí eu digo, “reedição de uma coisa dessa?”. Eu não vou jurar.
OP - Você pediu para sair?
Tursi - Não, eu disse pro meu reitor. "Você vai ou não vai jurar em público sobre a Bíblia?”. Eu digo “olha, na verdade não era para ser necessário”. Eu não vou trabalhar numa instituição que desconfia do meu sim e do meu não.
Aí eu falei até do Evangelho. Jesus diz no Evangelho: "Não jurem. Não jurem de jeito nenhum. Vocês ouviram o que foi dito aos antigos. Quando você fizer um juramento, trate de cumpri-lo para não usar o nome de Deus em vão. Eu, porém, vos digo, não jurem de jeito nenhum. Diga sim quando é sim e não quando é não”.
E o que passa disso é do maligno. Aí eu citei isso. Aí fui demitido. E não pude mais trabalhar no seminário.
OP - Ficou quanto tempo no total?
Tursi - Fiquei 15 anos. Com carteira assinada pela arquidiocese, muito boa relação. Eu queria ter perseverado lá, era muito bom. Mas havia essa questão acadêmica, eu não tinha o doutorado e havia essa desconfiança. Estava fazendo o mestrado em filosofia. Também não ia me salvar porque precisava ser em teologia.
OP - E como foi a sua remontagem?
Tursi - De 2010 para cá eu sobrevivo oferecendo cursos livres para a terceira idade.
OP - Mas você dá aula em faculdade também.
Tursi - Justamente. Mas é porque eu já muito cedo, desde 1995, paralelamente ao meu trabalho dentro da Igreja Católica, comecei a ser chamado a dar aulas para a terceira idade lá na Universidade Sem Fronteiras. Em módulos.
Eu virei professor da Universidade Sem Fronteiras (USF), que era no começo uma extensão da Uece (Universidade Estadual do Ceará), depois virou uma empresa familiar. E logo depois da Sem Fronteiras abriu o Viva aqui no Papicu. E fui professor do Viva também.
O Viva era uma fundação da Tânia Sancho (coordenadora dos projetos da USF). O Viva foi muito tempo uma casa independente, mas devido à falta de segurança pública, acabou se aliando e entrou como curso de extensão no Centro Universitário 7 de Setembro.
Eu trabalhei lá durante 18 anos. E quando foi vendida lá, recentemente, o Viva saiu de lá e todos os professores agora estão trabalhando no Centro Universitário Farias Brito. Minhas turmas hoje são aqui no Farias Brito. Mesmo formato, mesma condição financeira.
OP - Eu queria que você falasse um pouco da sua história com a Isabel. Como é que foi essa relação? Eu imagino que tenha havido algum preconceito. Você abdicou de ser padre. Tinha o entendimento de uma vocação e acabou descobrindo o amor. A vocação do amor também é forte.
Tursi - Não foi a primeira vez que eu havia me apaixonado, já aconteceram paixões anteriores, mas que eu acabei sufocando, porque eu ainda estava convencido de que minha vocação era sacerdotal.
O que aconteceu em 1990 foi porque devido a certas leituras, certas autoanálises sobre meus verdadeiros motivos de querer ser padre, eu comecei a questionar. No fundo, eu fiquei mesmo com Isabel porque minha cabeça já não era mais a mesma.
Você tá entendendo? Havia acontecido muita coisa naquele ano 1990, leituras e questionamentos que eu tive.
OP - Mas sobre você ou sobre a igreja?
Tursi - Sobre mim. Nessa época ainda não dava para ver que a igreja ia sofrer aquele refluxo neoconservador que acabou sentindo. Foi mais de questionar meus próprios motivos. Eu inclusive tenho esse problema até hoje.
Vejo que tem muita vocação sacerdotal que, na verdade, não tem clareza sobre os motivos mais profundos que os faz se identificar com a batina. Tem coisas que são do âmbito da psicologia, da motivação que é oculta ao próprio candidato ao sacerdócio. Ali há muito trabalho a ser feito e quem não fizer consigo próprio acaba descobrindo durante o ministério, depois, o que é pior.
OP - Essa sua autoanálise lhe redirecionou para o amor.
Tursi - É. Mas não é que seja mais fácil a vida de casado. Porque se você já era uma pessoa que queria se ver vaidosamente no centro, a pessoa que representa o ponto de unidade para os demais, o ponto que é procurado por todas as pessoas, essa figura do padre.
Se você não aprender a questionar o que faz você se identificar com isso, com essa figura que aparentemente paira em cima das questões, esse problema você leva para dentro do seu relacionamento também. Você não se cura só porque muda de carreira.
OP - E como foi a vida a dois?
Tursi - No começo foi muito difícil porque eu tive que defender essa minha guinada diante de todos os meus amigos.
OP - Mas convicto?
Tursi - É, eu estava muito convicto e todo mundo estava convencido que eu estava cometendo o maior erro da minha vida. Porque todo mundo achava que eu era um cara sério para o sacerdócio. Eu era um padre certo com quem a Igreja contava. Você tá entendendo? Arcebispo, meus formadores redentoristas…
OP - Você estava na fôrma de um padre ideal.
Tursi - Diziam “pelo amor de Deus, pensa que eu nunca me apaixonei?”. Eu fui muito pressionado para não me precipitar. Mas eu sempre pensei, inclusive é uma frase do Albert Schweitzer (teólogo alemão), que diz assim: "O maior patrimônio de uma pessoa espiritual é sua honestidade”.
Se você não for honesto, você já era. Você tá entendendo? A questão é essa. Não posso enganar a Igreja. Nem a mim mesmo. Eu devo comunicar, devo declarar, devo deixar. Eu posso depois tomar uma outra decisão, mas eu não posso fingir que isso não esteja acontecendo. Na sociedade, você tem tem que fingir praticamente em todos os ambientes.
OP - Papéis?
Tursi - Papéis. Você tem uma persona pública e tem uma vida por dentro que é melhor você não deixar vir à tona. Mas eu acho que a minha visão de religião, de igreja, de comunidade cristã, é justamente essa.
Ali seria o espaço onde você não deve usar máscara. Lá você deve ser autêntico. E isso é justamente quase impossível numa igreja como a que nós temos. Onde na verdade a aparência ortodoxa é tudo. E toda heterodoxia, toda a sua dúvida pessoal, você tem que esconder. Essa é a parte que eu não consigo aceitar, sabe?
OP - A sua formação libertária, dentro das CEBs, também ajudou a tomar essa decisão? Se tivesse seguido a linha conservadora talvez não tomasse essa decisão?.
Tursi - Exatamente. Porque a linha conservadora, o valor supremo é sempre a obediência. E a obediência é na verdade uma faca de dois gumes. A obediência é um grande valor.
Você não coloca a sua própria opinião acima da instituição do coletivo. Mas você não pode também levar obediência a uma obediência cadavérica cega, como se a instituição sempre tivesse razão e sua própria consciência subjetiva fosse a única falível. Porque esse é o argumento.
A tradição da Igreja é firme, ela não erra, ela é infalível. Agora você, que é um só, pode ser falível, você pode errar. Sua avaliação pode ser muito parcial. Na verdade, a doutrina cristã, tanto católica como protestante, diz que a última instância não é a voz do papa ou da Bíblia. A última instância de um cristão é sua consciência, por mais falível que ela seja.
OP - E como foi passar a viver a dois? Formaram família, tiveram filhos. Pode contar sem ferir sua privacidade.
Tursi - Não, tudo bem. Quando o primeiro filho veio, ele nasceu em 94, nós já não morávamos lá em cima (no Morro do Teixeira). Lá em cima a condição da água era terrível.
OP - Como é o nome dele?
Tursi - Foram três filhos. O primeiro filho é Lucas, o segundo é Marcos e o terceiro é Mateus. Lucas tem 30, Marcos tem 24 e Mateus, 19.
OP - Os seus filhos estão em que atividade?
Tursi - O primeiro se formou em sistemas e mídias digitais na UFC. Hoje trabalha na corregedoria da Segurança Pública. É técnico de informática. O Marcos acabou de terminar Ciências Sociais na UFC e vai entrar no mestrado. O Mateus acabou de entrar em geografia, segundo semestre.
OP - E já não estavam lá em cima. Foram para onde?
Tursi - Não. Morávamos na avenida Jangadeiro, embaixo, no Mucuripe. E dez anos depois mudamos para cá, conseguimos comprar essa casa (no bairro Vicente Pinzón, local da entrevista). A minha esposa, depois de alguns tempos no Redentorista, passou no concurso como professora do Estado.
OP - Ela é professora de quê?
Tursi - Ela fez pedagogia. Quando nos casamos, ainda fazia faculdade. Trabalhou durante muitos anos aqui na escola Matias Beck, no Mucuripe. Por 17 anos trabalhou lá, inclusive como coordenadora pedagógica, que era o forte dela. As crianças foram crescendo nesse bairro.
OP - Mas vocês nunca se desligaram do trabalho pastoral?
Tursi - Não, nunca, nunca. Mesmo depois de sair do seminário, eu era assessor bíblico das Comunidades Eclesiais de Base. Eu fui da coordenação arquidiocesana das CEBs. Eu tive audiência com dom José Antônio depois, ainda como coordenador.
Hoje trabalho ainda com os padres redentoristas aqui nas comunidades eclesiais de base na Praia do Futuro. Nós temos toda uma área de 15 a 20 comunidades articuladas e eu sou aquele que assessora lá o trabalho bíblico, teológico.
OP - Como você dimensiona as CEBs de hoje?
Tursi - Veja bem, na verdade hoje as Comunidades Eclesiais de Base vivem na Igreja Católica uma vida marginal, no sentido de viver à margem dos grandes movimentos. O centro é ocupado hoje pelos chamados movimentos apostólicos. Que são praticamente todos de orientação ou neopentecostal ou neotradicionalista.
É muito louvor, muito Espírito Santo, e muito tradicionalismo com roupagem nova. Do jeito que João Paulo II pedia. Nova linguagem, novas formas, mas o conteúdo continua sendo, na minha leitura teológica, medieval. Medieval, devocionista, supranaturalista.
É tudo intervencionismo divino e tal, pouca construção histórica. Então, os movimentos ou a base da igreja como as CEBs, que insistem em transformação da realidade, que o reino de Deus deve ser não apenas recebido como um presente, mas construído no seguimento de Jesus, isso hoje é uma realidade marginal.
E as autoridades da igreja, muitos padres, membros do Clero e movimentos, tratam as Comunidades Eclesiais de Base como capítulo do passado. Tem padre que diz: "Eu não consigo mais nem ouvir essa sigla. Eu enchi, não quero mais nem ouvir falar". “Não existem mais CEBs, só existem pessoas saudosamente defendendo”.
OP - Gatos pingados?
Tursi - É, como gatos pingados. Só que nós temos aqui comunidades vivíssimas ainda, também em vias de desarticulação, devido à paroquialização, a recuperação paroquial. Porque as comunidades de base sempre tiveram certa independência. E essa é a questão que eu queria ter falado antes.
Para o tradicionalismo, o valor supremo sempre é a obediência, mas para a maneira como nós nos formamos, o valor maior é a liberdade do espírito. Você tem que fazer uma ginástica entre obediência institucional, pertença, resolver seu problema de pertença.
Você quer ou não quer ser igreja? Se quer ser a Igreja, não pode apenas criticá-la, tem que também ajudar a construí-la. Mas ao mesmo tempo, se a adesão for total, você vira capacho, você vira súdito. E aí que está a história, sabe? A liberdade dos filhos de Deus significa que nós também somos igreja e também queremos ser ouvidos. Nós temos direito de exercer crítica.
OP - Francisco tentou fazer essa reativação?
Tursi - Ele tentou fazer. O pontificado dele, para nós, foi muito promissor. Porque ele foi cheio de sinais. O primeiro sinal foi ter aceitado o cargo de papado como jesuíta. Não se tem notícia de um jesuíta em cargo eclesiástico alto. Não tem. Os jesuítas fizeram voto de não querer cargos. Ele não abriu mão disso e se deixou eleger.
Segundo sinal: escolher como nome do papa o nome que nunca foi usado antes. O maior santo da Igreja Católica foi São Francisco de Assis. O mais carismático, o mais querido, o mais simpático, tudo mais. Mas também o mais crítico, o mais exclusivo dentro da igreja, o que mais criticou a Igreja do seu tempo, o que mais contestou a riqueza, a busca de poder da sua época.
Então foi a escolha desse nome. Um jesuíta que escolhe o nome. Não era Francisco Xavier jesuíta, era Francisco de Assis franciscano. Além de ser latinoamericano. Quer dizer, nós percebemos, e ele é visto por todos esses movimentos pastorais sociais, movimentos de libertação, as minorias, todas tiveram Francisco como espécie de porta de abertura para poderem ser ouvidos, se tornarem mais visíveis.
OP - Do que Francisco tentou, ele conseguiu em que níveis? Foi boicotado? Encontrou caminhos já muito sedimentados, que dificultaram as intenções dele?
Tursi - Olha, é difícil. O pontificado dele participa das mesmas ambiguidades que, por exemplo, o pastoreio de dom Aloísio aqui. Porque a diferença é só o nível. Você sendo bispo de uma diocese, você tá numa igreja particular, seu território é menor.
E como papa você é pastor universal. Mas o pastor foi desenhado para ser uma figura de unidade. A minifigura é o padre na paróquia. Na verdade, pelo direito canônico ele não devia ter ideologia, não devia ter profetismo, não devia ter lado, não devia ter partido, não devia ter nada. Essa é a questão.
Porque se ele deve unificar, ele é figura de unidade, ele deve ser acessível a todos os grupos. Essa é a idealização da figura do padre. Por isso que eu avaliei que eu jamais serviria. Polêmico que eu sou, parcial que eu sou, consciente das minhas convicções que eu sou, eu seria um padre que racha a paróquia. Você tá entendendo?
E esse é o problema, foi o problema de dom Aloísio aqui. Saiu um livro sobre dom Aloísio chamado “Pastor e Profeta”. É uma contradição em termos. Pastor, quer dizer, eu quero todas as minhas ovelhas reunidas, as gordas, as magras, as ricas, as pobres, mas como profeta você tem que dizer, olha, chega de alimentar os gordos, nós temos que alimentar os magros.
Isso é profetismo na Bíblia, na tradição cristã. Então, como profeta, se você é pastor ou padre, ou papa, e quer dar uma de profeta, se você tem atitudes mais fortes e incisivas, você acaba dividindo. O próprio Cristo, que era também incisivo e, no entanto, se comparou com um bom pastor, Isso é uma contradição em termos.
Ou você é profeta ou é pastor. Tá entendendo? Agora ele queria dizer o pastor que reúne os marginalizados, as ovelhas desgarradas e deixa o rebanho só. Que padre, que papa pode fazer isso? Eu deixo os casais com Cristo e vou atrás de prostitutas e pecadores?
OP - Você está destacando as semelhanças de Francisco com dom Aloísio?
Tursi - Justamente. Eu tô puxando essas semelhanças. Isso mesmo. Então é claro que o pontificado dele vai dividir a igreja. E isso Cristo diz no Evangelho. “Vocês pensam que eu vim para unir, para trazer a paz? Eu vim para trazer a espada e a divisão. Vai ser pai contra filho, filho contra pai, sogra contra nora, por causa de mim”. Tá lá no Evangelho.
Como você disse muito bem, existe alguém que não seja parcial? Não existe. O antecessor Bento XVI queria ser o ponto de unidade. O que é que ele fez durante anos? Perseguiu a Teologia da Libertação. Eles nos acusam de sermos contra os carismáticos, mas quem nos perseguiu durante décadas foram eles.
OP - Eles quem?
Tursi - Esses movimentos neopentecostais. Na verdade, eles fizeram caça às bruxas. São verdadeiros caçadores de bruxas. Comunistas, padres vermelhos, não sei o quê e tal. Tem listas. São bem agressivos. “Não leiam essas obras”. Se não tivéssemos o estado laico…
OP - Como pensa que será o redesenho da igreja pós-Francisco? Um papa da Europa? O conservadorismo mais forte?
Tursi - Eu vou citar uma linha que se faz ouvir hoje. Diz assim: nós tivemos um papa polonês, depois um alemão e depois um argentino. Ou seja, três não italianos. Tem uma linha que diz: "Eu acho que a maioria dos cardeais vai optar dessa vez por um papável italiano".
OP - João Paulo I era italiano.
Tursi - João Paulo I era, mas esse não conta. Porque tô considerando a partir de João Paulo II, foi o grande rompimento com a linha dos papas italianos, certo? Então tem gente que acredita que o nome seja italiano. Se for italiano, tem três nomes.
Tem o (cardeal Gianbattista) Pizzaballa, de Jerusalém. Era um que o papa Francisco gostava muito dele. Ele falava por telefone diariamente para ouvir notícias sobre Gaza. Esses sinais eu acho muito falantes. Pizzabala pode ser um dos nomes, mas não sei se ele realmente tem defensores no colégio cardinalício. Talvez não tenha.
Um outro nome que me agradaria muito é o atual presidente da Conferência Nacional dos Bispos da Itália, que é o Matteo Zuppi. Ele me agrada muito porque é um homem moderadamente progressista. É um homem de confiança de Francisco, foi embaixador do Vaticano na Ucrânia tentando negociar a paz lá.
E é um homem super simpático, é o arcebispo de Bologna. Eu sei, por exemplo, que antes de ir para Roma, ele ia de bicicleta para o ofício.
OP - E essa ferramenta do carisma, a Igreja está entendendo como necessária.
Tursi - É, necessária, exato. Ele seria um nome. Essa é uma linha de avaliação, que seja um italiano. (Durante a entrevista, Tursi não conseguiu lembrar do seu terceiro nome cotado. Depois, por mensagem, citou que poderia ser o do cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, também italiano).
Uma outra linha acredita que como Francisco deu muita ênfase ao catolicismo tanto da África como da Ásia, onde a coisa está crescendo mais, estão achando que pode existir uma ala de cardeais que vai querer (alguém de lá).
E o problema é que dois dos pretendentes africanos são ultra conservadores (cardeal Robert Sarah, da Guiné; Fridolin Ambongo Besungu, do Congo; Peter Turkson, de Gana, seria o mais liberal dos três). Inclusive discordaram moderadamente de Francisco. Chamavam certos posicionamentos de Francisco como heréticos abertamente. Impressionante.
OP - Quem é o da Ásia?
Tursi - Tem um lá das Filipinas (Luis Antônio Tagle) que é muito forte.
OP - E você analisa a Igreja do Ceará em que cenário?
Tursi - A mentalidade do clero, salvo honrosas exceções, é uma mentalidade que considera o mundo moderno hostil à Igreja. Isso é uma relíquia desde o século XIX, quando o ateísmo avançou, quando o estado laico veio, quando o casamento civil veio, quando o cemitério saiu da igreja e foi para o município. Desde lá.
OP - Perda de poder?
Tursi - O mundo moderno é hostil à Igreja, essa é a tônica. A imprensa? Só quer prejudicar a Igreja. Não tem ninguém que seja objetivo. Tá entendendo? É literalmente um preconceito. Eles dizem que é conceito, mas é muito difícil você superar isso. Uma desconfiança enraizada, arraigada com os meios de comunicação.
Dizem assim: "Quase sempre a vontade é de detonar e aumentar os escândalos e não noticiar o que é bom". Mas com relação a isso, dom Gregório (Paixão, arcebispo de Fortaleza) tem uma atitude muito mais proativa em relação à mídia. Você vê que ele tá em todas.
Se o outro (arcebispo antecessor, dom José Antônio) não aparecia de jeito nenhum, era entocado, saía só para celebrações e vivia muito doente, qualquer coisa somatizava, esse não. Participa, vai a procissão, mas vai também com os moradores de rua. Celebra a missa lá, vai pros carismáticos, vai pras CEBs.
No Dia de Aparecida, 12 de outubro, ele celebrou missa para nós aqui na comunidade da Embratel, na favela, ao meio-dia, que era o único horário que ele tinha. Fez questão de estar lá e contou história. Ele grava vídeos, com histórias populares, contos populares, com moral. É beneditino, ataca de hábito.
É um negócio impressionante. É uma figura muito mais acolhedora. Agora tem que saber disso e da ideia dele. Minha esposa agora é membro da coordenação arquidiocesana de CEBs. Eu sou apenas assessor. Houve uma audiência agora com dom Gregório. Bateu foto, acolheu muito bem, mas ele dá o recado dele também.
Ele disse assim: "Paremos. A Igreja Católica está sofrendo uma espécie de autofagia. Você nunca vai ver um evangélico criticar sua igreja. Só católico mete o pau na sua própria Igreja”. Só o católico. Eles amam católico 100% católico, 100% identificado com a instituição. Nós jamais seremos.
Dom José Antônio disse uma vez para nós, quando eu era coordenador: olha, vocês se queixam que não têm padres que vão para a periferia, que não vão morar na favela, como era o caso de vocês na época. Por que ninguém quer ser padre para as CEBs, para os pobres? Porque primeiro vocês têm que resolver o problema de pertença de vocês.
Vocês têm um problema de pertença. Vocês não se identificam, vocês não querem ser católicos. Vocês querem dizer nós somos cristãos. Não, tem que ser católico, tem que ter orgulho de ser católico. Eles cobram de nós uma identificação 100%.
Dom Cláudio já dizia: "se você discorda desse ou daquele ponto da doutrina… como eu faço, não é segredo para ninguém que tem muitos pontos que eu digo: "Não, isso aí não posso ensinar, por isso que eu não jurei”. Eu não posso de sã consciência jurar que eu estou de acordo com toda a doutrina quando eu acho que isso é um absurdo, isso não é defensável hoje em dia”.
Eu sei que ele dizia: "Olha, o problema de vocês é que se permitem críticas, acabam prejudicando. A autofagia quer dizer, a igreja come a si mesmo. e perde fiéis constantemente. E para quem? Para o que é muito pior do que nós.
Tremam diante de um Brasil evangelicalizado. Eu não tô dizendo evangelizado, evangelicalizado. Tremam, tá entendendo? Eles cobram isso, vamos resolver nosso problema de pertença, que certamente a igreja acolherá melhor vocês também novamente. É uma questão de duas mãos.
OP - O movimento da direita que se apresentou no Brasil é mais católico ou evangélico?
Tursi - Hoje tem uma grande parte da direita que se nutre também da Igreja Católica, inclusive nos Estados Unidos. JD Vance, o vice-presidente dos Estados Unidos, ele é convertido ao catolicismo, mas ao catolicismo de extrema direita. Nós temos aqui em Fortaleza padres de extrema direita. Inclusive defendendo Bolsonaro. Teve o episódio do padre Lino (Allegri), lá na Paróquia da Paz.
OP - A direita não parece mais próxima do meio evangélico?
Tursi - Depende. No campo evangélico hoje tem um grande movimento de reação dizendo que essa teologia do domínio, que é defendida por muitas igrejas neopentecostais, já esqueceu Jesus, já colocou Jesus de lado e voltou pro Antigo Testamento.
Porque você sabe que, como evangélico, você não pode querer poder estatal. Você não pode fundar em Jesus a vontade de construir uma neocristandade, “nós queremos ser governo”, “o Brasil tem que ser para Cristo”.
Isso você pode fundamentar sobre o rei Davi, sobre Salomão. A cristandade tem raiz no Antigo Testamento, na teocracia judaica, por isso que eles apoiam Israel. Você tá entendendo? Muitos evangélicos perceberam isso, pastores perceberam.
Tem igrejas que aposentaram Jesus e o Novo Testamento e Paulo e voltaram direto pro rei Davi, voltaram direto para Moisés, “nós vamos tomar a terra porque a terra é para ser de Deus e o governo tem que ser de Deus. E Deus rejeita o governo que é laico, que não é de Deus. Nós queremos que a proposta cristã esteja na Constituição”.
Você tá entendendo? Tudo isso você não pode defender com o Novo Testamento. “Meu reino é desse mundo. Vocês não são a massa. Vocês são fermento na massa”. Os cristãos devem ser uma força benigna dentro do tecido social, sem querer comandá-lo. Mas eles querem comandar.
Então, já no campo evangélico, há uma percepção disso e tem muitos, muitos pastores que eu conheço que se afastam disso, acham isso perigosíssimo. Teologia do domínio. Teocracia, neocristandade.
OP - Que padre você teria sido hoje com essa Igreja que você critica?
Tursi - Eu vejo colegas meus que estudaraM comigo e se ordenaram e vivendo a vida que lhes é possível. E com sinais de profetismo e com autenticidade.
OP - Muitos estão aqui no Ceará ainda?
Tursi - Estão aqui ainda. Eu tenho vários amigos no clero, amigos até hoje e eu poderia me ver como um deles. Ou seja, há um espaço a ser defendido, embora talvez com pouco apoio, trabalhando em periferias. Sua luz você sempre pode acendê-la. E quanto mais escuro fizer, mais precioso é seu contraponto.
Acho que não existe excusa para quem veio com a missão de fazer a diferença. Talvez a minha frustração seria maior. Eu como leigo engajado tenho menos amarras a enfrentar. Porque também é financeiro. Quem é que paga teu salário? Meus colegas padres da libertação, seja o que for, engajados socialmente, recebem seu dinheiro da Igreja.
Por isso que para mim foi importante. Eu pude tomar em 2010 uma atitude de me desligar da Arquidiocese porque eu tinha financeiramente feito um pé de meia na Sem Fronteiras, no Viva em outras universidades laicas. Ou seja, projetos que eu podia ser livre. Muitos colegas meus que dependiam do salário não tiveram opções.
Dois colegas meus que eram professores no seminário, depois de 2010 voltaram para a Alemanha com suas esposas brasileiras e criaram seus filhos na Alemanha. E agora estão sofrendo lá na igreja alemã que só está perdendo fiéis.
Dois que deviam estar aqui, vieram com o mesmo ideal e estão lá. Eu sou quem sobrou aqui. Mas a liberdade que eu tenho hoje, eu não trocaria por essa vida angustiada de padre. Mas eu tô dizendo, possível seria.
OP - Você tem uma autoanálise dessa sua trajetória?
Tursi - Eu tenho que ter. Eu faço esse exercício constantemente. Existe uma frase de uma música do Caetano que me é muito cara. Eu tenho até uma camisa com essa frase. Eu tenho essa frase ali emoldurada.
OP - “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
Tursi - É. Essa frase me ficou sendo cada vez mais cara porque, se eu olhar para trás, eu vejo minha caminhada como, pelo menos na visão que eu tenho de mim mesmo, de ser cada vez mais complexa. Você começa a divisar melhor luz e sombra na sua personalidade.
Nós temos 33 anos de casado, você conhece o melhor e o pior de si. Então, a delícia de ser quem você é nunca me deixou. O auto-enamoramento, o amor próprio. Tem dias que eu me acho fantástico, mas ao longo das décadas há um desgaste.
Você encontra também o pior de si, a sombra, a dor de ser quem você é. Você carrega sua própria cruz, no sentido de sombras da sua personalidade, incompatibilidades, mazelas de caráter que você peleja mais, que dependendo do gatilho, vem à tona de novo.
Minha visão de mim mesmo hoje é muito complexa. Eu não tenho mais esse cristal da minha própria pessoa. Críticas, hoje eu tenho mais maturidade em em ver, porque eu faço muita autocrítica.
OP - Eu acho que a grande linha da sua entrevista é essa.
Tursi - Agora, se eu tenho uma visão, uma noção basicamente positiva da minha trajetória, é porque eu tenho a sensação de que em todas essas fases eu acabei crescendo como pessoa. Eu certamente desci um bocado do pedestal onde eu me via, onde as pessoas me viam.
Hoje tenho uma visão muito mais realista, mas acho que mesmo nessa descida da autoimagem, eu acabei crescendo. Um crescimento interior em termos de riqueza e matização da personalidade.
OP - Consistência?
Tursi - Isso, consistência, consistência. Eu tenho essa visão e isso me dá uma visão muito positiva da coisa, sabe? Espero que os próximos anos, não sei quanto ainda vem pela frente. Às vezes a gente tem a sensação que envelhecendo você desce. Mas correspondendo a essa descida fisiológica física, força, disposição, existe uma subida.
OP - Só pra entender: como surgiu a decisão de ser seminarista?
Tursi - Eu acho que começou na época do curso para crisma. Eu tinha 14,15 anos, por aí. Eu me destaquei, fui aproveitado. Comecei como leitor na igreja, era um bom leitor. Eu nunca apenas lia, eu declamava textos e tal. Comecei como alguém que começou no culto, depois começaram os grupos de jovens. Fui escuteiro, fiz acampamento com juventude, essas coisas que se fazia na época, sabe? Por causa ecológica, terceiro mundo.
OP - Os seus pais eram católicos praticantes?
Tursi - Eram praticantes, mas…Íamos pra missa e tudo mais, mas não eram católicos assim, sabe? Que punham a reza na mesa. Não chegou a esse ponto.
Meu pai inclusive, embora fosse do sul da Itália, muito católico, os irmãos dele, a família dele, mas ele sempre foi fora da curva. Ele era um pedreiro. Meu pai foi pedreiro, um homem que não passou nem da quinta série. Não terminou nem o primeiro grau (hoje ensino fundamental).
OP - Como era o nome dele?
Tursi - Giuseppe Tursi. Tenho a foto dele ali na parede. Morreu de Alzheimer.
OP - E sua mãe, como era o nome dela?
Tursi - Minha mãe ainda é viva, chama-se Hilda Anna Niemeyer. Tem 96 anos. Ela é viva ainda. Mora em Hamburgo com minha irmã. E o meu pai era sempre um pensador muito sui generis. No nível popular dele, pouco instruído, foi um grande leitor.
Lia tudo que aparecia e era um filósofo de vida, mas tinha uma filosofia muito bizarra, muito própria dele, construída de pedaços. Era um cara muito simples. Não era um cara de cabresto de jeito nenhum. Inclusive polêmico.
Entrevista
A entrevista com Carlo Tursi foi feita no dia 23 de abril, dois dias após a morte do papa Francisco. A conversa foi em sua casa, no bairro Vicente Pinzón, em seu escritório, cercado de livros. Na estante, livros de várias matizes, de romances ficcionais a análises filosóficas, psicológicas e temas religiosos.
Pistas
A foto do pai dele, Giuseppe Tursi, está no mesmo ambiente, pendurada na parede do lado oposto ao dos seus livros. E bem próximo, num quadro, um dos versos da música "Dom de Iludir" de Caetano Veloso: "Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é". Disse que é "alvinegro de ponta a ponta": torce Corinthians e Ceará.
Sotaque
O sotaque estrangeiro de Tursi já desapareceu. Quase não se percebe algum som germânico em suas palavras. O vocabulário rebuscado é muito bem utilizado. E algumas expressões nordestinas, como "cabra" ou "vixe", saem naturalmente no meio das frases.
Grandes entrevistas