
“Tenho certeza que você já viu no Brasil como eu os vi no Irã”, me conta o diretor iraniano Jafar Panahi sobre os sinais de que a ditadura, o totalitarismo e a censura se mantêm vivas nas sombras do mundo. No final de novembro, poucos dias após essa entrevista, o diretor foi novamente surpreendido por uma condenação à prisão pelo regime teocrático de seu país, que o acusa de estar envolvido em “atividades de propaganda contra o estado”.
Embora ele esteja em exílio, atualmente em campanha ao Oscar com seu novo filme Foi Apenas um Acidente, vencedor da Palma de Ouro no 78º Festival de Cannes, ele não quer fugir para sempre — diz que pretende voltar a Teerã para recorrer à pena e, se necessário, cumpri-la.
Inspirada pela sua realidade, a trama do filme acompanha um mecânico que decide sequestrar e enterrar um homem que julga ter sido seu torturador quando esteve preso. Quando chega na hora, porém, ele de repente é acometido de uma dúvida cruel: será que aquela é a pessoa certa?
Na mesma semana, outra cineasta iraniana nos contou sobre como via sua própria história ecoar fora do país natal. O documentário Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe registra uma série de vídeochamadas da diretora iraniana Sepideh Farsi com Fatem Hassona, fotógrafa palestina que morava em Gaza com a família até ser morta em um ataque israelense, a dois meses da estreia do filme no mesmo Festival de Cannes que premiou Panahi.
“Meu filme fala além de Gaza porque minha própria vida está ali. Fui presa no Irã, depois impedida de estudar e acabei deixando o país. São experiências muito diferentes das dela, mas com pontos em comum”, comenta.
Em Fortaleza, Foi Apenas um Acidente e Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe estão em cartaz no Cinema do Dragão a partir de quinta-feira, 11 de dezembro. Confira as entrevistas completas com Jafar Panahi e Sepideh Farsi.

O POVO - Falando da realidade violenta do seu país, você acaba se comunicando com o mundo inteiro. Essa história também poderia ter acontecido no Brasil, País com um passado ditatorial tão recente. Como você vê o diálogo do seu filme com essa perspectiva global?
Jafar Panahi - Todas as ditaduras compartilham método, e elas se assemelham. É por isso que em qualquer lugar do mundo que pude ver o filme com o público, eu percebi que as pessoas tinham uma sensação de proximidade com o filme.
São os países que tiveram essas experiências ou países nos quais as pessoas têm medo de ter tais experiências no futuro. Então este filme não pode ser limitado a um determinado lugar, mas pode ser aplicado a muitos lugares.
Você pode ouvir os passos da ditadura em muitas partes do mundo, e há uma grande sensação de perigo por aí. Eu conheço e reconheço esses sinais, e tenho certeza que você já viu no Brasil como eu os vi no Irã. Eu sei que esses sinais todos nos aproximam um do outro.
O POVO - Mesmo com toda a urgência e a denúncia no filme, também existe um tom de comédia. Em que momento do projeto esse elemento surgiu? Essa sempre foi a ideia?
Jafar Panahi - Um cineasta socialmente engajado geralmente decide e tenta estar próximo de um senso de realismo da vida real. Em qualquer lugar em que você esteja e em qualquer situação em que viva, mesmo em momentos de tristeza, haverá momentos em que você vai sorrir.
Quando essa é a realidade da vida, isso também precisa se refletir nos filmes, para que o público possa sentir mais da realidade e acreditar nela. A verdade é que eu queria que houvesse um tom de humor no filme até os últimos 20 minutos.
Nesses minutos finais, eu queria que houvesse um momento de silêncio que influenciasse e impactasse o público, de modo que, ao sair do cinema, ainda estivesse pensando sobre o filme. Se o restante do filme tivesse o mesmo tom dos últimos 20 minutos, você sentiria uma certa monotonia e não teria o choque do final.
Claro que também existem diferenças culturais entre o filme e o público que fazem com que ele seja mais engraçado em algumas partes do mundo e menos engraçado em outras. Por exemplo, nos Estados Unidos e no Canadá as pessoas riram mais, e no Leste Asiático riram menos.

O POVO - No seu filme você diz que sabia que cada conversa com Fatem poderia ser a última. Quando você soube da morte dela e como isso te afetou?
Sepideh Farsi - Não foi uma morte. Foi um assassinato, um ataque direcionado à casa dela pelo Exército israelense. Ela foi morta na noite do dia 16 de março. No dia 15 tivemos nossa última conversa, quando contei sobre a seleção do filme em Cannes. Nós estávamos planejando levá-la ao festival, e ela tinha aceitado vir.
No dia seguinte um colega me enviou a notícia e eu não acreditei. Fiquei em negação, ligando para ela o tempo todo. É uma perda enorme. Não entendo o porquê. Quem decidiu cometer esse crime? Matar uma pessoa só porque ela fazia fotos… isso não é “coisa da guerra”. É um crime contra a humanidade.
Mataram ela e toda a família simplesmente porque ela fotografava. Ela era uma pessoa extraordinária: fotógrafa, poeta, escritora, um ser humano incrível. Então, faço o máximo que posso para acompanhar o filme e compartilhar a mensagem dela com o mundo, para tentar preencher o vazio que ficou após sua ausência.
O POVO - Ela foi tão gentil, sempre sorrindo e disponível para a conversa. Por que você acha que ela confiou tanto em você?
Sepideh Farsi - Isso é o mistério das relações humanas. Por que eu fiquei tão fascinada por ela? Por que ela foi tão aberta comigo? Acho que houve uma ligação imediata entre nós, parte por quem ela era, parte por quem eu sou.
Ser iraniana, estar no exílio, ter o histórico que tenho… tudo isso me dá talvez uma compreensão mais profunda das condições dela. Eu vivi coisas parecidas em outra escala — deixei o Irã, fui presa aos 16 anos, depois fiquei dois anos praticamente em prisão domiciliar, sem poder estudar. Então, havia pontos de contato entre nós e essa conexão aconteceu muito rápido.
O POVO - A mídia ocidental quase nunca humaniza o povo palestino. Vemos bombas e destroços, mas não vemos pessoas. Para enxergar vidas palestinas, muitas vezes dependemos de filmes como o seu. Quais são os desafios de criar imagens de Gaza, e qual é o papel do cinema nesse contexto?
Sepideh Farsi - É exatamente aí que meu filme se posiciona. A mídia não tem feito seu trabalho. Há um processo enorme de desumanização e apagamento dos palestinos das narrativas. Eu tentei preencher essa lacuna, mas do jeito que a arte faz.
No cinema temos tempo, e isso é fundamental. As notícias são rápidas, parciais, controladas. O cinema permite liberdade, profundidade, a chance de conexão humana.
Quis devolver humanidade a ela e aos palestinos, e colocar o público na minha posição. Não podemos entrar, eles não podem sair. É como um campo de concentração. O formato também é essencial. O filme foi feito de maneira muito minimalista porque era a melhor forma de expressar a fragilidade dessa conexão.
O POVO - As fotos da Fatem são cruciais para a alma do filme. Como você teve acesso a elas e como decidiu o que incluir?
Sepideh Farsi - Eu sabia que ela era fotógrafa desde antes de conhecê-la. Vi suas fotos no Instagram, e depois ela me enviou centenas de imagens.
No processo de montagem, primeiro organizei a linha do tempo das nossas conversas e depois percebi que precisava de capítulos, blocos de fotos. Construí isso durante a edição, junto ao trabalho de som, criando momentos de respiro para o público entrar na obra dela.
O POVO - Nesta semana falei também com Jafar Panahi sobre ditaduras e violência de Estado. Ele disse que o filme dele é sobre o Irã, mas também sobre o mundo. Você, como uma cineasta iraniana fazendo um filme sobre Gaza, de que forma seu filme fala do mundo para além de Gaza?
Sepideh Farsi - Meu filme fala além de Gaza porque minha própria vida está ali. Eu compartilho minha experiência com Fatem. Fui presa no Irã, depois impedida de estudar, e acabei deixando o país. São experiências muito diferentes das dela, mas com pontos em comum. E isso vale para o mundo. Pessoas vivendo sob ditaduras reconhecem procedimentos semelhantes.
É por isso que precisamos compartilhar experiências, criar uma cadeia de solidariedade através da arte. Não impede que tragédias aconteçam, mas gera consciência. E não é algo distante — até nos EUA hoje há ataques graves à liberdade de expressão.
Estamos vivendo um momento muito peculiar da história humana, e precisamos estar conscientes de que nada nos protege totalmente, nem mesmo as democracias ocidentais.